13 Setembro 2022
O filósofo e ensaísta catalão Josep María Esquirol (Mediona, 1963) trabalha em seu escritório, na Faculdade de Filosofia da Universidade de Barcelona. É meio-dia, faz calor, os alunos vêm e vão porque é o período de exames e consultas. As aulas terminaram neste semestre e essa pausa é propícia para o encontro. Após a troca de alguns e-mails entre Buenos Aires e Barcelona, finalmente, acontecerá a entrevista com [a revista] Ñ.
Apesar de ser reconhecido, sobretudo após ter recebido o Prêmio Nacional de Ensaio da Espanha, em 2016, por seu livro A resistência íntima, Esquirol mantém uma vida simples e metódica – kantiana, diz ele – entre seu povoado natal – Saint Joan de Mediona, a uma hora de Barcelona –, onde mora com sua família, e suas aulas na universidade.
Escreve em catalão. Sua prosa é agradável, quase poética, mas sobretudo mantém a coerência entre esta forma de pensar e de escrever com a sua vida. Tenta viver no que chama de “marginalidade fecunda”, de onde incide periódica e prolificamente com seus livros, artigos, entrevistas e conferências.
A entrevista é de Ana Roberts, publicada por Clarín-Revista Ñ, 12-09-2022. A tradução é do Cepat.
A que resistência se refere no título "A resistência íntima"?
Nós, humanos, resistimos ao que nos prejudica. Procuro recuperar certa ideia de sujeito, de alguém capaz de resistir tanto contra a dissolução do eu em muitos ‘eus’, como contra a dissolução do eu em alguma totalidade impessoal.
Ao contrário dessas abordagens pós-modernas, mantenho a ideia de um sujeito resistente. Um eu que resiste frente à erosão dos contextos que desagregam a individualidade, e um eu atento à sua inflação degenerativa nas formas de egoísmo e de soberba.
O resistente tem que ser alguém humilde, mas não no sentido de Nietzsche, onde o fraco se submete e é um submisso, mas porque se sabe partícipe da condição de intempérie, que compartilha fraternalmente com os outros. O humilde vê o outro no mesmo nível e no mesmo barco. Ninguém acima do outro.
O resistente acredita em algo. A absoluta desesperança o aproxima do abismo do nada. O resistente é alguém que sustenta a ideia de que algo diferente é possível. E isso não é uma simples utopia para o futuro.
O que postula sua “filosofia da proximidade” e, a partir daí, como responde à angústia da qual Heidegger e Sartre nos falam?
A autenticidade não está apenas na aventura e no extraordinário. Acredito firmemente que há muita profundidade em muitos gestos e situações cotidianas. Em muitas coisas relativas, por exemplo, à casa.
A casa acolhe a solidão e a companhia. Mas “casa” não só, nem principalmente, no sentido de elemento arquitetônico, mas no tocante ao movimento do recolher-se e do resguardar-se, onde se estabelece os laços da familiaridade.
Esses laços, obviamente, não têm o porquê ter um fundamento biológico. Tornamo-nos próximos e achegados aos outros, e isto é a familiaridade. Utilizo o adjetivo “íntimo” como sinônimo de próximo. Por isso, a resistência é íntima. Os vínculos são criados. A proximidade se dá em relação a outros e também a suas coisas, seus livros, sua paisagem, seu céu.
Compartilhar é gerar companhia cotidiana. A proximidade é algo como uma constituição sob o mesmo teto. Companheiro etimologicamente é aquele que compartilha o pão. Os que estão na mesma mesa são irmãos, vizinhos, humanos.
Não há domínio. Por isso, faço uma apologia do “casar”, que inclui o se aproximar e se unir. A proximidade e o aconchego são formas de enfrentar a angústia da existência.
Quem são suas referências na filosofia?
Todo pensar é um pensar em diálogo. Toda filosofia se alimenta de outras filosofias. Os autores contemporâneos que mais influenciaram meu caminho e a elaboração de minha própria proposta filosófica são Jan Patočka e Emmanuel Levinas. Também, embora um pouquinho menos, Emmanuel Mounier, Paul Ricoeur, Simone Weil, entre outros.
No último de seus livros publicados "Humano, más humano" (Acantilado, 2021) há um contraponto com Nietzsche que serve para o desenvolvimento de uma antropologia diferente. Onde está o paradoxo que propõe?
Acredito que o maior problema não vem do desenvolvimento científico-tecnológico, mas da ideologia que o acompanha. Esta ideologia, como já dizia Marx, é como uma droga que nos evade.
Hoje, falamos muito do futuro, quando o que necessitaríamos é falar mais de nosso presente e de enfrentar os problemas tão graves que temos. O transumanismo faz parte dessa ideologia evasiva, dessa cortina de fumaça.
Sim, talvez alguém possa acreditar que iremos “para além do humano”. Mas será muito triste que esta viagem a parte alguma seja feita à custa de ficar restrito em humanidade. E justamente aí faço a variação sobre o título nietzschiano.
Em Humano, demasiado humano, há algo como uma queixa, um lamento por não ir para além do humano. Em Humano, más humano, o que faço é indicar que o melhor horizonte para o nosso pensamento e a nossa ação é adentrar ainda mais no mais humano do humano.
Você disse: “A dificuldade da existência não é uma doença” e relaciona isto com a “visão médica” de Flaubert. Que diferença encontra entre esta “visão médica” e a excessiva patologização da vida que também denuncia ali?
Ou a filosofia cuida ou não faz o que deveria fazer. Por isso, digo que a visão filosófica é uma visão médica. Viver não é fácil. E experimentar essa dificuldade não deve ser associado a estar doente.
A droga faz parte da história da humanidade justamente por essa dificuldade. Mas a evasão contínua não é boa. É preciso ter força e confiança suficientes para enfrentar a dificuldade da vida e as “dificuldades”.
Acredito que a filosofia – o pensar – deve e pode contribuir para essa confiança. Hoje, existem muitas “depressões” que não deveriam ser tratadas farmacologicamente. Não são doenças no sentido habitual da palavra.
Suas três últimas obras parecem ter uma espécie de fio condutor. Há um quarto livro a caminho?
Não é uma trilogia. São expressões dos diversos trechos do caminho que estou percorrendo, e no qual persistirei. A paciência e a perseverança levam à maturidade, e nisso o pensar e o viver são a mesma coisa.
Minha vida profissional é a docência e o estudo (ou o que antes se chamava vida contemplativa). Espero poder publicar um novo livro daqui a um ou dois anos. Irá na mesma direção dos anteriores e terá o mesmo horizonte. Mas novas paisagens serão vistas.
Você expõe uma intenção de repensar categorias filosóficas. Qual é o seu propósito ao fazer isto?
Pensar é criar um mundo próprio, conceitual e terminológico. Há conceitos-chave que são como a base de tudo. Eu chamo isso de “minha constelação conceitual”. E depois vem a terminologia e o estilo.
Opto por uma terminologia o menos tecnicista possível, porque tenho a convicção de que o mais profundo pode ser dito com a linguagem coloquial, que é a mais rica de todas. O estilo é indefinível, mas vai por aí: busco simplicidade com profundidade e isto espontaneamente tem alguma beleza.
Evidentemente, depois vem aquilo do qual quero me distanciar. As linguagens abstratas e supostamente científicas que proliferam nas assim chamadas ciências humanas e sociais são uma expressão do domínio não da ciência, mas da ideologia científico-tecnológica. Empobrecem nossa vida. Saberes que outrora chamávamos de humanistas acreditam ganhar seriedade com uma linguagem especializada e técnica e, na realidade, degeneram e nos confundem.
Quando se adquire certa capacidade para diferenciar, percebe-se que essa linguagem é vazia. Na psicologia, ciência política, pedagogia, economia, sociologia e até na filosofia, promove-se uma linguagem supostamente científica, mas que não faz sentido para a existência.
Dói em mim tal perversão nas ciências humanas, que tendem muito mais a ser desumanas porque acreditam explicar e dissolver a profundidade da pessoa e da comunidade humana. Ignoram que o “segredo” nos constitui.
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“O resistente sustenta a ideia de que algo diferente é possível”. Entrevista com Josep María Esquirol - Instituto Humanitas Unisinos - IHU