02 Novembro 2022
"Assim, o aparato educacional torna-se prática de doutrinação, serve para formar jovens que serão não apenas cidadãos, mas os potenciais soldados de amanhã", escreve Francesca Mannocchi, jornalista e documentarista italiana, em artigo publicado por La Stampa, 29-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Existem diferentes maneiras de iniciar uma guerra. Uma é começar a preparar a geração que terá que combater com anos de antecedência, na escola. A "educação patriótica" vem sendo um dos slogans de Putin na Rússia há 15 anos, mas agora, em tempos de guerra, a reescrita da história tornou-se o pilar da educação da propaganda.
As cartas que crianças russas escrevem para soldados no front encontradas por La Stampa na semana passada em uma base transformada em salas de tortura em Izyum são prova de como a educação de Putin funciona em tempos de guerra. Uma educação baseada em fatos históricos falsos que se acelerou nos últimos meses, mas com raízes profundas. Vale a pena refazer a história da educação russa também para entender as nuances escondidas nas palavras do chefe do Kremlin há dois dias no discurso ao Valdai Discussion Club. Estamos diante da "década mais perigosa, imprevisível e importante desde a Segunda Guerra Mundial" - disse Putin - acusando o Ocidente de impor seus valores ao resto do mundo.
Por outro lado, quais são os valores sobre os quais Putin está construindo a sociedade russa, começando pelos menores, desde os alunos do ensino fundamental? Para entender isso, é preciso voltar no tempo dez, quinze anos, ou seja, quando os jovens que estão lutando no front hoje eram crianças na escola.
Em 2015, os professores Michael Lovorn da Universidade de Pittsburgh e Tatyana Tsyrlina-Spady da Pacífic de Seattle publicaram um estudo intitulado "Nacionalismo e ideologia no ensino da história russa: um novo conceito federal e uma pesquisa sobre os professores". O texto examina o aumento da propaganda patriótica no ensino de história na Rússia e sobre as iniciativas políticas que promoveram um currículo baseado no patriotismo que acompanhou em paralelo às controversas ações militares dos últimos anos.
Putin e seus altos funcionários reorganizaram a educação promovendo uma narrativa unilateral e alterada de eventos históricos, que atendiam às justificativas para suas ofensivas militares. A primeira lei federal que reformava a escola russa é a reforma de 1992, que introduzia novos princípios democráticos como base da esfera educacional. A lei foi alterada 50 vezes em poucos anos, até ser substituída em 2009 pelos Padrões Educacionais Estatais (PEE), norma que reconfigurou o ensino na Rússia.
A partir do 11º ano - lemos - todo aluno "terá que amar sua região e pátria mãe, cultura e tradições espirituais, mas também entender e aceitar os valores tradicionais da família, da sociedade civil russa, do povo multinacional russo, e estar ciente de pertencer ao destino de sua pátria”. É com a introdução dos Padrões Educacionais Estatais que se promove uma nova educação patriótica, um novo paradigma almejado pelo próprio Putin, que em 2012 disse: "O sentimento patriótico, o sistema de valores, as orientações morais têm seus fundamentos na infância e na juventude”, o sentimento patriótico que deve, portanto, ser promovido em todos os níveis porque - Putin continuava dez anos atrás- “as escolas e as universidades criam novos cidadãos e moldam suas consciências”.
Também no mesmo ano, é publicado o programa educacional estatal para o quadriênio sucessivo, um texto que define o papel do governo para criar um alto nível de consciência patriótica nos cidadãos russos. No centro, a importância do serviço militar, a figura e função do soldado deveria ser exaltada nas escolas de todos os níveis. Putin, ao inaugurar e explicar a reforma, disse que os problemas da nação eram principalmente o declínio dramático do patriotismo e da identidade nacional e que para inverter a tendência, era necessário “Reativar currículos que promovam uma identidade cívica ‘toda-russa’”.
