19 Dezembro 2022
"Nos parcos centímetros quadrados feitos de cortiça e papier-mâché – onde a fixidez se torna movimento – encerra a história do mundo, a “aldeia global”, “uma taxonomia imensa”, uma multidão colorida multiétnica, policêntrica, extremamente inclusiva: todo traço humano com sua pulcra diversidade ", escreve Alberto Fraccacreta, jornalista publicitário e bolsista na Università di Urbino, em artigo publicado no caderno Alias Domenica, do jornal Il Manifesto, 18-12-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Em Il ritorno de Giuseppe de Fabrizio De André (La Buona Novella, 1970) sopra suavemente o "cheiro de Jerusalém", tão adequado para explicar aquele sentido arcano de manjedoura sagrada que se respira dentro do presépio mesmo na variegação do folclore, das marionetes de Acireale à madeira tirolesa, dos trajes andinos ao cenário da savana. Sabe-se que na memorável noite de Natal de 1223, São Francisco vestiu pela primeira vez os habitantes de Greccio com os trajes dos Magos, dos pastores e dos santos cônjuges, Maria e José (Giotto imortalizou a cena na Basílica de Assis).
Mas foi apenas a partir do século XVIII é que se inicia em Nápoles uma tentativa de "domesticação" do presépio que coincide com a "privatização familiar" e a "autonomia das ideias e da construção" na base da concepção formal moderna. Marino Niola e Elisabetta Moro, professores de antropologia no Suor Orsola Benincasa em Nápoles, contam esta longa e emocionante aventura em Il presepio. Una storia sorprendente (O presépio Uma história surpreendente, em tradução livre, il Mulino, pp. 244, € 16,00): de Belém a San Gregorio Armeno, nos parcos centímetros quadrados feitos de cortiça e papier-mâché – onde a fixidez se torna movimento – encerra a história do mundo, a “aldeia global”, “uma taxonomia imensa”, uma multidão colorida multiétnica, policêntrica, extremamente inclusiva: todo traço humano com sua pulcra diversidade.
"Mercantes, músicos, vendedores ambulantes, estalajadeiros, lavadeiras, reis negros, vizires otomanos, escravos núbios, mulheres de má fama, ciganos, malabaristas, biscateiros, pizzaiolos" e "um vaivém de personagens contemporâneos empurrados e sugados pela onda dos noticiários": jogadores de futebol, políticos, celebridades várias e possíveis. Sem esquecer, entre as figuras mais heteróclitas, o caganer (também conhecido como el cagón del belen), cujas funções fisiológicas não precisam de explicação.
Il presepio. Una storia sorprendente (O presépio Uma história surpreendente, em tradução livre, il Mulino, pp. 244, € 16,00) (Foto: Divulgação/Amazon)
Para além do éschaton e do scathón, como escreve Niola, precisamente com o reinado dos Bourbon começa “aquele processo de alargamento cenográfico, de contaminação sincrética que transforma profundamente natureza e cultura, estrutura e dimensão do presépio, alterando decisivamente a sua arquitetura ideológica e social”. Teatro em que se conjugam amigavelmente o icônico transcendental e o mais desenfreado localismo, paradigma de toda bricolagem e pressentimento do romance pós-modernista da época rococó, o presépio é uma tipologia muito particular de trompe-l'oeil com a sua entropia pynchoniana e virtual disseminação do sinal.
Os presépios napolitanos – definidos por Manganelli como “encantamento universal, um fascínio, diria um pudico sabá” – são objeto de reinvenções literárias (ver Natale in casa Cupiello); eles produzem tenebrosas "hierofanias burguesas"; implementam sincronias astrais com Mitra Sol Invictus; combinam a romérage e a ilusão espacial, a “cena comunicante” e esplêndidos anacronismos (“Reis Magos que carregam no pescoço as insígnias da Real Ordem de São Genaro, honra máxima do Reino das Duas Sicílias, instituído por Carlos de Bourbon 1738 anos após o nascimento de Cristo. Como se hoje os três reis estivessem segurando o celular”).
Moro também destaca, com Benjamin, a "verdade da vida" inerente ao magma da "multidão fervilhante": graças à comédia, ao mito e à história, "a representação da Natividade (...) interromperia o instante em que a fábula muda de natureza, invertendo-se no seu oposto, para se tornar mistério”.
Grande incêndio em centelha principia: um poder enigmático está embutido no evento que o evangelho napolitano narra visualmente com alegria e simplicidade barroca. Em 1º de dezembro de 2019, o Papa Francisco dedicou ao presépio popular a Carta Apostólica Admirabile signum, destacando como o proliferar de “estatuetas que parecem não ter relação com as histórias evangélicas” pretende, na verdade, expressar o quanto “neste mundo novo inaugurado por Jesus, há lugar para tudo o que é humano".
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Aqueles centímetros quadrados de papier-mâché e cortiça onde a Boa Nova se torna uma aldeia global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU