24 Fevereiro 2023
A fila começou a se formar às 9 horas da manhã na porta do Restaurante Popular do Centro de Porto Alegre. Às 11, já se formavam duas filas, e longas. Enquanto os consumidores esperavam, os organizadores iam explicando o funcionamento do restaurante e da necessidade de cadastro no CadÚnico — pré-requisito para o almoço.
A reportagem é de Amanda Bernardo, Babiton Leão, Gabriel Nunes Reis, Isaias Roberto Rheinheimer e Juliana Henzel Peruchini, publicada por Extra Classe, 23-02-2023.
Era uma segunda-feira, e a refeição continha pratos variados: arroz, feijão, porco, moranga, repolho refogado, tomate e banana. Ao meio-dia, as pessoas circulavam rápido com seus pratos, tornando o espaço entre as cadeiras mínimo.
Uma rotina semelhante acontece em outras quatro localidades da capital: Vila Cruzeiro, Rubem Berta, Restinga e Lomba do Pinheiro, nos demais restaurantes populares mantidos pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social da Prefeitura de Porto Alegre em parceria com organizações da sociedade civil.
Em cada um, 100 refeições são distribuídas de segunda a sexta. Em contrapartida, o Restaurante Popular do Centro de Porto Alegre é o único a servir 400 refeições todos os dias da semana. Naquele dia, no final de novembro, cerca de 20 kg de feijão e 45 kg de arroz foram cozidos, temperados e servidos.
A assistente administrativa Rosália Bueno, 48, explica que o público do restaurante do Centro é, em maioria, homens em situação de rua e idosos que não possuem renda mensal suficiente para se alimentar adequadamente.
Para o vereador Matheus Gomes (Psol), os restaurantes populares são uma forma de combater a fome, mas é preciso aumentar este número e melhorar os investimentos para o setor. O parlamentar sugere pressionar os governos estadual e federal para alargar o repasse de recursos a fim de garantir a segurança alimentar.
“Infelizmente, o prefeito Sebastião Melo tem tratado esse tema de maneira muito descompromissada, e é algo que precisamos modificar no próximo período”, afirma.
Colega de oposição, a vereadora Laura Sito (PT), engrossa o coro de críticas à política de combate à fome da atual gestão, e reitera a urgência do problema. “Na cidade de Porto Alegre, são cerca de 140 mil pessoas que sofrem com insegurança alimentar grave, mais ou menos 10% da população total da cidade”. Laura se elegeu deputada estadual nas eleições de outubro e é a representante do Brasil na Frente Parlamentar contra a Fome da América Latina e Caribe da FAO.
Juntamente com um grupo de ativistas dos direitos humanos e direito à cidade, ela criou, em 2018, o Coletivo Multiplicidade — movimento que elabora políticas públicas para enfrentar a fome e a insegurança alimentar realizando entregas quinzenais de alimentos às famílias que vivem na periferia de Porto Alegre. Como parlamentar com mandato bastante voltado a este tema, ela fiscaliza os repasses da Prefeitura às entidades da sociedade civil vinculadas ao Coletivo Multiplicidade.
“Atualmente, reclamações de atraso ou de aplicações inferiores ao limite são recorrentes. O poder público local não despende toda a sua capacidade de ação para atender os mais vulneráveis”, expõe.
Ainda em 2022, a reportagem tentou durante mais de três meses obter dados sobre os números da fome trabalhados pela Prefeitura de Porto Alegre. Como não há dados abertos no Portal Transparência de Porto Alegre, a saída foi recorrer à Lei de Acesso à Informação (LAI). O objetivo inicial era obter informações relativas à insegurança alimentar envolvendo crianças. Entretanto, a Prefeitura não respondeu ao questionário no tempo estabelecido por lei, que é de 20 dias.
Passado este período, conforme prevê a Lei, a equipe de reportagem resolveu protocolar uma reclamação na Ouvidoria. A resposta veio, mas nenhuma pergunta objetiva do questionário foi esclarecida. Confira a resposta dada à solicitação de informações.
Conforme a Lei de Acesso à Informação, a reportagem apresentou recurso. O reexame deverá ser analisado e respondido pelo gestor responsável, pela Secretaria de Desenvolvimento Social. Até o fechamento desta reportagem, o recurso ainda não havia sido analisado.
Além disso, também foi solicitada uma entrevista com o secretário do Desenvolvimento Social, Léo Voigt. Uma das questões a ser colocada é sobre a queda de investimento para a assistência social. O cruzamento de dados realizados pela reportagem a partir do Portal da Transparência, identificou que os valores previstos no orçamento para Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), com dotação exclusiva, têm sido cada vez menores. Na análise orçamentária da última década, o índice de investimento no órgão, que não baixava de 3%, registrou o menor índice da década: 2,3%. O segundo menor valor foi executado neste ano, o segundo da atual gestão de Sebastião Mello.
A tendência de queda se mantém ao analisar a previsão orçamentária do programa de segurança alimentar e nutricional da Capital, que é vinculado ao orçamento da Secretaria de Desenvolvimento Social.
Em 2020, último ano da gestão de Nelson Marchezan Júnior, a Prefeitura destinou 5,43% do orçamento da Secretaria de Desenvolvimento Social para o programa. Em 2021, esse percentual caiu para 1,26%. Para 2022, embora apresente um importante aumento em relação ao ano anterior, a previsão é de 4,11%, ainda inferior ao último ano do governo anterior.
Para responder à reportagem, a Prefeitura indicou a coordenadora da Unidade de Segurança Alimentar da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, a nutricionista Carolina Breda Resende. A servidora admite a falta de dados específicos sobre a situação da fome e afirma que a Prefeitura trabalha com os dados do CadÚnico. De acordo com registros publicados pelo Ministério da Cidadania em setembro de 2022, mais de 212 mil pessoas estão em situação de pobreza ou extrema pobreza em Porto Alegre.
Carolina Resende coloca em dúvida a única ferramenta de identificação e caracterização socioeconômica das famílias brasileiras de baixa renda, que é o CadÚnico. Segundo ela, os dados do CadÚnico podem estar superestimados pela falta de critérios no cadastramento.
“O cadastro é auto referido, então, claro que tem questões que não se coloca certeza de algumas situações. Se a pessoa disser que está precisando, vai ser cadastrada”, observa.
Pela falta de critérios que ajudem a confirmar as informações fornecidas, a nutricionista sugere que pode haver moradores que recebem auxílios de forma fraudulenta.
Outro elemento importante sobre a política de investimento surge a partir de dados obtidos no Tribunal de Contas do Estado (TCE/RS), entre 2020 e 2022, a Prefeitura de Porto Alegre comprou 1.684.608 cestas básicas, ao custo de R$ 198.568.593,76, para distribuir a famílias em condição de vulnerabilidade. Apesar da volta do Brasil ao Mapa da Fome este ano, o levantamento realizado no TCE indica uma queda brusca na compra de cestas básicas pela atual gestão municipal.
Em 2020, com o início da pandemia de covid-19, a Prefeitura de Porto Alegre adquiriu 1,3 milhões de sacolas de alimentos, segundo dados do TCE. Em 2021, o número caiu para 243 mil unidades, e, este ano, até o mês de novembro, menos de 70 mil cestas básicas foram adquiridas.
A nutricionista Carolina Resende defende a gestão municipal ao argumentar que não é responsabilidade da Assistência Social distribuir cestas básicas e que o ocorrido nos últimos dois anos se deu pela condição emergencial a que Porto Alegre estava submetida.
“Durante a pandemia, a cesta básica foi dada de uma forma muito mais ampla. Como muitos começaram a bater na porta do CRAS, passou-se a entregar 10 mil cestas por mês”, contextualiza.
A oferta de restaurantes populares, como o mostrado no início da reportagem, é, segundo a nutricionista, um dos quatro programas de combate à fome da Prefeitura de Porto Alegre. Outro é o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do Governo Federal.
Carolina explica que o governo está estruturando um PAA Municipal para aumentar a compra e distribuição de alimentos às comunidades em situação de vulnerabilidade social, outro projeto. “Este é um importante programa, que abastece mais de 200 entidades (convênio com o Mesa Brasil/Sesc), que fazem a distribuição destes alimentos para milhares de pessoas”, diz.
A nutricionista também citou o programa Mais Proteção, que surgiu para substituir as cestas básicas através da entrega de um cartão-alimentação de R$ 200 para 5 mil famílias inscritas no CadÚnico. Outra ação de combate à fome apontada pela profissional é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Investimento na assistência social de POA teve maior queda dos últimos dez anos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU