#ElasQueLutam! Influenciadora e apresentadora leva os saberes tradicionais, a política indigenista e o ativismo climático para o centro do debate com carisma e criatividade.
A reportagem é de Victória Martins, publicada por Instituto Socioambiental - ISA, 15-08-2022.
Quando criança, Samela Sateré Mawé gostava de colecionar moedas que sua avó trazia de presente de viagens internacionais, brincar com as roupas de frio da matriarca da família e ver suas fotos em lugares distantes. Como defensora dos direitos das mulheres indígenas, Zenilda Sateré, a avó, vivia levando as demandas das comunidades originárias para fora do país. E foi a estas lembranças que Samela retornou quando ela viajou para Escócia em novembro de 2021, para participar da COP 26.
“Quando eu vi todas aquelas pessoas fazendo entrevista minha, batendo foto minha, eu lembrei de toda essa infância. E isso me tocou muito, porque eu falei: ‘estou traçando o mesmo caminho que a minha avó traçou há muito tempo’”, recorda.
A participação na COP 26 veio porque Samela desponta hoje como uma importante liderança indígena e ativista, cujo campo de atuação reside notadamente na internet. Comunicadora e influenciadora digital, ela já conta com mais de 76 mil seguidores em seu perfil pessoal do Instagram, onde explica pautas da política indigenista e dos costumes dos povos originários com carisma e criatividade.
As mulheres sempre foram referência para Samela, a começar pela avó e pela mãe, Regina Sateré Mawé. “São elas que abriram caminho para mim”, conta. “Mas eu me inspiro em todas elas: na Sônia [Guajarara], na Célia [Xakriabá], na Alessandra [Munduruku]. Eu tenho muito respeito e queria ser algum dia como elas”.
Samela cresceu dentro da Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé, entidade criada por Zenilda Sateré após sua chegada em Manaus (AM).
A organização promove o artesanato feito pelas mulheres do povo e o protagonismo político dessas lideranças. Desde pequena, ela frequenta reuniões e marchas do movimento indígena.
“Eu sempre participei, mas nos bastidores, vendendo artesanato, ou pintando, acompanhando minha mãe”, conta.
Quando era pequena, lembra, ficava sentada no chão desenhando enquanto escutava as adultas discutindo pautas e reivindicações.
“E sempre foram pelos mesmos objetivos: luta por terra, educação, saúde, língua, identidade”. Por isso, costuma dizer que sempre foi ativista, ainda que só tenha aprendido o significado da palavra quando já era um pouco mais velha.
Ela se recorda bem desse momento: estava nos primeiros anos da faculdade de Biologia na Universidade do Estado do Amazonas (UEA) e comentou que precisaria sair mais cedo para ir a um ato com sua família. Foi quando uma colega perguntou: ‘vocês são ativistas?’ e ela percebeu que não sabia exatamente o que aquilo queria dizer. ‘São pessoas que lutam por alguma causa’, respondeu a colega.
Refletindo sobre a expressão, Samela concluiu que não existe outro jeito de existir sendo indígena. “Não tem um momento da nossa vida em que a gente escolhe sermos ativistas dos direitos humanos, dos direitos dos Povos Indígenas, ativistas ambientais. A gente nasce e todas essas causas se entrelaçam no nosso dia a dia,” aponta. “É uma palavra nova para descrever o que a gente já faz há muito tempo.”
Foi na universidade, também, que Samela começou a ganhar maior notoriedade como jovem liderança indígena. “A gente precisava se reunir para garantir o direito à permanência. E, como eu era uma das pessoas que nasceu no movimento, eu tinha um posicionamento [e] mais embasamento para falar”, afirma. Ela se uniu ao Movimento de Estudantes Indígenas do Amazonas, do qual participa até hoje.
No entanto, o salto de jovem ativista local para nacional se deu durante a pandemia de Covid-19. Quando a Associação de Mulheres Indígenas Sateré Mawé (AMISM) começou a confeccionar máscaras de tecido, foi preciso uma porta-voz para divulgar os produtos, discutir as pressões da pandemia sobre o povo Sateré Mawé e fortalecer a presença online da entidade. Foi aí que Samela entrou.
“As mulheres não tinham muita afinidade com as câmeras. Então, eu vim mais para a parte do ativismo digital, [de participar] de entrevistas, rodas de conversa, lives,” comenta. “Foi como se você passasse a vida toda escutando e chegasse um momento que você colocasse para fora tudo o que você aprendeu”.
O espaço em frente às câmeras foi se tornando mais confortável e Samela se descobriu comunicadora. “A pandemia escancarou as portas da internet para muitas pessoas, e nós fomos entrando nesse universo e demarcando as redes; as telas”, complementa.
A desenvoltura para fazer vídeos e se expressar no meio digital chamou a atenção de outros perfis, como o do Canal Reload, iniciativa que pretende fazer jornalismo para a juventude, com linguagem leve e descomplicada. Samela foi indicada pela equipe do site Amazônia Real, com quem havia participado de uma oficina sobre redes sociais e comunicação digital em 2018 e para quem já era uma jovem comunicadora em potencial. Hoje, Samela é uma das apresentadoras do canal, para quem produz conteúdo sobre as pautas indígenas e socioambientais.
“Foi muito bom, porque eu comecei a dialogar mais, gesticular mais, ser mais desenvolta. E aí eu já comecei a mediar rodas de conversa; uma coisa foi levando à outra”, diz.
Samela também atraiu os olhares de Sonia Guajajara, ex-coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). “[Ela] viu meus vídeos descomplicando as notícias sobre povos indígenas e falou: ‘eu quero essa menina bem aqui’”, ri. Samela passou a integrar também a equipe de comunicação da Apib e da Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (Anmiga), ajudando na gestão das redes sociais, fazendo vídeos-convite para atos e na cobertura de eventos como o Acampamento Terra Livre e a Marcha das Mulheres Indígenas.
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“A gente se enxerga na nossa etnomídia. Nós somos os protagonistas da nossa história, nós estamos mostrando o que está acontecendo com o nosso povo, nos nossos territórios,” explica. “Então se tornou uma ferramenta de luta, resistência e decolonização.”
Também durante a pandemia de Covid-19, a organização Fridays For Future Brasil a procurou para que ajudasse a mapear as necessidades das comunidades indígenas da Amazônia e viabilizar doações de cestas básicas, kits de higiene e ambulâncias.
Samela juntou-se ao movimento, criado pela sueca Greta Thunberg, e se descobriu ativista climática. “A pauta ambiental não se dissocia da pauta indígena, porque os territórios indígenas são os que mais preservam a biodiversidade, a flora, a fauna,” reflete. “Quando há uma grande taxa de desmatamento, há um desequilíbrio no clima. E nós, Povos Indígenas, impedimos que isso aconteça”.
Para Samela, participar das discussões sobre as mudanças climáticas é também conseguir aliar o conhecimento tradicional e o científico, um dos desafios principais que ela, como estudante de Biologia, busca solucionar.
“A gente sempre viu homens brancos discutindo sobre clima, [mas] eles muitas vezes nunca passaram pelo que a gente passa. Eles nunca vão saber o que é desigualdade social,” comenta. “Estamos lutando para ocupar esses espaços [de decisão], porque nós, comunidades indígenas, pretas e periféricas, somos os que mais sofrem as consequências das mudanças climáticas”, argumenta.
Além da COP 26, ela também esteve, mais recentemente, na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano (Estocolmo+50). “Eu fiquei feliz de ver o protagonismo da juventude e dos povos indígenas. Mas [saí] querendo mais, porque a gente só estava nos espaços de construção, não nos de tomada de decisão”.
A mais jovem de uma linha familiar de mulheres guerreiras, Samela reconhece que esta primavera da juventude indígena vem na sequência da tomada de protagonismo por suas mães.
“Antes, [eram] os homens que saiam das suas aldeias para discutir políticas públicas. Quando a gente precisou de uma grande massa de mulheres para fazer a diferença no movimento, elas vieram, mas não vieram sozinhas. Elas trouxeram seus filhos”, explica. Filhos estes que cresceram no movimento indígena, como a própria Samela, e que hoje contribuem com as ferramentas que dominam: a internet e o celular.
“Os desafios são justamente as minhas fortalezas: ser jovem, mulher, indígena”, aponta, uma vez que todas essas categorias vêm, frequentemente, acompanhadas de descrédito, machismo e preconceitos. “Mas eu gosto de ter conhecimento para poder combater tudo isso. As pessoas nem ousam questionar a minha identidade, porque sabem que vão receber uma resposta à altura”, finaliza.