É nesse horizonte de identidade "toda-russa" que o ensino da história é "reconceituado". Putin voltou ao tema em 2013, e desta vez é ainda mais explícito. "Devem ser pensados textos de história russa unificados construídos dentro de uma única concepção, de uma única lógica de uma história russa ininterrupta, de uma interconexão de todas as suas etapas, de um respeito por todas as páginas, de seu passado".
Diante dessas premissas, ou seja, atendendo aos desejos do chefe, o conselho da sociedade histórica russa aprovou em 2013 o "conceito de um novo quadro educacional-metodológico para o ensino de história", ou seja, uma forma de ensinar na escola o que o "chefe" entende por "unidade do povo russo".
Desde então, o ensino da história tem como objetivo demonstrar o impacto essencial da Rússia na história mundial. No centro de todas as reformas, de cada texto de história, de cada discurso sobre a educação de Putin existe a ideia de que as gerações futuras serão chamadas a tomar decisões sociais, políticas, econômicas e pessoais com base no que aprenderam sobre sua história, sobre a percepção de si e sobre a compreensão de parte das outras nações da grande mãe Rússia.
Não causa admiração, à luz desta breve reconstrução, que nos últimos anos, e desde fevereiro em particular, a história patriótica tenha sido usada como ferramenta para influenciar a percepção pública da política, angariar apoio das massas sobre as "operações militares" e minimizar crimes cometidos.
Os professores, que também são vítimas do aparato de controle do Kremlin, atuam como a cola entre o regime e os estudantes.
No início de 2021, o Kremlin criou a figura do “conselheiro do diretor de escola”, um supervisor da escola que supervisionasse a implementação da “educação patriótica”. Na prática um espião, chamado a denunciar professores rebeldes. Em março de 2022, algumas semanas após a invasão da Ucrânia, Maria Zakharova, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, falando com professores de história e ciências sociais em Moscou, explicou que Putin havia lançado uma "operação de manutenção da paz para proteger os russos em Donetsk e Luhansk” e que os próprios professores eram chamados a lutar “na linha de frente da guerra da informação”. Quem descumprir é preso, punido, como denuncia um relatório da Anistia Internacional sobre as repercussões para quem descumprir a propaganda putiniana ou simplesmente expressar um dissenso.
São dezenas de professores e docentes universitários submetidos a processos disciplinares, demitidos ou condenados a períodos de detenção administrativa por terem manifestado as suas opiniões em público ou durante as aulas, muitos deles denunciados justamente pelos seus colegas e “conselheiros dos diretores de escola”.
Elena Baybekova, professora de matemática de Astrakhan, foi demitida em abril depois de passar cinco dias na prisão depois que uma aluna protestou contra suas "conversas políticas" em sala de aula. Ela disse que era contra a guerra na Ucrânia. Também em abril, Marina Dubrova, professora de inglês da Ilha Sakhalin, foi demitida por dizer que a guerra foi "um erro" durante um bate-papo no recreio. Um estudante gravou a conversa e sua mãe entregou o vídeo à polícia.
Em junho passado, num crescendo sem regras da deriva patriótica russa, foram introduzidas novas disciplinas escolares, como o "renascimento da Rússia como uma grande potência no século XXI”, “a reunificação com a Crimeia" ou "a operação militar especial na Ucrânia”.
Servem, segundo o Ministério da Educação, para ensinar os jovens a defender a verdade histórica e desvendar as falsificações que os Estados inimigos impuseram à Rússia.
Para promover o ensino da verdade de Putin, as escolas russas também terão convidados para falar online, entre eles o líder checheno Kadyrov e o patriarca Kirill.
Em todo regime, a escola deixa de ser o lugar da aprendizagem, da crítica e passa a ser o lugar da falsificação. Assim também é na Rússia de Putin.
A propaganda - como demonstram as imagens e os desenhos encontrados em Izyum - ensina aos estudantes que a nação é infalível em virtude do fato de que o líder da nação, Putin, é infalível.
Assim, o aparato educacional torna-se prática de doutrinação, serve para formar jovens que serão não apenas cidadãos, mas os potenciais soldados de amanhã.
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Educação putiniana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU