09 Setembro 2022
"O discernimento é a ajuda para reconhecer os sinais com que o Senhor se deixa encontrar em situações imprevistas, até mesmo desagradáveis, como foi para Inácio a ferida na perna. Delas pode surgir um encontro que muda a vida, para sempre, como no caso de Inácio", escreve o Papa Francisco em reflexão publicada no Vatican News, 08-09-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Caros irmãos e irmãs, bom dia!
Continuamos a nossa reflexão sobre o discernimento - neste tempo falaremos todas as quartas-feiras sobre discernimento espiritual - e para isso pode nos ajudar uma referência a um testemunho concreto.
Um dos exemplos mais instrutivos é oferecido por Santo Inácio de Loyola, com um episódio decisivo em sua vida. Inácio está se recuperando em casa depois de ser ferido na perna em batalha. Para afastar o tédio, pede algo para ler. Ele adorava contos de cavalaria, mas infelizmente em casa só tem vidas de santos. Ele se adapta com certa relutância, mas no decorrer da leitura começa a descobrir outro mundo, um mundo que o conquista e parece em concorrência com aquele dos cavaleiros. Ele é fascinado pelas figuras de São Francisco e São Domingos e sente o desejo de imitá-los. Mas também o mundo cavalheiresco continua a exercer seu fascínio sobre ele. E assim ele sente dentro de si essa alternância de pensamentos, os da cavalaria e os dos santos, que parecem ser equivalentes.
Inácio, no entanto, também começa a notar diferenças. Na sua Autobiografia - na terceira pessoa - escreve o seguinte: “Pensando nas coisas do mundo - e nas coisas cavalheirescas, claro - sentia muito prazer, mas quando, por cansaço, as abandonava sentia-se vazio e decepcionado. Em vez disso, ir a Jerusalém de pés descalços, comer apenas ervas, praticar todas as austeridades que ele conhecia habituais aos santos, eram pensamentos que não apenas o consolavam enquanto ali permanecia, mas mesmo depois de abandoná-los também o deixavam satisfeito e cheio de alegria."(Nº 8); deixavam nele um rastro de alegria.
Nessa experiência podemos notar principalmente dois aspectos. O primeiro é o tempo: ou seja, os pensamentos do mundo no começo são atraentes, mas depois perdem o brilho e deixam vazio, deixam descontente, deixam você assim, uma coisa vazia. Os pensamentos de Deus, ao contrário, a princípio despertam certa resistência - "Mas essa coisa chata dos santos eu não vou ler", mas quando você os acolhe trazem uma paz desconhecida, que dura muito tempo.
Eis então o outro aspecto: o ponto de chegada dos pensamentos. No início a situação não parece tão clara. Há um desenvolvimento do discernimento: por exemplo, entendemos o que é bom para nós não de forma abstrata, geral, mas no percurso de nossa vida. Nas regras do discernimento, fruto dessa experiência fundamental, Inácio coloca uma premissa importante, que ajuda a compreender esse processo: "Nas pessoas que vão de pecado mortal em pecado mortal, costuma ordinariamente o inimigo propor-lhes prazeres aparentes, fazendo-lhes imaginar deleitações e prazeres sensuais, para mais as conservar e fazer crescer em seus vícios e pecados. Com estas pessoas o bom espírito usa um modo contrário: punge-lhes e remorde-lhes a consciência pelo instinto da razão” (Exercícios Espirituais, 314); mas isso não está certo.
Há uma história que precede quem discerne, uma história que é indispensável conhecer, porque o discernimento não é uma espécie de oráculo ou fatalismo ou coisa de laboratório, como lançar a sorte entre duas possibilidades. As grandes questões surgem quando na vida já percorremos um trecho do caminho, e é para tal percurso que devemos retornar para entender o que estamos buscando. Se na vida se percorre um pouco de caminho, aí: “Mas por que estou andando nessa direção, o que eu procuro?”, e aí se faz o discernimento. Inácio, quando estava ferido na casa de seu pai, não pensava em Deus nem em como reformar sua vida, não. Ele faz sua primeira experiência de Deus ouvindo seu próprio coração, que lhe mostra uma curiosa inversão: as coisas atraentes à primeira vista o deixam desapontado e em outras, menos brilhantes, ele percebe uma paz que dura no tempo. Nós também temos essa experiência, muitas vezes começamos a pensar em algo e ficamos ali e depois nos decepcionamos.
Em vez disso, fazemos uma obra de caridade, fazemos uma coisa boa e sentimos um sentimento de felicidade, vem um bom pensamento e vem a felicidade, uma espécie de alegria, é uma experiência totalmente nossa. Ele, Inácio, tem a primeira experiência de Deus, ouvindo seu próprio coração que lhe mostra uma curiosa inversão. Isto é o que devemos aprender: ouvir o coração, para saber o que acontece, que decisão tomar, julgar uma situação, você precisa ouvir o seu coração. Ouvimos televisão, rádio, celular, somos mestres da escuta, mas eu lhe pergunto: você consegue escutar o seu coração? Você para um pouco para dizer: “Mas como está meu coração? Está satisfeito, está triste, está procurando alguma coisa?". Para tomar boas decisões, é preciso ouvir o coração.
Para isso Inácio irá sugerir a leitura das vidas dos santos, pois mostram de forma narrativa e compreensível o estilo de Deus na vida de pessoas não muito diferentes de nós, pois os santos eram de carne e osso como nós. Suas ações falam com as nossas e nos ajudam a entender seu significado.
Naquele famoso episódio dos dois sentimentos que Inácio teve, um quando lia os feitos dos cavaleiros e outro quando lia a vida dos santos, podemos reconhecer outro aspecto importante do discernimento, que já mencionamos da última vez. Há uma aparente casualidade nos acontecimentos da vida: tudo parece surgir de um banal contratempo: não havia livros de cavaleiros, mas apenas vidas de santos. Um contratempo que, no entanto, contém uma possível reviravolta. Só depois de algum tempo Inácio perceberá isso e, nesse ponto, dedicará toda a sua atenção a isso. Ouçam com atenção: Deus trabalha através de eventos não programáveis, aquele por acaso, mas por acaso isso aconteceu comigo, por acaso eu conheci essa pessoa, por acaso eu vi esse filme, não era planejado, mas Deus trabalha através de eventos não programáveis, e também de contratempos: “Mas tinha que fazer um passeio e tive um problema nos pés, não posso…”. Contratempo: o que Deus está lhe dizendo? O que a vida está lhe dizendo neste momento?
Também vimos isso em uma passagem do Evangelho de Mateus: um homem que está arando um campo acidentalmente encontra um tesouro enterrado. Uma situação completamente inesperada. Mas o importante é que ele a reconheça como um golpe de sorte em sua vida e decida de acordo: vende tudo e compra aquele campo (cf. 13,44). Um conselho que vos dou, cuidado com as coisas inesperadas. Aquele que diz: "mas isso por acaso eu não esperava". A vida está falando com você aí, o Senhor está falando com você ou o diabo está falando com você? Alguém. Mas há algo a discernir, como reajo diante de fatos inesperados. Mas eu estava tão tranquilo em casa e "toc, toc", chega a sogra e como você reage com a sogra? É amor ou é outra coisa dentro? E você faz o discernimento. Eu estava trabalhando bem no escritório e um colega vem me dizer que precisa de dinheiro e como você reagiu? Ver o que acontece quando vivenciamos coisas que não esperávamos e ali aprendemos sobre como se move o nosso coração.
O discernimento é a ajuda para reconhecer os sinais com que o Senhor se deixa encontrar em situações imprevistas, até mesmo desagradáveis, como foi para Inácio a ferida na perna. Delas pode surgir um encontro que muda a vida, para sempre, como no caso de Inácio. Pode surgir algo que faça você melhorar em seu caminho ou piorar não sei, mas é preciso estar atentos e o fio condutor mais bonito é dado pela situações inesperadas: “como me movo diante disso?”. Que o Senhor nos ajude a sentir o nosso coração e ver quando é Ele quem está agindo e quando não é Ele e é outra coisa.
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Papa Francisco: “Deus também fala através dos imprevistos” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU