04 Novembro 2022
Grande parte da família de Raj Patel tem sérias complicações de saúde. Donos de um comércio de alimentos, acostumaram-se com a desnutrição: excesso de açúcar, sal e gordura, que trouxeram doenças crônicas. O economista é uma das referências do movimento que propõe uma mudança saudável no prato.
Sua visão crítica do capitalismo colonial se sustenta, já trabalhou para o Banco Mundial, a Organização Mundial do Comércio e a Organização das Nações Unidas. Hoje, em caminho oposto, fala sobre a regeneração de solos e vínculos, e promove a desmercantilização dos alimentos.
No marco do festival político e gastronômico Terra Mãe, do movimento Slow Food, realizado em Turim, Itália, Patel conversou com El Diario. O autor de Obesos y famélicos: el impacto de la globalización en el sistema alimentario mundial (2008), entre outros, que mergulhou no mundo do documentário, foi convidado para participar de uma conferência, durante o evento, focada na crise do atual sistema alimentar.
Participando ao lado da médica e música Rupa Marya, do jornalista Michael Moss e da chef, escritora e ativista Bela Gil, Patel falou um pouco sobre sua própria história.
A entrevista é de Karina Ocampo, publicada por El Diario, 28-10-2022. A tradução é do Cepat.
Muitas pessoas pensam que comer alimentos orgânicos é algo “cool” ou uma moda. O mercado vende “alimentos orgânicos” e transforma um direito humano em algo elitista. Como você enxerga isto em nível global?
Tristemente, vejo que estamos caminhando na direção errada. Vemos o fracasso do direito à alimentação, a soberania alimentar corroída pela política econômica capitalista, principalmente na recessão, com a inflação dos preços dos alimentos e o impacto na cadeia de mantimentos, mesmo antes da guerra na Ucrânia, mas piorados pela guerra.
Então, nesse nível, basta olharmos para o número de pessoas que passam fome no mundo. Esse número está aumentando e aumentando e aumentando. E os economistas prometem que no futuro diminuirá, mas supõem que não haverá outra pandemia, que as mudanças climáticas não vão piorar muito as coisas, que não haverá mais conflitos, bem como turbulências econômicas.
Em consequência da pandemia, foram observados alguns momentos de soberania alimentar, com os alimentos circulando muito mais localmente, fazendo com que, em um momento muito sombrio, as comunidades se sentissem fortes. Penso que isto é importante. É importante reconhecer a forma como as comunidades se defenderam quando conseguiram fazer algumas mudanças muito transformadoras na forma como compravam e tinham acesso aos alimentos.
Michael Moss (vencedor do Prêmio Pulitzer 2010) diz que a indústria alimentar se saiu muito bem com a pandemia, e tem razão, lucraram muito. Mas também aconteceu com as pessoas com cadeias de fornecimento curtas, de modo que os agricultores e consumidores locais e os agricultores da economia circular solidária se saíram bem.
Em uma perspectiva global, penso que as coisas em nível macro não estão tão favoráveis. Mas sempre é possível encontrar esses pequenos pontos de luz onde quer que se olhe, caso se observe com atenção e se reconheça que as comunidades têm dignidade e organização. Então, mesmo quando se conta uma história global, ainda há histórias de vitórias locais.
Em 2021, foi lançado o filme “As formigas e o gafanhoto”, com a produção e direção de Raj Patel e Zak Piper. O documentário mostra o caso de Anita Chitaya, uma influente professora africana em sua aldeia no Malawi, onde trabalha para acabar com a fome e a desigualdade de gênero. Anita é convidada a viajar para a América do Norte para convencer agricultores e políticos de que a mudança climática é real e que eles devem tomar medidas concretas para lidar com suas consequências no sistema alimentar. Os cineastas propõem descolonizar nosso olhar, buscar soluções entre as vozes camponesas.
Inicialmente, mostra-se uma sociedade patriarcal, que se vê obrigada a modificar hábitos para sobreviver. Após o filme, você observou alguma mudança? Mantém contato com eles?
Sim, usamos o WhatsApp e nos comunicamos muito. A organização (Soil and Food), vem recebendo doações por causa do filme, esse era um dos objetivos. Elas iniciaram antes que começássemos a filmar, então, continuam seu trabalho e estou muito feliz por isso. Mas a questão interessante é: ocorre alguma mudança nas pessoas que assistem ao filme? Também a observamos, o que me emociona, é comovente.
Se alguém que escreve um livro espera que as pessoas o leiam para mudar o mundo, isso não vai acontecer. Até mesmo em relação à Bíblia é preciso que as pessoas sentem com você e conversem sobre ela. Acontece o mesmo com esse filme. Estamos em contato com muitos organizadores e produzindo material para que o filme seja útil em seu trabalho, em especial nas igrejas dos Estados Unidos, pois há muita fé nesse filme.
Fala a certas pessoas, especialmente dos Estados Unidos, sobre a necessidade de abordar as mudanças climáticas e abordar o racismo e o ódio. Então, essa conversa está acontecendo e temos dados para mostrar que as pessoas estão respondendo. Portanto, estou comovido. Sobre se há uma mudança, a resposta é sim.
Parece-me interessante buscar formas de inspirar a maioria das pessoas. Talvez a linguagem do documentário seja a melhor.
Mas também considero que não basta apenas colocá-lo na Netflix. As pessoas precisam se organizar nas comunidades e é isso que esses pastores e igrejas estão fazendo, pois quando as pessoas passam fome, vão à igreja. Quando as pessoas celebram, vão à igreja. Quando as pessoas querem uma mudança, vão à igreja para certas coisas. É por isso que está funcionando, pois estamos usando a igreja como base organizacional.
Em 2021, Raj Patel e a médica Rupa Marya escreveram o livro “Inflamed: Deep Medicine and the Anatomy of Injustice”. Falam sobre as doenças inflamatórias que estão nos afetando, não da saúde como algo individual, mas como um processo coletivo. O escritor cede a palavra à médica, presente na sala onde acontece a entrevista, para explicar esse conceito básico da inflamação.
Como a violência social está relacionada à doença inflamatória?
Bem, a inflamação é a resposta do corpo ao dano ou à ameaça de dano, e é a forma como o sistema imunológico do corpo é curado quando se depara com esse dano. Em uma resposta inflamatória aguda, como diante de um corte de papel, a resposta inflamatória cura essa ferida e depois é interrompida. Mas com a inflamação crônica percebemos que o dano persiste e o sistema imunológico fica neste estado ativo, tentando constantemente se curar.
Essas moléculas que são mobilizadas para a cura provocam danos colaterais nos tecidos e criam doenças inflamatórias. E estamos observando essa inflamação no coração, nos vasos, no cérebro, com a doença de Alzheimer, no cólon, com o câncer de cólon, entre outras.
Então, observamos que os fatores sociais e ambientais em torno do corpo são mais preditivos sobre se você desenvolverá ou não a doença inflamatória do que seu genoma. Portanto, é fundamental que observemos como esses fatores sociais e ambientais estão criando sinais de danos no corpo.
E através de sua própria análise social, Raj, o que poderia dizer a esse respeito?
Bem, você já sabe, se vive com medo em uma sociedade, se está preocupado que a polícia possa te atacar, sejam as mulheres no Irã, por causa do hijab, ou os indígenas, mesmo na Argentina, preocupados com a brutalidade policial. A polícia não decide simplesmente que essas pessoas são o inimigo, sempre é parte de um processo social.
Se você vive com medo de ser atacado pela sociedade, está sempre pronto para lutar. Se você está sempre pronto para uma luta, seu corpo começa a inflamar. E este é justamente o processo abordado por Rupa.
Tudo está conectado
Exatamente. E por causa das histórias que nos contam e das quais fazemos parte, nossos corpos estão intimamente conectados à narrativa da política.
Não sei se já sabe, mas temos o primeiro transgênico da Argentina e é resistente à seca, supostamente, mas também é resistente ao glufosinato de amônio, ainda mais tóxico que o glifosato. Em sua avaliação, pode ser um grande desastre?
Penso que será porque não podemos detê-lo. O problema é que a mudança climática não é uma coisa só. Como vimos, a mudança climática é a seca, e depois a chuva toda vem em um dia. Também é mais calor extremo e mais frio extremo e novas pragas. E não há quantidade de engenharia genética em uma lavoura que possa dar conta de tudo isso e, ao mesmo tempo, fazer com que o cultivo seja rentável e tenha o mesmo nível de rendimento.
Você pode fazer o arroz produzir muito mais vitamina A. Por exemplo, o arroz dourado geneticamente modificado estava destinado a ser uma história de sucesso. Contudo, nenhum agricultor o semeará, pois para o arroz produzir vitamina A, torna-se muito menos produtivo.
