19 Outubro 2022
"A tentação de um poder de controle sobre as divagações do Espírito e as ampliações da Palavra é a sombra secular contra a qual se mede a qualidade do comum da fé e do particular do exercício ministerial. No momento em que Pedro fala a Simão, fala também a si mesmo e a todos aqueles que se encontrarão no tempo a manejar uma autoridade espiritual dentro da comunidade dos crentes", escreve o teólogo e padre italiano Marcello Neri, professor da Universidade de Flensburg, na Alemanha, em artigo publicado por Settimana News, 17-10-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Com a dispersão de toda a comunidade de Jerusalém, com exceção dos apóstolos, Lucas registra nos Atos 8, 4-25 o que poderíamos chamar de primeira ampliação do Palavra - lançada para além daquele perímetro em que todos juntos haviam crescido na familiaridade com ela.
Desde o início de sua narrativa, toda concentrada em Jerusalém, Lucas teve o cuidado de disseminar sinais para o outro lado da lua da nascente comunidade cristã - ou seja, para os gentios. Indicando que, enquanto desenhava o princípio da comunidade judaico-cristã, eles também eram destinatários não apenas de sua história, mas também da promessa de Deus que ela anunciava.
À medida que a Palavra se espalha além de Jerusalém, aumenta a importância de levar em conta narrativamente esse duplo destinatário dos Atos. Algo que Lucas faz pontualmente - convocando os doze para a cena da história e com o envio pela comunidade apostólica de Pedro e João à cidade de Samaria, onde Filipe exerceu com sucesso seu ministério apostólico como disseminador da Palavra. A comunidade discípula que nasce fora de Jerusalém tem a mesma legitimidade e dignidade que aquela gerada em seu interior pelo evento de Pentecostes.
Não importa de onde se origina a fé e se gera uma comunidade, porque o batismo e o dom do Espírito não estão vinculados a nenhuma pertença étnica ou cultural - e geram um sentido de participação e comunidade que é chamada a se distinguir delas.
Mas estar dentro ou fora de “Jerusalém” não é irrelevante para o cristianismo, pois os lugares e os tempos de entrada na comunidade cristã também passam a fazer parte dela. Só assim se pode permanecer fiéis àquela regra da encarnação que Deus escolheu como princípio da sua relação com o homem e a mulher na história humana.
O cristão comum não é feito de um universalismo abstrato, mas da negociação, às vezes laboriosa (como acontecerá com as comunidades paulinas em relação à comunidade de Jerusalém, e depois àquela comunidade joanina), de modos particulares e singulares de explicitar o que une a todos.
Porque, quando a dispersão dos corpos, que arrastam consigo a Palavra, encontra o inédito da cidade, posta à margem pela religião de Jerusalém, a adesão jubilosa a ela exige justamente a negociação de dois comuns diferentes que agora se encontram unidos sob a promessa efetiva de Deus.
Essa oportunidade surge de uma crise radical para a primeira comunidade de Jerusalém: a de ser forçada a deixar as coordenadas habituais e familiares que caracterizaram sua gênese. Essa crise de referências, com a mudança de cenário que comporta, é apresentada por Lucas como oportunidade fecunda para corresponder ao mandato da Palavra no momento em que o Senhor havia se despedido de sua comunidade.
A imagem com que se encerra o Evangelho de Lucas desliza para a narração dos Atos, onde o sujeito da "boa notícia da Palavra" é, em primeiro lugar, a comunidade dos que foram dispersos. O ministério apostólico de Filipe entra em cena apenas num segundo tempo, como exemplo dessa circulação da Palavra fora das fronteiras de Jerusalém.
Esse primado da comunidade, e do que é comum a todos, que encontraremos também em referência ao grupo dos doze, nunca deve ser esquecido quando se imagina o mandato missionário da Igreja, por um lado, e a articulação entre o comum da fé e o particular de um ministério, pelo outro.
Toda a cidade de Samaria se concentra no ministério exemplar de Filipe em razão dos sinais que ele faz circular: libertação do jugo do mal e atestação da vinda do Reino. Sinais que não só podem ser vistos, mas também sentidos: palavra-corpo que precede e funda cada palavra-discurso na ordem do anúncio cristão. Marcando assim o primado das práticas de crer sobre as lógicas do discurso assertivo dentro desse ordenamento cristão do viver.
As práticas do corpo ativadas por Filipe são eficazes porque impactam em uma expectativa global do corpo da cidade, um desejo em busca de sua justa correspondência. Desejo frágil e sem orientação, sempre exposto à possibilidade do engano.
O flashback narrativo, que relata a atividade anterior de Simão, fala justamente desse desejo à mercê das potências malignas; mas é exatamente sobre o terreno dessa ambiguidade básica que a Palavra opera em sua primeira ampliação.
A linha tênue do controle despótico sobre o sagrado e o dom indisponível do Espírito não só atravessa o confronto entre Pedro e Simão, mas acompanha toda a história da comunidade cristã nas épocas de sua peregrinação na história dos homens e das mulheres.
A tentação de um poder de controle sobre as divagações do Espírito e as ampliações da Palavra é a sombra secular contra a qual se mede a qualidade do comum da fé e do particular do exercício ministerial. No momento em que Pedro fala a Simão, fala também a si mesmo e a todos aqueles que se encontrarão no tempo a manejar uma autoridade espiritual dentro da comunidade dos crentes.
A esse confronto, frontal e especular ao mesmo tempo, Pedro chega porque foi enviado, juntamente com João, do grupo dos doze que ficaram solitários em Jerusalém. Este ser da presença apostólica onde a Palavra se manifestou em suas ampliações responde à preocupação de Lucas de confirmar aquelas comunidades cristãs, fora de Jerusalém (e fora do judaísmo), que delas nasceram.
O ministério apostólico chega depois dos gestos corporais de fé acesos pela Palavra em saída, sem ser sua origem - e entra, com seu carisma e mandato particulares, nessa dinâmica de fuga da Palavra à concentração em um único lugar.
Entra nela a tal ponto que a ampliação da Palavra adere aos corpos de Pedro e João que, ao regressarem a Jerusalém, repetem o que já aconteceu através da dispersão dos corpos que, como comunidade, fez transitar a Palavra além das fronteiras de Jerusalém - primeiro para uma cidade de Samaria e depois para todos os lugares do mundo e da história humana.
Deixando no corpo do ministério apostólico o sinal de uma confirmação e retomada de algo que não havia sido ativado por ele.
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Ampliações da Palavra / 1. Artigo de Marcello Neri - Instituto Humanitas Unisinos - IHU