28 Setembro 2022
Os povos indígenas do Território Indígena do Xingu (TIX), no Mato Grosso, estavam reunidos no centro da aldeia Mehinako para o último dia do Kuarup, o ritual fúnebre que decreta o fim do luto às famílias que perderam seus entes, quando dois homens apareceram no imenso círculo que se formava empunhando um cartaz do presidente Jair Bolsonaro (PL), que tenta a reeleição este ano. Uma mulher indígena, Watatakalu Yawalapiti, caminhou até a dupla que a carregava e pediu que a faixa fosse recolhida. Eles resistiram. Ela, então, puxou com força e pediu ajuda para que mais pessoas se juntassem à ação até conseguir que o objeto saísse de circulação.
A entrevista é de Maria Fernanda Ribeiro, publicada por Amazônia Real, 26-09-2022.
Pessoas filmaram o episódio e o vídeo foi parar nas mãos de Carlos Bolsonaro, filho do presidente, que divulgou em suas redes sociais somente parte da cena ao excluir o momento em que a faixa foi retirada e intitulou o acontecimento de “indiociata”, em uma alusão aos costumes dos bolsonaristas de se reunirem em motociatas, como se os povos do Xingu apoiassem o atual governo. Bolsonaro ocupa o segundo lugar nas intenções de voto, atrás do candidato do PT, Luiz Inácio Lula da Silva, que lidera as pesquisas.
Nas eleições de 2018, Bolsonaro elegeu os povos indígenas como os inimigos do desenvolvimento do país e prometeu e cumpriu não demarcar nenhum centímetro de terra aos povos originários.
O Kuarup era da mãe de Watatakalu Yawalapiti, a pajé Iamony Mehinako, que morreu em maio de 2021 vítima de Covid-19. O ritual, preparado aos mortos ilustres, reúne nove povos da região do Alto Xingu e é uma cerimônia sagrada realizada para levar alegria às famílias enlutadas. Durante o período de luto, os familiares mais próximos não cortam os cabelos, não se pintam, deixam de cantar e dançar. Após o fim do Kuarup, esses rituais tradicionais são retomados.
Em 2 de setembro, dois dias após a divulgação do vídeo, a Associação Terra Indígena Xingu (Atix) emitiu uma nota de repúdio. No documento, informa que o ato foi uma afronta ao ritual sagrado de um povo e que o uso eleitoreiro por parte da família Bolsonaro desonra e fere princípios fundamentais dos xinguanos.
A liderança Watatakalu conversou com a reportagem da Amazônia Real sobre o ocorrido e contou como se sentiu ao ver o ritual da sua mãe ser desrespeitado, a decisão em retirar a faixa e como foram os dias posteriores ao ocorrido. “Fiquei revoltada porque os caras do mal estavam usando a imagem do nosso ritual para se beneficiar porque os não-indígenas sabem fazer isso muito bem, usar a nossa dor, o nosso sofrimento em benefício próprio. Usaram a morte da nossa mãe para dizer que os povos indígenas apoiam esse governo e isso é uma mentira.”
Watatakalu Yawalapiti, Iamony Mehinako e Anna Terra Yawalapiti durante o Encontro de Mulheres 2019, antes da pandemia de Covid-19
Foto de Sitah/Amazônia Real
Como estava o ritual até aquele momento?
Estava tudo muito lindo porque todos os povos estavam participando. Foi muita gente e nunca tinha visto um Kuarup daquele. Senti um respeito muito grande dos povos, talvez porque a minha mãe era pajé e cuidava de todos. A noite de sábado para domingo foi linda, os jovens ficaram acordados a noite toda, nós da família também e no dia seguinte eu estava sentindo um carinho muito grande.
Em que momento do Kuarup aconteceu o episódio do cartaz?
Foi no domingo, no último dia [2 de setembro], quando os povos estavam entrando no centro da aldeia para fazer um círculo e se apresentarem antes do Huka Huka (luta tradicional para testar a força dos jovens), que é a última etapa do ritual. Eu estava fora do círculo observando os povos entrarem quando vi aquela faixa e na hora eu não sabia direito o que fazer. Olhei para os lados e senti que todo mundo ficou parado e que ninguém ia fazer nada também. Fiquei muito preocupada porque se o círculo se fecha não dá para fazer mais nada, não pode intervir. Então, quando eles estavam passando na minha direção, eu fui lá conversar. Não ia puxar a faixa da mão deles.
O que você falou para eles?
Falei que aquele não era o momento, que era o nosso ritual e que eu gostaria que eles respeitassem isso e pedi para entregar o cartaz. E responderam que não, que me dariam depois. Foi quando falei que eles estavam desrespeitando a memória da minha mãe e do meu povo. Aí eu não lembro de mais nada e comecei a puxar e eles resistindo. Eu falei: ‘Você vai ficar famoso por ser o cara que arrastou a dona da festa porque eu não vou largar essa faixa.” E ele me arrastou alguns metros. O que eu senti é que eles estavam com medo de entregar a faixa porque alguém tinha mandado eles levarem para dentro do ritual. Aí minha cunhada e outros não indígenas chegaram para me ajudar e conseguimos tirar a faixa deles.
Quem são eles?
Um deles é um primo meu distante e que fazia tempo que eu não via, do povo Kamayurá. Fiquei surpresa com a presença dele no sábado e feliz também, assim como fiquei com a presença de outros jovens. No fim do Kuarup, quando tudo já tinha acabado, ele foi pedir desculpas e disse que não queria ofender a nossa família e nem a memória da minha mãe. Falei pra ele que tinha ofendido e que eu esperava que ninguém fizesse o mesmo com ele um dia. Também disse que as desculpas não mudavam o que tinha acontecido porque ele deu munição para os nossos inimigos. Ele falou que não, que ninguém veria. Acho que ele ainda não sabia o que os brancos são capazes de fazer e o episódio foi transformado em uma arma contra nós.
O que você fez com a faixa?
Eu levei a faixa para um canto. Poderia ter queimado, mas acho que a gente não pode exagerar na nossa revolta. Fiquei até brava comigo mesma por isso, mas essa foi a educação que recebi dos meus pais. Senti vontade de tacar fogo no centro da aldeia, mas guardei dentro de um carro para depois pensar no que fazer. Para nosso povo, queimar a foto de alguém é muita raiva, muito ódio e é como se a gente estivesse queimando a alma da pessoa. E quem sou eu para queimar a alma de alguém? A gente não pode reagir como eles porque são eles, os bolsonaristas, que têm raiva das pessoas e não nós. Eu não quero esse ódio deles para mim e não quero que nada volte para a minha família. Por isso não queimei.
Kuarup significa “O último choro”, a família fica em volta do tronco em vigília durante toda a noite, alternando momentos de rezas e choros de despedida
(Foto de Sitah/Amazônia Real)
Como você se sentiu com esse episódio?
Foi realmente uma provocação à nossa família porque minha mãe morreu de Covid e ela lutou e brigou muito para tomar a segunda dose da vacina e só conseguiu depois de ter passado o prazo dos dias da primeira vacina. Ela brigou contra esse governo. Então, para a minha família foi muito duro, foi como se estivessem comemorando a morte da minha mãe. Escutei algumas pessoas dizendo para não ir até eles para retirar a faixa, mas deixar aquela imagem circulando num ritual sagrado não tinha como. Fiquei uma semana bem triste mesmo, quieta no meu canto, tentando entender porque isso tinha acontecido.
E chegou a alguma conclusão?
Talvez a gente tenha falhado ao não ter comunicado sobre as manifestações políticas, mas era porque a gente estava seguro de que isso não aconteceria. Eu realmente deixei de me manifestar sobre essas questões políticas porque quis dedicar meus dias ao Kuarup, para que ele acontecesse sem essa interferência do mundo de fora. Porque falar de Bolsonaro é falar de coisa ruim, né? E eu não queria levar nada de ruim para dentro da cerimônia.
Esse tipo de manifestação política já tinha acontecido antes? É permitido?
Só são permitidas manifestações nos círculos e carregar uma faixa se todo mundo estiver de acordo e se não incomodar os donos da festa. E nesse Kuarup a minha família era a dona e não sabíamos de nada.
Como você se sentiu quando viu que o vídeo estava sendo usado pela família Bolsonaro?
Eu fiquei revoltada porque os caras do mal estavam usando a imagem do nosso ritual para se beneficiar. Porque os não-indígenas sabem fazer isso muito bem, de usar a nossa dor, o nosso sofrimento em benefício próprio. Usaram a morte da nossa mãe para dizer que os povos indígenas apoiam esse governo e isso é uma mentira. Não era uma indiociata e isso mostrou, mais uma vez, um desrespeito muito grande dos brancos com os povos indígenas.
E vocês sabem como esse vídeo foi parar com os bolsonaristas?
A gente tem suspeitas, mas não temos certeza. Mas eu acredito que foi uma mulher branca e acho que foi de propósito mesmo. A gente não sabia que tinha bolsonaristas entre os convidados, mas certamente não eram os meus convidados porque não tenho amigos apoiadores desse governo. Mas isso serve de aprendizado para a gente entender melhor quem estamos levando para dentro da nossa aldeia.
Dança dos homens – Kuarup do povo Mehinako
Foto de Sitah/Amazônia Real
O povo xinguano apoia o atual governo?
Os Kamayurá (a dupla que carregou a faixa é desse povo) afirmam que lá dentro tem só quatro pessoas e são indígenas que vivem na cidade. O próprio povo Kamayurá é contra o Bolsonaro. Foi um ato completamente isolado e que não nos representa. O público do presidente acredita que realmente os povos indígenas fizeram aquela manifestação. Imagina aquele monte de gente fazendo um círculo para apoiar o Bolsonaro? Nunca. Isso não existe.
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Lute como Watatakalu Yawalapiti - Instituto Humanitas Unisinos - IHU