12 Outubro 2022
"Durante a recitação, interrompe-se o tempo cronológico, aquele ritmado pelos afazeres cotidianos, e nasce um espaço temporal anômalo que pode ser compartilhado com outros fiéis. Os sujeitos quase desaparecem em um coro de vozes que fazem a experiência de um intervalo marcado pelo espírito e não por ações concretas".
O comentário é da historiadora da arte italiana Antonella Cattorini Cattaneo, professora de História e Filosofia no Liceo “Antonio Banfi”, em Vimercate, na Itália. O artigo foi publicado por Settimana News, 07-10-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
“Tu cantas aos homens as tuas canções, eu canto aos anjos as minhas orações.” Com essas palavras e com o rosário nas mãos, a voz de contralto da mãe cega de Gioconda se volta para sua inquieta e amadíssima filha, cantora de rua e protagonista da ópera lírica homônima de Amilcare Ponchielli (1834-1886).
Em junho passado, com estudantes e alguns colegas, passei uma bela noite no La Scala de Milão para assistir a essa apresentação, cuja primeira estreia foi no Piermarini em abril de 1876.
No texto, o rosário é um importante sinal de salvação em um caso complexo entre amores não correspondidos, tramas obscuras montadas por um pérfido agente da Inquisição e por um poderoso nobre membro do Conselho dos Dez. Um denso entrelaçamento de eventos humanos que têm como cenário uma Veneza do século XVII que o espírito romântico tardio apreciaria muito.
Não sei se os inúmeros jovens presentes naquela noite (graças também a uma excelente política cultural para as escolas por parte da instituição Scala) refletiram sobre a escolha do libretista Arrigo Boito e do maestro Ponchielli em relação à oração mariana e àquele particular “colar” nas mãos de quem reza. Talvez tenha sido apenas um expediente útil para o dramaturgo para vincular os eventos a um final em que a morte trágica se associa ao amor e a um ato sacrificial.
No entanto, é possível uma outra leitura daquele objeto que passa de mão em mão durante as orações e que pode revelar um significado mais profundo. A coroa do rosário que já pertencera à mãe cega de Gioconda é dada pela própria cega a outra mulher, e isso permitiria a salvação de um casal e do seu amor. “A salvação do mundo na oração mariana”, não por acaso, é o subtítulo de um belo texto do teólogo H. U. von Balthasar intitulado “O rosário” (1977).
Entre a cegueira e as orações, há um fio oculto, quase como aquele que une as contas do conhecido colar que especialmente as mulheres trazem no coração. Para quem recita repetidamente as palavras do anjo a Maria, muitas vezes permanece oculto o resultado das próprias invocações; sabe que certamente não pode ver se e como suas orações serão respondidas.
No entanto, quem liga ao seu dedo aquele fio, recitando as dezenas de Ave-Marias, confia pacientemente na promessa de um Deus misericordioso junto ao qual uma Mãe boa pode interceder e conceder um dom.
Maria foi mestra de paciência ou, melhor, da “perseverança que salva as almas” (Lc 21,19). De fato, ela aprendeu a esperar e a rezar desde a gravidez de seu filho e depois a perseverar em acreditar nas palavras de Gabriel mesmo nos longos tempos em que nada acontecia; a esperar contra toda esperança, debaixo da cruz e até o sepulcro.
“Vivendo no Sábado Santo, infundiu esperança aos discípulos perdidos e desiludidos” (são palavras de Carlo Maria Martini). O filósofo francês contemporâneo J-Y. Lacoste, falando da experiência litúrgica (na verdade, definida por ele com propriedade como uma “não experiência”), reflete a fundo sobre a inoperância de tal lugar espiritual (para ele, um “não lugar”) e sobre a virtude litúrgica superior que a caracteriza, ou seja, a paciência.
Na recitação do rosário, é evidente um longo exercício dessa disposição: repetitividade que beira à ecolalia e à monotonia, pouco espaço para a reflexão conceitual e manifestação de impotência da palavra são próprios dessa oração cujo fio condutor é a invocação a uma mãe que também é Mãe de Deus.
Durante tal recitação, interrompe-se o tempo cronológico, aquele ritmado pelos afazeres cotidianos, e nasce um espaço temporal anômalo que pode ser compartilhado com outros fiéis. Os sujeitos quase desaparecem em um coro de vozes que fazem a experiência de um intervalo marcado pelo espírito e não por ações concretas.
Ouvindo aquele famoso trecho da “Dança das Horas”, inserida na mesma obra de Ponchielli, é possível se perguntar se não foi exatamente a oração mariana quem sugeriu ao compositor notas tão belas e justamente famosas que falam da labilidade e da suspensão das horas. Além disso, a dança – ainda para Lacoste – seria a imagem mais própria do momento litúrgico em que o indivíduo que é corpo e alma atua.
No libreto de Boito, aparecem vozes femininas que recitam ladainhas latinas e invocam a Virgem em contextos difíceis. São vozes de mulheres que demonstram coragem e esperança em um evento histórico marcado por ganâncias obscuras e duplicidades que levam também a atos violentos. A história humana, com suas contradições mais dolorosas, está sempre no pano de fundo da nossa vida de fé.
Também aparece uma definição poética do rosário: “piedoso dom… que une as orações”. Na história narrada no melodrama, o dom é concedido por uma mãe marcada pela cegueira: ela não pode ver o rosto daquela que o recebe, mas esta ficará profundamente envolvida.
A relação mãe-filha é importante aqui, mas fala de uma mulher que sabe viver uma maternidade ampliada a filhos que ela não deu à luz. Precisamente tal maternidade favorecerá horizontes e fará surgir uma nova aurora para quem havia sido enganado e vilipendiado.
É sempre difícil encontrar imagens que narram a vida de fé e a experiência da oração. Como a figura de Deus, a aventura espiritual personalíssima e original também nunca é totalmente alcançável com figuras apropriadas.
No entanto, não são poucos os artistas que tentaram essa façanha. Na busca de representações que narrem a esperança e a luz desencadeada pela oração do rosário – apesar e através dos mistérios dolorosos de que ela faz memória – uma pareceu particularmente convincente.
Capela Matisse ou “do Rosário”, de Henri Matisse (Foto: Musée Matisse)
É aquela assinada por Henri Matisse, que desenhou uma célebre capela para a Congregação das Dominicanas de Monteils, mediante a mediação de uma jovem freira que havia sido sua enfermeira pessoal em tempos de doença. De fato, a célebre Chapelle Matisse de Saint Paul de Vence, no interior de Nice, construída entre 1949 e 1951, é dedicada a Nossa Senhora do Rosário.
A luz intensa da Costa Azul penetra entre as esplêndidas janelas coloridas de amarelo, verde e azul desenhadas com um motivo vegetal estilizado pelo grande Mestre.
Um cromatismo intenso e alegre que dialoga com as superfícies branquíssimas do pequeno espaço sagrado, onde resplandecem nos painéis de cerâmica branca os contornos pretos de figuras sagradas e flores repetidas, muito simples como se fossem desenhadas por uma criança. É Maria, de fato, a “flor da raiz de Jessé”.
Aqui há um lugar ideal para poder expressar a gratidão por aquele dom de Deus que – na escolha da cruz – permite a salvação de todos.
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Rosário: o fio e as contas. Artigo de Antonella Cattorini Cattaneo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU