30 Agosto 2022
"O desafio, hoje, é buscar um sistema alimentar que dependa cada vez menos de combustíveis fósseis e adote práticas agrícolas regenerativas e sustentáveis, como a agroecologia, de modo a reduzir a dependência de insumos externos e aumentar o preservação ao meio ambiente", afirma Frei Betto, escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.
No Brasil, passa de 30 milhões o número de pessoas com fome crônica. Como admitir que um país, com um território tão vasto e fértil, que colhe cerca de 270 milhões de toneladas de grãos na safra 2021/2022 (1,3 tonelada por habitante), possa ter índices tão alarmantes de famintos? E são mais de 100 milhões de habitantes em insegurança alimentar. No mundo, a fome ameaça a sobrevivência de quase 1 bilhão de pessoas. Por quê?
O preço do trigo se manteve estável nos últimos 30 anos. As safras de 2020 e 2021 foram boas e os estoques, suficientes. O problema é que muitos países, sobretudo na África e na América Latina, são fortemente dependentes de bens alimentares, como cereais e óleos vegetais, produzidos por Rússia e Ucrânia. A guerra afeta duramente a produção e a exportação, e deixa os importadores sem alternativas viáveis.
A inflação dos preços dos alimentos no mundo não é propriamente consequência do conflito entre ucranianos e russos. Ela teve início nos primeiros meses de 2020, quando houve aumento dos preços de petróleo e gás. Quando as ações de gás e petróleo subiram nas Bolsas de Valores, sinalizou-se que o preço dos alimentos teria alta. E o nosso sistema alimentar é muito dependente desses combustíveis, sobretudo na produção de pesticidas e fertilizantes, e em transporte, processamento e conservação dos produtos.
Quanto mais sobem os preços dos combustíveis fósseis, tanto mais considerável parcela de produtos agrícolas deixa de ser destinada ao consumo humano para gerar biocombustíveis. E a Bolsa de Chicago, que regula os preços dos alimentos, favorece a especulação ao taxar a cesta que associa petróleo, gás e minerais a produtos agrícolas.
Os principais biocombustíveis produzidos no Brasil são o biodiesel e o etanol. O biodiesel deriva de oleaginosas (mamona, algodão, amendoim, dendê, girassol e soja), e de matérias-primas alternativas, como gordura animal, óleos de frituras e gorduras residuais.
O agronegócio, tão aclamado pelo capitalismo, produz hoje menos para alimentar pessoas e mais para abastecer veículos e gerar eletricidade.
Em 2020, a produção brasileira de etanol foi de 32,6 bilhões de litros, um decréscimo de 9,5% em relação a 2019. A produção de açúcar apresentou um aumento de 39%, alcançando 41,5 milhões de toneladas, e suas exportações cresceram 13,9 milhões de toneladas (acréscimo de 71,7%) - dois recordes históricos. O setor sucroenergético processou 663 milhões de toneladas de cana-de-açúcar, 1,3% superior ao ano anterior (MAPA, 2021).
A produção nacional de etanol de milho quase duplicou, alcançando 2,4 bilhões de litros em 2020, um aumento de 82%. Para a safra 2021/22, espera-se redução na moagem de cana, devido à seca em algumas regiões e à diminuição da área de plantio pela concorrência com alguns cultivos, como soja e milho, que têm tido boa rentabilidade.
O desafio, hoje, é buscar um sistema alimentar que dependa cada vez menos de combustíveis fósseis e adote práticas agrícolas regenerativas e sustentáveis, como a agroecologia, de modo a reduzir a dependência de insumos externos e aumentar o preservação ao meio ambiente.
Devemos nos empenhar em depender cada vez menos das multinacionais que controlam o comércio de alimentos no mundo. Para isso, é preciso valorizar as agriculturas familiar, urbana e suburbana. Aproveitar cada pedaço de terra – um lote, um terreno baldio, um quintal – para semear alimentos. Fortalecer a conexão entre campo e mesa, livre da intermediação especulativa.
Todo esse processo depende muito da educação nutricional. Sem mudanças de hábitos alimentares, valorização da agricultura familiar e canais alternativos de abastecimento de feiras livres e supermercados, a sociedade continuará refém dos que tratam os alimentos como mero valor de troca, e não valor de uso.
A educação alimentar nos ensina a abandonar o consumo de alimentos ultra processados, desprovidos de valor nutritivo, e evitar o desperdício. Alimento é fator de comunhão, comum união, entre familiares e amigos. E, hoje em dia, há microapartamentos sem fogão, com apenas um micro-ondas para aquecer as refeições que já chegam prontas. É preciso vencer todos esses os obstáculos à boa alimentação e resgatar o seu valor de nutrição e comunhão. Caso contrário, a saúde do planeta e de vidas humanas estará cada vez mais prejudicada.
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Comida no prato ou no tanque de combustível? Artigo de Frei Betto - Instituto Humanitas Unisinos - IHU