Lavouras de biodiesel espalham-se e já ocupam área que poderia alimentar 2 bilhões de pessoas. Produção engorda civilização do automóvel enquanto devasta biomas, inflaciona alimentos e expulsa lavradores e indígenas de suas terras.
A reportagem é de George Monbiot, publicado por The Guardian e reproduzido por OutrasPalavras. A tradução é de Maurício Ayer, 06-07-2022.
O que dizer de governos que, em meio a uma crise alimentar global, preferem alimentar máquinas? Você pode dizer que são loucos, indiferentes ou cruéis. Mas essas palavras mostram-se muito insuficientes quando você quer descrever a queima de alimentos enquanto milhões morrem de fome.
Não é nada complicado entender os efeitos de se transformar lavouras em biocombustível. Se a comida é usada para abastecer os carros, gerar eletricidade ou aquecer as casas, ou essa comida é arrancada das bocas humanas ou os ecossistemas serão arrancados da superfície do planeta, à medida que as terras aráveis se expandem para acomodar a demanda extra. Mas os governos e as indústrias que eles favorecem tratam de obscurecer essa verdade óbvia. Eles nos distraem e nos confundem a respeito de uma solução evidentemente falsa para o colapso climático.
Desde o início, os incentivos e regras que promoviam os biocombustíveis em ambos os lados do Atlântico tinham pouco a ver com salvar o planeta e tudo a ver com oportunismo político. Angela Merkel pressionou por uma resolução da UE em prol dos biocombustíveis como meio de evitar padrões mais rígidos de economia de combustível para os fabricantes de automóveis alemães. Nos EUA, eles são usados há muito tempo para elevar o preço dos grãos e reservar aos agricultores um mercado garantido. É por isso que o governo Biden, à medida que as eleições de meio de mandato se aproximam, permanece comprometido com esta crueldade.
Como mostra o grupo de investigação Transportes e Meio Ambiente, a terra usada para cultivar os biocombustíveis consumidos na Europa cobre 14 milhões de hectares: uma área maior que a Grécia. Do óleo de soja consumido na União Europeia, 32% são comidos por carros e caminhões. Eles devoram 50% de todo o óleo de palma usado na UE e 58% do óleo de canola. Ao todo, 18% do óleo vegetal do mundo é transformado em biodiesel e 10% dos grãos do mundo são transformados em etanol, para misturar com gasolina.
Um novo relatório da Green Alliance, um think tank independente, mostra que os alimentos usados para biocombustíveis apenas pelo Reino Unido poderiam alimentar 3,5 milhões de pessoas. Se a produção de biocombustíveis cessasse em todo o mundo, de acordo com uma estimativa, as lavouras poupadas poderiam alimentar 1,9 bilhão de seres humanos. O único resultado consistente e confiável dessa tecnologia é a fome.
Não se trata apenas de uma pressão ascendente sobre os preços dos alimentos, por maior que seja. Os mercados de biocombustíveis também fornecem um grande incentivo para a apropriação de terras de pequenos agricultores e povos indígenas. Desde 2000, 10 milhões de hectares de terra da África, muitas vezes a melhor terra, foram comprados ou confiscados por fundos soberanos, corporações e investidores privados. Eles substituem a produção de alimentos para a população local por “culturas flexíveis”: commodities como soja e milho que podem ser redirecionadas para os mercados de alimentos, ração animal ou biocombustível, dependendo de qual esteja pagando preços mais altos. A apropriação de terras é uma das principais causas de miséria e fome.
À medida que os biocombustíveis aumentam a demanda por terras, florestas tropicais, campos e savanas na Indonésia, Malásia, Brasil e África são desmatados. Há um limite para o quanto podemos comer. Não há limite para o quanto podemos queimar.
Todas as principais fontes agrícolas de biodiesel têm um impacto climático maior do que os combustíveis fósseis que substituem. O óleo de canola causa 1,2 vez mais aquecimento global; o óleo de soja, o dobro; o óleo de palma, três vezes. O mesmo vale para etanol feito de trigo. No entanto, este fato não impediu a reabertura de uma usina de bioetanol em Hull, em resposta a incentivos governamentais, que utilizará o trigo cultivado em 130 mil hectares de terra.
Sempre que um novo mercado de biocombustíveis é lançado, nos dizem que ele funcionará com resíduos. Um exemplo recente é a afirmação da BP [British Petroleum] de que os aviões serão abastecidos por “matérias-primas sustentáveis, como óleo de cozinha usado e lixo doméstico”. Invariavelmente, assim que o mercado se desenvolve, passam a ser cultivadas lavouras dedicadas para supri-lo. Todos os resíduos que podem ser extraídos de forma realista já estão sendo usados, mas representam apenas 17% do biodiesel da UE e quase nada de bioetanol. Mesmo esses números, de acordo com um denunciante da indústria que me contatou, são exagerados: como o óleo de palma residual, graças à demanda por biodiesel “verde”, pode ser mais valioso do que óleo novo, suprimentos frescos são supostamente inseridos no fluxo dos resíduos.
Longe de atender às preocupações, no entanto, no ano passado o governo do Reino Unido, “respondendo ao retorno dado pela indústria”, aumentou sua meta para a quantidade de biocombustível usado no transporte de superfície. Pior, justifica a contínua expansão de aeroportos com a alegação de que os aviões em breve poderão usar combustíveis “sustentáveis”. Na prática, isso quer dizer biocombustível, pois nenhuma outra fonte “sustentável” poderia ser usada como combustível para as viagens aéreas em massa no médio prazo. Mas não há meios para abastecer mais do que um pequeno número de aviões com esse combustível sem acarretar tanto a fome global quanto a catástrofe ecológica.
Agora a empresa de energia Ecotricity relançou um plano para transformar 6,4 milhões de hectares do Reino Unido – mais de um quarto de sua área terrestre – em matéria-prima para usinas de biogás. O fundador da Ecotricity, Dale Vince, fez a surpreendente afirmação de que “é um plano sem desvantagens”. Mas, como os críticos têm tentado apontar para ele, esse esquema incorreria em enormes custos de oportunidade ecológicos, de carbono e de alimentos. Em outras palavras, a terra poderia ser usada para cultivar alimentos; ou, se deixasse de ser usada para a produção de alimentos, consumiria mais carbono e abrigaria mais vida selvagem se fosse reflorestada. A produção de biogás também desencadeou severos eventos de poluição, causados pela dispersão de resíduos de volta na terra, o que é uma parte crucial do plano da Ecotricity, ou por vazamentos e rupturas. É a pior proposta de uso da terra que já vi no Reino Unido.
Quando desafiei Vince sobre essas questões, ele me disse: “Não somos uma grande corporação malvada. Somos ambientalistas que metem a mão na massa, e muitas vezes, quando começamos algo novo, perturbamos a visão estabelecida das coisas.”
Mas não podemos usar esse tipo de solução para resolver nossa crise climática. Para deixar os combustíveis fósseis no solo, devemos mudar nosso sistema de energia: nossa necessidade de viajar, nossos modos de transporte, a economia de combustível de nossas casas e os meios pelos quais as aquecemos. Os biocombustíveis modernos, usados em escala, não são mais sustentáveis do que uma variedade mais antiga: o óleo de baleia. E queimar comida é a própria definição de decadência.