21 Dezembro 2022
"O poder. Este é o rei agora despido também na igreja. Este é o único, verdadeiro e profundo inimigo do Evangelho. Só uma Igreja capaz de passar do serviço do poder ao poder do serviço (um oximoro, mas a única forma de poder permitido), ajudando os homens e as mulheres do nosso tempo a crescer no conhecimento daquele Amor a que chamamos Deus, poderá sobreviver aos tempos que virão. E fazer o bem para esta humanidade", escreve Gennaro Pagano, presbítero de Pozzuoli, psicólogo e psicoterapeuta e diretor da Fundação Centro Educacional Diocesano "Regina Pacis" de Pozzuoli (NA), em texto publicado na página do autor no Facebook, 20-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Rupnik é apenas o enésimo capítulo de uma saga que poderia se chamar "a queda dos gigantes" ou "a revelação do rei nu". Obviamente, embora condene todo abuso e violência, não quero expressar considerações sobre as pessoas envolvidas nessa triste história, mas sim me questionar e fazer algumas perguntas à comunidade eclesial. Acompanhadas por algumas premissas.
1. Nos últimos trinta anos, assistimos não a simples escândalos, mas a verdadeiras inversões onde emergiu a esfera privada de alguns considerados autoridades por motivos hierárquicos ou por consideração e fama: fundadores de congregações religiosas, movimentos e associações, professores e professoras de grande espiritualidade. E provavelmente não se trata de nada de novo sob o sol se não fosse nova - ouso dizer pela graça de Deus - a cultura deste tempo, agora não mais de cristandade.
Uma época em que a comunicação não faz concessões a ninguém, onde o objetivo é trazer à tona notícias escondidas, onde o quarto poder em muitas situações se torna o primeiro. Por que as hierarquias eclesiais ainda parecem incapazes de compreender plenamente a mudança de paradigma cultural e comunicativo em que se movem hoje, combinando verdadeiros desastres na tentativa de minimizar, senão esconder trágicas situações? Estou convencido de que nenhum infrator deve ser posto na berlinda e fustigado publicamente, mas estou igualmente convencido de que só uma justiça transparente, justa e capaz de ouvir o grito das vítimas pode evitar que as vítimas recorram aos meios de comunicação de massa.
2. Quando eu era criança, costumava pegar as revistas de desafios do meu pai para me divertir com aquele joguinho em que você tinha que unir com um traço os pontos para criar um desenho divertido.
Porque a Igreja Católica - cada um fala da sua família, certamente não daquela dos outros - tem tanta dificuldade em ligar os pontos e entender que há algo que deve necessariamente mudar na sua relação concreta (para além das teologias etéreas e das palavras espirituais) com a esfera da corporeidade e da sexualidade?
Não é suficientemente significativo que grandes mestres de espiritualidade, assim como pessoas consagradas e membros do clero, tropecem todos na mesma pedra, uma pedra incômoda, que perturba, que se finge não ver e que muitas vezes, como tudo o que é reprimido e não realmente elaborado, explode com a força de uma avalanche assim que os refletores se apagam, os paramentos são despidos ou o volume do microfone é zerado após mais um sermão?
3. É claro para todos que não existe abuso ou assédio sexual que não seja fruto e consequência de um abuso primário: o de poder, o da consciência. Esta é uma verdade válida para todos, certamente não apenas para a igreja. Mas é também uma verdade que se destaca ainda mais na Igreja se pensarmos no que afirma o Mestre de Nazaré no Evangelho de Mateus, no capítulo 23, depois de ter recordado duramente a hipocrisia e a duplicidade farisaica: “Vós, porém, não queirais ser chamados Rabi, porque um só é o vosso Mestre, a saber, o Cristo, e todos vós sois irmãos. E a ninguém na terra chameis vosso pai, porque um só é o vosso Pai, o qual está nos céus. Nem vos chameis mestres, porque um só é o vosso Mestre, que é o Cristo” (vv. 8-10).
A experiência de Jesus é, sem dúvida, uma experiência de crítica ao poder que esmaga o homem, seja ele religioso ou político. A experiência de um amor que se opõe a qualquer poder que limite a vida, mesmo o da morte. O traço distintivo da sua convicção e pregação é, sem dúvida, um dos motivos predominantes subjacentes à condenação de Jesus ao infame suplício. Poder, domínio, sentir-se "sagrado" ou "superior" a outrem é o que Jesus de Nazaré rebateu com palavras e com sua vida, a ponto de representá-lo plasticamente no sacramento joanino do lava-pés.
Por que hoje, num clima cultural que o permitiria e que poderia ser muito favorável à passagem de uma religiosidade feita de prescrições divinas e hierarquias sagradas, a comunidade cristã não consegue fazer uma passagem, dar um salto em frente (que em certo sentido poderia ser um retorno às fontes) tornando-se um lugar "espiritual" onde as estruturas importam menos do que a experiência de crescimento saudável na fé, na esperança e no amor?
Pessoalmente, não consigo me dar outra resposta senão que aquela segundo a qual o poder não reforma a si mesmo senão na medida em que tal reforma lhe permite manter ainda mais o nível de poder possível. Enquanto isso, continuaremos maravilhados e surpresos se bispos, padres e mestres do espírito cederem como todos os outros. Às vezes mais do que os outros. E continuaremos a chamá-los de “pais” e “mestres” esquecendo que são apenas irmãos, homens frágeis como todos nós, nada mais e nada menos.
Pessoas que nenhum poder sagrado (inexistente diante de Deus, mas verdadeiro apenas para aqueles que o atribuem a ele) protegerá da lama em que todos os homens caem. O poder. Este é o rei agora despido também na igreja. Este é o único, verdadeiro e profundo inimigo do Evangelho. Só uma Igreja capaz de passar do serviço do poder ao poder do serviço (um oximoro, mas a única forma de poder permitido), ajudando os homens e as mulheres do nosso tempo a crescer no conhecimento daquele Amor a que chamamos Deus, poderá sobreviver aos tempos que virão. E fazer o bem para esta humanidade.
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A queda dos gigantes - Instituto Humanitas Unisinos - IHU