Este trigo geneticamente modificado resistente à seca é uma tentativa desesperada em manter a monocultura. Mas não é a forma mais inteligente de se adaptar às mudanças climáticas, a melhor saída é ter várias culturas diferentes, sendo possível reconhecer as que vão se sair melhor em determinados anos.
Não obstante, se você tem biodiversidade, os cultivos estão trabalhando juntos para criar um ecossistema robusto. Então, caso apareça uma nova praga, pode encontrar seu nicho, mas não destruir o sistema. E você cria uma teia de vida mais rica.
Sendo assim, a monocultura nunca foi uma ideia muito boa em tempos incertos. Estes são tempos incertos. Ajustar um gene em uma monocultura, no melhor dos casos, pode oferecer alguma proteção para servir a um tipo de clima extremo.
Estamos preocupados com o aumento do consumo de carne em todo o mundo. As granjas suínas estão criando novas pandemias, como sabemos. Você considera que uma dieta vegetariana pode ser uma saída? Seria possível um mundo vegetariano? Ou é uma utopia?
Penso que comer principalmente plantas é possível e necessário. Mas também é possível ter apenas monoculturas de soja, como você sabe. São apenas plantas, mas, então, você faz tofu com elas e todos são explorados em cada passo do caminho. Então, a dieta é importante, mas a política e o poder são muito mais importantes.
Fazer uma reforma agrária e uma “rematriação” da terra, como Rupa está fazendo com o Círculo de Medicina Profunda, é uma forma muito mais interessante de reconhecer e nivelar as relações de poder do que simplesmente dizer “coma couve”. Porque você pode manter a exploração na produção de todos os tipos de hortaliças. E o Círculo de Medicina Profunda demonstra que é possível curar a terra e as pessoas nela de uma forma digna para todos. A biodiversidade permanece. E desmercantilizar os alimentos, doá-los.
Bem, estamos aqui no festival Terra Mãe. É um encontro otimista, onde queremos mudar o mundo de alguma forma, onde a Terra e a regeneração do solo são importantes. Em uma entrevista, você já disse que é um otimista prático. O que você entende por isso?
Bem, porque posso ver o que Rupa está fazendo, o que os camaradas no Malawi, no MST e na Via Campesina estão fazendo. E todos passam por lutas, penso que estão se defendendo. E às vezes, nessas perguntas sobre otimismo, surge a palavra esperança e isso me irrita, acho que esperança é uma merda.
E eu gostaria que tivéssemos menos conversas a esse respeito, pois parece algum tipo de complemento que é necessário para fazer as coisas. Na maioria dos movimentos sociais que conheço, nunca ouço a palavra esperança, pois em geral as pessoas estão cansadas, com excesso de trabalho e há muitas coisas a fazer. Mas você não faz algo porque tem ou não esperança. Faz porque precisa fazer.
Tenho uma pergunta sobre sua vida pessoal. Você é um cidadão do mundo, mas escolheu o Texas para viver. Por qual motivo?
Ah, porque minha companheira foi recrutada para ajudar a iniciar uma faculdade de medicina. Esta é uma faculdade de medicina que leva a sério a ideia de que não é possível ter saúde em um corpo individual, que é necessário ser um projeto comunitário. Então, é algo pelo qual estou muito disposto. E o Texas é uma loucura, grande parte da América é violenta, a misoginia, o racismo e o ódio às mulheres, em especial no Texas, são muito ruins.
Neste momento, estou lá para complicar as coisas e contra-atacar. Mas, você sabe, esta é uma luta que deve ser travada em todos os lugares. E penso que seja qual for o desfecho, essas são as lutas que valem a pena lutar. Para encerrar esta conversa, gostaria de dizer algo aos argentinos. Penso que em vez de esperança, você pode contar com o que Martin Luther King chama de a feroz urgência do agora: a consciência de que isso deve acontecer.
Se você sente que está perdendo a esperança, pode ser que esteja passando mais tempo sozinho do que deveria. Porque se estão trabalhando juntos em um movimento, sempre tem alguém que se preocupa com você. Sempre tem alguém para cuidar dos filhos. Sempre tem alguém que prepara a comida para você. Sempre tem alguém para levantá-lo, quando cair. E isso é muito melhor do que a esperança.
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“A monocultura nunca foi uma ideia muito boa em tempos incertos”. Entrevista com Raj Patel - Instituto Humanitas Unisinos - IHU