10 Dezembro 2022
“A recente entrevista do Papa Francisco parece como um primeiro rascunho que precisa ser editado. Talvez seja o velho editor em mim que quer melhorar o texto. Mas na edição sempre existe o perigo de abafar a voz do autor. Provavelmente é melhor deixar Francisco ser Francisco. Isso não quer dizer que vou gostar de tudo que ele fala ou do jeito que ele fala, mas vou continuar gostando dele e estar atento a cada palavra que ele diz”, escreve o jesuíta estadunidense Thomas Reese, em artigo publicado por National Catholic Reporter, 12-09-2022. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A entrevista do papa no mês passado à America, a revista dos jesuítas dos EUA, foi um exemplo clássico de por que o Vaticano não quer que o papa dê entrevistas. O papa cutucou o nariz do urso russo, deu uma resposta complicada sobre por que as mulheres não podem ser ordenadas e até teve uma resposta confusa a uma pergunta sobre racismo nos Estados Unidos.
Se eu fosse seu secretário de imprensa, teria arrancado os cabelos durante boa parte da entrevista. Eu gostaria de editar o texto antes de ser publicado.
Algumas de suas respostas não foram controversas, mas inspiradoras – por exemplo, sobre como ele permanece alegre e feliz em meio a crises e problemas. Sua análise de como a polarização política é anticristã foi certeira. Ele também reconheceu que é um erro da Igreja ter menos transparência ao lidar com bispos abusivos do que com padres abusivos.
Como ex-editor da America, fiquei encantado com o fato de que os novos editores conseguiram uma entrevista exclusiva com o papa e trouxeram três colegas leigos, incluindo duas mulheres, com eles. Suas perguntas eram profissionais, com alguns acompanhamentos que não permitiam que o papa se esquivasse das perguntas. Parabéns a eles.
Sobre a guerra Rússia-Ucrânia, Gerard O'Connell, vaticanista da America, perguntou ao papa por que ele não estava disposto a “criticar diretamente a Rússia por sua agressão contra a Ucrânia, preferindo falar de forma mais geral sobre a necessidade de um fim para a guerra, um fim à atividade mercenária em vez de ataques russos e ao tráfico de armas”.
O Vaticano tradicionalmente evita tomar partido em guerras, pela esperança de se tornar um mediador para a paz. Historicamente, essa abordagem raramente foi bem-sucedida. Embora nesta guerra o Vaticano tenha facilitado a troca de listas de prisioneiros e até mesmo de alguns prisioneiros, os governos ucraniano e americano criticaram o papa por não condenar o presidente russo Vladimir Putin e a Rússia.
“Quando falo sobre a Ucrânia, falo de um povo que é martirizado”, disse ele. “Se você tem um povo martirizado, você tem alguém que os martiriza”. Ele continuou dizendo que não citou especificamente Putin em suas condenações à guerra porque “não é necessário; já é conhecido”. Ele poderia muito bem ter dito que Putin era um Nero do século XXI.
Ele tentou evitar acusar os soldados russos de crimes de guerra, mas disse que as tropas mais cruéis são os chechenos e os buriatas, que lutam pela Rússia.
Esses comentários certamente agradaram a Ucrânia, os Estados Unidos e seus parceiros da OTAN, mas também deram azia à Secretaria de Estado do Vaticano, que teve de lidar com a indignação russa.
O editor-executivo da America, Kerry Weber, embora reconhecesse a promoção das mulheres pelo papa no Vaticano, perguntou: “O que você diria a uma mulher que já está servindo na vida da Igreja, mas que ainda se sente chamada ao ministério sacerdotal?”.
A boa notícia é que o papa evitou falar de “complementaridade” e não se referiu às mulheres como as cerejas do bolo. Ele está aprendendo. Mas ele arrastou a complicada eclesiologia do teólogo suíço Hans Urs von Balthasar, que descreve os aspectos petrinos e marianos da Igreja.
Na análise do papa, o petrino é masculino e menos importante que o mariano ou esponsal, que é feminino. Onde os leigos se encaixam nessa análise não está claro. Se os leigos estão incluídos no princípio mariano, então por que as mulheres não podem estar incluídas no petrino?
A teologia de Von Balthasar não convencerá ninguém que apoie a ordenação de mulheres.
Gloria Purvis, apresentadora do “The Gloria Purvis Podcast”, perguntou sobre o racismo na Igreja dos EUA: “O que você diria agora aos católicos negros nos Estados Unidos que vivenciaram o racismo e, ao mesmo tempo, não têm seus apelos por justiça social escutados dentro da Igreja?”.
O papa parecia despreparado para a pergunta. Ele respondeu com simpatia e apontou que “a Igreja tem bispos descendentes de afro-americanos”.
Purvis não deixou o papa escapar impune. “Sim, mas a maioria de nós vai a paróquias onde os padres não são afro-americanos, e a maioria das outras pessoas não é afro-americana, e eles parecem não ter sensibilidade para com o nosso sofrimento. Muitas vezes ignoram nosso sofrimento. Então, como podemos encorajar os católicos negros a ficar?”.
O papa divagou um pouco, mas finalmente disse o que precisava ser dito. Os católicos negros “devem resistir e não se afastar”, disse ele. “O racismo é um pecado intolerável contra Deus. A Igreja, os pastores e leigos devem continuar lutando para erradicá-la e por um mundo mais justo”.
Weber perguntou sobre os bispos estadunidenses, mas o papa sabiamente evitou entrar em conflito público com a conferência. No entanto, ele surpreendentemente atirou contra a própria ideia de conferências episcopais. “Jesus não criou as conferências episcopais”, disse o papa. “Jesus criou os bispos, e cada bispo é pastor de seu povo”.
Os progressistas estadunidenses com memória curta podem aplaudir essa crítica, mas devem se lembrar de como Joseph Ratzinger, que se tornou o Papa Bento XVI, minimizou o papel teológico das conferências episcopais durante a era de ouro da conferência dos EUA, quando escrevia cartas pastorais sobre a paz e a economia. O Vaticano sempre temeu as conferências episcopais porque é mais difícil lidar com os bispos como um grupo do que individualmente.
O papa precisa de uma maneira melhor de falar sobre as conferências episcopais. É verdade que Jesus não as criou, mas também não criou muitas outras coisas na Igreja, incluindo concílios ecumênicos e o Vaticano.
Todo mundo sabe que eu amo o papa e vou defendê-lo até o dia da minha morte. A primeira entrevista que concedeu como papa, também publicada na America, foi uma obra-prima da comunicação e da evangelização.
Sua recente entrevista aparece como um primeiro rascunho que precisa ser editado. Talvez seja o velho editor em mim que quer melhorar o texto. Mas na edição sempre existe o perigo de abafar a voz do autor.
Provavelmente é melhor deixar Francisco ser Francisco. Isso não quer dizer que vou gostar de tudo que ele fala ou do jeito que ele fala, mas vou continuar gostando dele e estar atento a cada palavra que ele diz.
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O papa precisa de um editor? Artigo de Thomas Reese - Instituto Humanitas Unisinos - IHU