29 Novembro 2016
Índios Sateré-Mawé estão invisíveis nas agendas de discussão sobre o conjunto de hidrelétricas planejadas para a bacia do rio Tapajós (PA), mesmo com suas terras ameaçadas pelos impactos das obras. A Terra Indígena Andirá Marau, território tradicional dos Sateré-Mawé, fica nos estados do Amazonas e do Pará e está a apenas 43 quilômetros da área prevista para a construção da Usina São Luiz do Tapajós, cujo licenciamento foi arquivado em agosto passado pelo Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). A bacia do Tapajós, contudo, continua no planejamento do governo federal para a construção de barragens na Amazônia, com a previsão de se construir mais de 40 hidrelétricas nesta região nos próximos anos.
A reportagem é de Elaíze Farias, publicada por Amazônia Real, 25-11-2016.
Mulher indígena Sateré-Mawé, no rio Andirá (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
Os Sateré-Mawé foram desconsiderados da pauta por causa de uma polêmica decisão do governo. A TI Andirá Marau está a três quilômetros fora dos limites do reservatório principal estabelecido pela Portaria Interministerial nº 419/2011 do governo federal. Esta portaria estabelece em até 40 quilômetros o que o governo considera como “presunção de interferência em terras indígenas”.
Andirá Marau faz limite com o Parque Nacional da Amazônia e com o território dos índios Munduruku. A terra indígena possui 780.528 hectares e uma população de 13 mil índios. A reserva está localizada na jurisdição de cinco municípios: Barreirinha, Maués e Parintins, no Amazonas, e Aveiro e Itaituba, no Pará, segundo a Fundação Nacional do Índio (Funai). O seu nome se refere aos rios Andirá, em Barreirinha, e Marau, em Maués, afluentes do rio Amazonas.
Na parte paraense de Andirá Marau, há indícios da presença de índios isolados, possivelmente originários de Sateré-Mawé que se refugiaram há quase 200 anos durante a revolta da Cabanagem (1835-1839), conforme constatou uma expedição feita em 2014 pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi), organização ligada à Igreja Católica. Em documento interno, a Funai admite a existência de índios isolados na área.
O Ministério Público Federal (MPF) entrou na Justiça pedindo a inclusão da Andirá Marau nos estudos de impacto ambiental e do povo Sateré-Mawé nas consultas públicas obrigatórias, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Para o procurador da República e autor da ação, Luís de Camões Boaventura, do MPF no Pará, o governo brasileiro preferiu definir uma distância baseada em uma portaria em detrimento da Constituição Federal, na qual estabelece realização de estudos completos e satisfatórios. O pedido fez parte de uma ação acatada em 2015 pela Justiça Federal.
“O governo federal e os empreendedores se utilizam da Portaria Interministerial nº 419/2011 para tentar afastar a necessidade de inclusão da TI Andirá Marau nos estudos de viabilidade. Mas a chamada ‘presunção de interferência em terras indígenas’ não pode ser absoluta como quer fazer crer o governo”, disse o procurador à reportagem.
A Amazônia Real foi até a TI Andirá Marau para ouvir os Sateré-Mawé a respeito das obras das hidrelétricas, já que eles não foram procurados em momento algum pelo Estado brasileiro. Um dos mais preocupados com a ausência de consulta é o vice-presidente do Conselho Geral da Tribo Satere-Mawé (CGTSM), Obadias Garcia, de 55 anos. “Eu acho muito ruim porque sabemos que vai afetar a Terra Indígena Andirá Marau e vai destruir a maior parte das nossas riquezas naturais”, disse.
Para Garcia, a exclusão da Andirá Marau serve para minimizar a resistência que sofre o projeto de construção das usinas devido à forte mobilização e pressão contrária dos índios Munduruku.
“As empresas estão com dificuldade de realizar as obras devido aos problemas que já possuem com os ribeirinhos e os Munduruku. Com os Sateré-Mawé, isso só traria mais problemas para eles. Por isso não querem nos incluir nesse processo”, afirmou o vice-presidente do CGTSM.
Obadias Garcia, vice-presidente do Conselho Geral da Tribo Satere-Mawé (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
A decisão do governo de excluir a Terra Indígena Andirá Marau dos estudos e das consultas foi tomada em 2014, mas dois anos antes a situação era diferente. Em 2012, a Funai emitiu, em ofício com data de 12 de fevereiro, a informação de que Andirá Marau estava na área afetada pelas usinas hidrelétricas do rio Tapajós e pedia que os indígenas Sateré-Mawé fossem consultados. A recomendação atendia a Portaria nº 419/2011, que estabelece “presunção de interferência em terras indígenas para aproveitamentos hidrelétricos localizados na Amazônia Legal”.
No ofício, a Funai diz o seguinte: “Em conformidade com os dados apresentados pela Diretoria de Proteção Territorial, a Terra Indígena Andirá Marau, KM-43, Pimental e São Luiz do Tapajós inserem-se nos limites estabelecidos pela Portaria”. No mesmo documento, a Funai pede que Andirá Marau seja contemplada no Estudo do Componente Indígena (ECI). Também afirma que há uma referência não confirmada de índios isolados no interflúvio da bacia do Tapajós.
Em 2014, em ofício da data de 18 de julho, a fundação apresentou uma posição diferente. Em documento enviado ao Ibama, ao Ministério de Minas e Energia e à Advocacia Geral da União (AGU), a Funai diz que a Terra Indígena Andirá Marau está fora dos limites da usina. A justificativa: “pelo cálculo dos técnicos do órgão indigenista, Andirá Marau está a 43 quilômetros da área do eixo do barramento das usinas, três a menos do que aponta a ‘presunção’ estabelecida pela Portaria 419/2011”. Para os técnicos do órgão, Andirá Marau está localizada em uma bacia diferente da bacia do rio Tapajós. Foi este, então, outro motivo para a Funai desconsiderar a interferência da obra no território Sateré-Mawé. Assim, o EIA-Rima elaborado pela Eletrobrás e entregue ao Ibama, em setembro de 2014, não menciona Andirá Marau.
O projeto de barragens na bacia do Tapajós prevê a construção de hidrelétricas no sudoeste do Pará, nas áreas dos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Trairão, nos rios Tapajós e Jamanxim. Cientistas, ambientalistas e povos indígenas (sobretudo os Munduruku) e tradicionais dizem que, se construídas, as usinas vão impactar e alagar terras indígenas e comunidades ribeirinhas, além de causar prejuízos ambientais e no ciclo hidrológico da região.
Sem a mesma visibilidade dos índios Munduruku na luta contra as hidrelétricas no Tapajós, os Sateré-Mawé têm conhecimento do empreendimento, sabem das consequências dos impactos em suas terras e seguem em busca do reconhecimento do direito de serem ouvidos. Eles se mostram inquietos e pedem mais informações oficiais à Funai. Os índios se colocam contrários à usina, conforme relatos de lideranças ouvidas pela reportagem da Amazônia Real.
Para Obadias Garcia, a mudança no posicionamento mostra que a Funai sofreu pressão externa para desconsiderar Andirá Marau nas consultas e nos estudos.
“Isso faz nos entender que houve pressão política por parte do governo federal para que não seja feito o estudo do impacto na Terra Indígena Andirá Marau. É necessário que o governo dê maiores esclarecimentos para que o povo Sateré-Mawé tenha esse conhecimento. Não queremos que aconteça como aconteceu com os nossos parentes Waimiri-Atroari”, disse. Na década de 1980, a Terra Indígena Waimiri-Atroari, no estado do Amazonas, foi inundada durante a construção da Hidrelétrica de Balbina, que abastece Manaus. O empreendimento quase causou a extinção da etnia.
A TI Andirá Marau foi demarcada e homologada há quase 30 anos. A forte mobilização das lideranças Sateré-Mawé após sofrerem impactos pela prospecção de petróleo em suas terras pela Petrobras, entre 1982 e 1984, obrigou o governo brasileiro a regularizar a área.
O povo Sateré-Mawé é considerado o inventor da cultura do guaraná e é conhecido por seus rituais exuberantes. O mais célebre é o rito de passagem dos meninos para a adolescência, quando eles têm suas mãos picadas pelo ferrão dolorido da formiga tucandeira para mostrar valentia e ficar imune a várias doenças. Este ritual é um dos mais conhecidos entre os povos indígenas do país.
Indígenas Sateré-Mawé da aldeia Simão (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
O procurador da República Luís de Camões Lima Boaventura disse à reportagem que o MPF tem considerado como área de influência do empreendimento toda a bacia hidrográfica do Tapajós em que se pretende instalar a usina – e este entendimento alcança a Andirá Marau.
“O MPF também considera a necessidade de aferição dos impactos socioambientais a partir de uma noção holística e ponderando os efeitos cumulativos e sinérgicos de todos os outros empreendimentos existentes ou em planejamento na área de instalação do projeto”, afirmou o procurador.
A decisão do governo de excluir Andirá Marau das discussões e dos estudos de impacto é considerada equivocada pelo MPF. “O governo considera como estrutura física do empreendimento apenas a barragem em si, e não a área do reservatório e todas as estruturas secundárias que acompanham a obra. Tenta estabelecer limites de presunção absoluta em uma discussão cuja relatividade e imprecisão científica é a tônica e presume, de forma absoluta, que apenas três quilômetros (quantia que supera os limites da aludida Portaria), seriam suficientes para afastar qualquer impacto”, disse Camões.
Caciques, tuxauas e lideranças Sateré-Mawé reforçam o repúdio à hidrelétrica. Eles comparam as ameaças causadas por uma barragem ao perigo dos seres encantados que habitam as profundezas da terra e que surgem quando a floresta é invadida. São personagens cosmológicos encontrados em narrativas que remontam a seus antepassados e cuja presença faz parte do imaginário e identidade coletivos.
“A hidrelétrica vai causar impacto na nossa reserva. Ela represará o rio, aquilo vai subir e nos prejudicar. Vai prejudicar o nosso lado. Não queremos. A nossa reserva é muito próxima da terra dos Munduruku”, disse Amado Menezes Filho, 61 anos, tuxaua da aldeia Ponta Alegre e tuxaua geral da TI Andirá Marau.
Leôncio Batista com a esposa, Rosane Maria da Silva e os filhos, na aldeia Nova União (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
Ele se inquieta a respeito de seres da mata que ameaçam reaparecer com os impactos na floresta e no rio, como já ocorreu em outros momentos de sua história, influenciando as alterações nos cursos d´água, nas mudanças na floresta e, pior, nos recursos naturais fontes de sua sobrevivência.
“Quando ocorrer o represamento da água, ela vai tufar e tomar metade da nossa terra. Aí é Juma, é cão-era, tudo vindo para cá. São bichos que comem gente. Não queremos isso”, afirma.
Na mitologia Sateré-Mawé, Juma é um índio inimigo que habita as florestas e ataca as pessoas. O cão-era é um morcego gigante que vive escondido em buracos na terra e de troncos de madeira.
Para Obadias Garcia a pauta sobre hidrelétricas precisa ser ampliada e discutida mais profundamente entre os Sateré-Mawé. Ele alerta que a Funai tem a obrigação de informar sobre o motivo de sua decisão em excluir Andirá Marau.
“Esse assunto, essa ameaça, precisa ser mais discutido e a Funai terá que esclarecer. Somos contra a construção da hidrelétrica. É uma obra que vai trazer mais prejuízo do que benefícios. Enquanto as empresas hidrelétricas matam os nossos rios na Amazônia, o resto do país está morrendo de sede”, observa.
A notícia da construção da barragem tão próxima de suas terras fez o agente de saúde Leôncio Ferreira Batista, 38 anos, ficar preocupado com as consequências em sua aldeia, Nova União.
Na comunidade, Batista desenvolve um dos mais inovadores projetos de sustentabilidade indígena, que consiste no plantio de diferentes espécies vegetais em um mesmo roçado, anteriormente degradado. Uma parte do produto é para sustento de sua família e outra é comercializada pelo Consórcio dos Produtores Sateré-Mawé para o mercado da Itália por meio do Sistema Internacional de Comércio Justo. Ele se mostra receoso com as consequências de uma barragem na vida de sua família.
“Falaram que vai atingir a área indígena nossa. Pode afetar a gente. Através do projeto do guaraná a gente está se formando e informando. Não queremos hidrelétrica perto de nossa terra”, afirmou Batista.
Uma das antigas lideranças da TI Andirá Marau também foi ouvida pela reportagem: Valdir Ferreira de Souza, 73 anos, cacique da aldeia Castanhal. “Com essa obra, as comunidades vão sofrer também. Aí vem muita coisa ruim. Vem morcego-grande, vem índio encantado. Ninguém quer essa barragem”, decretou Valdir Ferreira de Souza.
Moradias tradicionais Sateré-Mawé (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
A reportagem procurou a Funai para falar sobre a Terra Indígena Andirá Marau. O órgão indigenista deu a seguinte resposta: “Os pareceres da Coordenação Geral de Licenciamento Ambiental (Informação 271/2013/COEP/CGLIC, de 14/10/13) e da Procuradoria Federal Especializada (Nota 381/2013/PFE-FUNAI/PGF/AGU-COMAF) indicaram a necessidade de contemplar a Terra Indígena Andirá Marau nos estudos de impacto da UHE São Luiz do Tapajós. Apesar disso, foi enviado ao Ibama o Ofício nº 268/2014/GAB/PRES/FUNAI-MJ, apresentando entendimento diverso (‘informamos que a Terra Indígena Andirá Marau não se encontra abrangida pela área de influência do citado empreendimento’).”
A Amazônia Real solicitou cópias dos pareceres, mas a Funai não atendeu aos pedidos.
A assessoria do Ibama confirmou que foi com base na manifestação da Funai, em 18 de julho de 2014, que a Terra Indígena Andirá Marau foi excluída dos estudos. A nota da assessoria diz que o instituto realizou todas as etapas no que diz respeito à solicitação de manifestação da Funai.
No EIA/Rima, a Eletrobras seguiu a orientação do governo, por meio do Ministério de Minas e Energia, e não incluiu Andirá Marau no componente indígena. Em nota enviada à reportagem, a assessoria da estatal diz o seguinte: “A Funai encaminhou, em 18 de julho de 2014, o ofício nº 268 ao Ibama (portanto superveniente ao ofício 136/2012), no qual informa que a TI Andirá Marau NÃO (sic) se encontra abrangida na área de influência do empreendimento hidrelétrico São Luis do Tapajós”.
Em 2012 e 2013, o Cimi realizou duas expedições na região limítrofe da TI Andirá Marau e o Parque Nacional da Amazônia, no Pará, e encontrou vestígios de presença de índios isolados no alto rio Urupadi e no afluente rio Curaí. As expedições foram compostas por indigenistas da entidade, indígenas Sateré-Mawé e ribeirinhos.
O coordenador do Cimi no Amazonas, Francisco Loebens, disse que já na primeira expedição foram encontrados indícios da presença de isolados. Na segunda, foram localizadas trilhas, rastros de pés descalços, vegetação quebrada e sinais em árvores sem a utilização de objetos cortantes como faca, terçado, machado. Pelo temor dos riscos que o contato poderia causar aos índios isolados, a expedição não seguiu adiante.
Segundo Loebens, a hipótese levantada pelos indígenas que participaram da expedição é a de que se trata de um grupo originário de Sateré-Mawé que teria se refugiado no final da Cabanagem, há quase 200 anos. Seus descendentes optaram por viver em isolamento. Cabanagem foi uma revolta popular liderada por índios, negros e caboclos contra o governo imperial e o governo do então estado do Grão-Pará (décadas depois território foi separado em Pará e em província do Amazonas).
“Conta-se que os Sateré, retornando da Cabanagem, teriam passado por grandes privações, sobretudo pela falta de alimentos. Isso teria ocasionado muitos conflitos internos, levando um grupo a se ‘isolar’, refugiando-se nesta região limítrofe da TI Satere Mawé e do Parque Nacional da Amazônia”, diz Loebens.
A expedição do Cimi integrou a criação de equipe de apoio aos indígenas isolados, pois a entidade estava preocupada com as ameaças de extermínio destes povos com o avanço do desmatamento, da exploração ilegal de madeira e do agronegócio sobre os seus territórios e dos grandes empreendimentos de infraestrutura projetados para a Amazônia.
“Identificou-se como um dos problemas a falta de informações qualificadas sobre a existência destes povos necessárias para garantia de sua proteção e de seus direitos territoriais. No caso das hidrelétricas do rio Madeira, por exemplo, a Funai somente passou a admitir a presença de ‘isolados’ na área de influência dos empreendimentos depois que estes já haviam obtido as licenças de instalação”, disse.
O indigenista do Cimi alerta que, com o deslocamento de um grande contingente populacional para a região, em função da construção das hidrelétricas, a pressão sobre o Parque Nacional da Amazônia e sobre a TI Andirá Marau vai aumentar muito.
O Cimi encaminhou um relatório para a Funai com as informações sobre os vestígios encontrados e sua localização exata, solicitando ao órgão indigenista que se deslocasse para a região com o intuito de aprofundar a investigação sobre a existência deste povo e sua área de perambulação e tomasse as necessárias medidas para sua proteção. Segundo Loebens, foi destacada a ameaça à sobrevivência deste povo pelos projetos de construção de barragens na bacia do Tapajós e pelo garimpo ilegal na região.
Procurada pela Amazônia Real, a Funai respondeu que tem conhecimento do relatório do Cimi e que ele faz parte do acervo que o órgão detém sobre a presença de isolados na região. Segundo a assessoria de imprensa, “as informações sobre essa possível presença são recorrentes e a fundação dispõe de um registro em seu banco de dados, relativa a essa possível presença”.
A assessoria disse que a Funai enviou, em 2015, uma equipe à região para qualificar “in loco” relatos dessa presença, bem como para fazer um diagnóstico logístico de viabilização de futura expedição em campo. Segundo a Funai, foram coletadas informações e relatos sobre a possível presença de grupos isolados não só nessa região (Andirá Marau), como também em outras quatro regiões inseridas em afluentes do médio e alto Tapajós.
Diz a nota: “No caso do registro relativo à presença de índios isolados na região aqui em pauta, trata-se de uma ‘referência’, já devidamente qualificada, cuja presença deve ser considerada. A próxima fase de trabalho constitui-se de expedições em campo. Vale lembrar que o registro só pode ser confirmado por equipe desta Fundação qualificada para o trabalho. A Funai não dispõe de uma unidade de campo na região (Frente de Proteção Etnoambiental). Além disso, há atualmente limitações de ordem orçamentárias e de recursos humanos, dificultando o avanço dos trabalhos na região. Nesse sentido, acreditamos na contribuição do Cimi e estamos à disposição para uma parceria de trabalho na região”.
Campo de futebol dos índios Sateré-Mawé (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
Um dos índios Sateré-Mawé que integraram a expedição do Cimi foi Bernardo Alves, 51 anos, tuxaua da aldeia Terra Nova, no município de Maués. Ele diz acreditar que os índios isolados que vivem na área também são de sua etnia. “Encontramos várias pegadas, com certeza são de pessoas que preferem ficar sem contato. Mas a gente acredita também que eles ficam ali porque estão se escondendo, protegendo-se. Mas é uma área também muito próxima de garimpo. A gente fica preocupado caso haja algum conflito”, disse Bernardo, em entrevista à Amazônia Real.
O tuxaua Bernardo Alves, que também é professor e estudante de Licenciatura Indígena no município de Parintins, disse que o povo Sateré-Mawé sabe que as usinas do Tapajós vão afetar Andirá Marau. “Eles [governo] dizem que não, mas vai sim afetar nossa terra. Nossos ancestrais afirmam que muitos transtornos podem nos acontecer. Podem aparecer insetos, podemos perder nossas plantações e nossa locomoção será afetada”, disse o tuxaua.
Bernardo Alves conta que os Sateré-Mawé foram excluídos das discussões e dos estudos do componente indígena para que eles não pudessem dar sua opinião. “A gente diz ‘não’. Tudo isso, todas essas coisas, todas essas obras vão nos destranquilizar [sic]. Por isso que muitas lideranças estão preocupadas. Mas é preciso que falemos com mais energia, mais afinco. A gente foi excluído para não falar ao mundo a nossa posição a respeito. Eu, na qualidade de tuxaua, estou muito preocupado”, afirmou Alves.
Na opinião da antropóloga Kalinda Félix, que desenvolve pesquisa na TI Andirá Marau e é doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam), as barragens representam um grande risco à área dos Sateré-Mawé.
“As lideranças locais esperam que essa obra não seja realizada, haja vista que o impacto social e ambiental para os Sateré será enorme, pois a maioria das comunidades retira das águas o alimento consumido. Do rio também retiram a água consumida, já que a maioria das comunidades não possui poço artesiano, e as que possuem necessitam comprar combustível para que este funcione. Dessa forma, não é sempre que estes fornecem a água necessária para beber, lavar roupa, banhar-se”, diz ela.
Segundo Kalinda Félix, os Sateré-Mawé estão sendo impedidos de seus direitos constitucionais, pois os estudos poderiam aprofundar não só a questão ambiental mas, principalmente, a questão social.
“A Terra Indígena Andirá Marau sempre esteve no alvo de interesses e os Sateré-Mawé sempre lutaram por seus direitos, indo buscar ajuda até fora do país. E mais uma vez, o terror está assombrando essa população que não está sendo bem informada a respeito desse empreendimento próximo de sua área de moradia”, afirmou.
Crianças tomam banho e brincam no rio Andirá na aldeia Ponta Alegre (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
Jansen Zuazon, especialista em ictiofauna da bacia amazônica e pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), participou de um grupo independente de cientistas que analisou o EIA-Rima da Eletronorte para a usina São Luiz do Tapajós por iniciativa da ONG Greenpeace. Ele conta que falhas importantes foram encontradas nas documentações. A principal delas é que a obra não era econômica, social e ambientalmente viável.
Como o EIA-Rima não contemplou Andirá Marau, não foi possível fazer uma avaliação dos estudos. Com base apenas em sua especialidade e na localização de Andirá Marau, ele diz que não foram encontradas evidências de ameaça de impactos diretos ou indiretos na demanda de peixe para o povo Sateré-Mawé, já que a boca do rio Andirá está localizada a montante (acima) da boca do Tapajós.
Mas Jansen Zuanon apontou o risco de ameaça social, com a pressão populacional causada por migrações e o aumento na demanda por recursos. O município de Itaituba, por exemplo, fica à margem da rodovia Transamazônica.
“Se as obras da usina gerarem esse aumento, é possível que ocorra um aumento na pressão de caça local, que poderia se estender às terras indígenas, por meio de caça clandestina. O aumento populacional local poderá resultar em problemas ambientais e sociais, como tem acontecido em todos os grandes empreendimentos hidrelétricos na Amazônia. E a distância de Andirá Marau para a usina é muito pequena neste ponto de vista”, afirma Zuanon.
São mais de 300 anos de contato entre os Sateré-Mawé com a sociedade não-indígena. O contato com os portugueses foi feito em 1669, quando da instalação da missão jesuítica Tupinambarana, conforme explica a antropóloga Kalinda Félix.
Os índios Sateré-Mawé falam uma língua própria do tronco Tupi com palavras incorporadas do Nheengatu (língua geral) e formam uma numerosa população desde o contato com os europeus. Nas narrativas dos ancestrais dos Sateré-Mawé, seu lugar de origem é chamado na língua nativa de Nusoken (paraíso).
O sistema social é construído por vários clãs, de nomes como guaraná, caba, cotia, cobra, gavião, inambu, guariba, macaco-da-noite. O clã hegemônico é o Sateré, que significa “lagarta de fogo”, e que também acabou dando nome ao povo. Mawé é a designação original da etnia e foi incorporada ao nome principal. Não tem uma tradução literal.
Este povo considerado guerreiro já ocupou territórios que abrangem do rio Madeira, no Amazonas, até o rio Tapajós, no Pará. Enfrentou inúmeros ciclos de pressão e de exploração econômica. No passado, travava guerras por territórios com os índios Munduruku e com os Parintintin. Foram vítimas de epidemias trazidas pelos “brancos” e perseguidos nas chamadas “guerras justas” perpetradas pelos europeus.
Os Sateré-Mawé também participaram da Guerra da Cabanagem no século 19, junto com outros indígenas da região do rio Negro, baixo e médio rio Amazonas e rio Tapajós.
Os primeiros conflitos com não-indígenas ocorreram com seringueiros, depois com comerciantes de pau-rosa e garimpeiros invasores, resultando em tensões, violência, epidemia e fome.
O processo de regularização de seu território começou no final da década de 1970, mas somente em 1986 é que foi homologado.
Cacique Bernardino Ferreira Trindade segura microfone em evento (Foto: Danilo Mello/FotoAmazonas)
“Antigamente era muito bom. A roça era no machado. Era mais puxado, mas era mais tranquilo. Depois, veio a atividade de petróleo. Entrava qualquer um. Levavam madeira, cavavam terra para fazer estrada, colocavam dinamite, jogavam na mata, matavam muito peixe, até jacaré.”
A recordação de Bernardino Ferreira Trindade, 64 anos, resume duas das maiores pressões sofridas pelos Sateré-Mawé no início da década de 1980.
A tentativa da construção de uma estrada que cortaria o território Sateré-Mawé e que ligaria a cidade amazonense de Maués até Itaituba, no Pará (obra que acabou não acontecendo por pressão dos indígenas), e as atividades de prospecção de petróleo que perfuraram várias áreas da terra indígena empreendida, primeiro pela Petrobras, e depois pela empresa francesa Elf-Aquitaine, entre os anos de 1981 e 1983.
“Naquela época, ninguém aqui falava português. Os índios ficavam com medo. Ficaram vários anos tirando petróleo. Ninguém comunicava o que acontecia. Depois foram embora, mas voltaram. Foi aí que o tuxaua Donato [Lopes] disse: ‘A Petrobras está entrando de novo. Vamos fazer uma reunião. Já estragaram uma vez, mas a segunda não vamos aceitar. Vamos brigar. A terra é nossa’. Foi aí que começou a acontecer reunião”, lembra Trindade, que, no momento desta entrevista, respondia temporariamente pela chefia de Simão na ausência de Donato Lopes.
Perguntado sobre a ameaça da hidrelétrica, ele diz: “É melhor a gente não aceitar, pois vai maltratar muito. Vem muita coisa, vai causar muitos problemas de novo”.
Nas lembranças das lideranças Sateré-Mawé sobre o período de perfurações para extrair petróleo, os fatos mais marcantes são as explosões, os estragos nos rios com morte de vários peixes e quelônios. Mas também o aliciamento de muitos indígenas, incluindo mulheres que passaram a se prostituir, a entrada de bebidas alcoólicas, doenças por intoxicação e mortes de pelo menos quatro pessoas em acidentes com as dinamites.
Até hoje, há resquícios da atividade, com pedaços inteiros de cabos de prospecção e buracos expostos. Os Sateré-Mawé dizem que não é incomum eles verem borbulhar uma espécie de lama de alguns buracos. Eles também não duvidam que há dinamites em algumas áreas e evitam ir em alguns trechos onde houve perfuração de poços.
A Amazônia Real esteve em um desses locais de perfuração, acompanhada do tuxaua Amado Menezes Filho, nas proximidades da comunidade Ponta Alegre. O local resgata lembranças pavorosas para os Sateré-Mawé. Eles evitam visitar o local. Fazem algumas exceções, como aconteceu com a presença da reportagem.
“Aqui no rio Andirá era muito farto. Na época, a gente pescava na linha, botava banana e ingá como isca. Meu pai falava que meu avô era perigoso, não comia sal, não tinha sabão, não tinha café, açúcar. Só era flecha e cachorro. Era assim que ele caçava”, diz Amado Menezes Filho, cacique da aldeia Ponta Alegre.
A situação começou a mudar com a chegada dos funcionários da Petrobras. Nas primeiras explosões, cardumes de peixes boiavam mortos. “Matavam jacaré, bicho de casco [quelônios], peixe. Morria tudo. Deixaram muito prejuízo. Ficou faltando tudo – peixe, caça, detonavam tudo. Era Pow! Pow! A terra tremia. Dizem que lá para o alto há muitos fios de bomba. Quando foram embora, só para fechar os buracos, foram 600 sacos de cimento”, lembra.
Os indígenas também foram “convocados” a trabalhar. Amado diz que muitos ajudaram a puxar os fios das bombas. Por desconhecimento, alguns as detonavam e morriam.
“Tem petróleo aqui dentro da reserva, mas hoje não é como antes. A gente sabe dos nossos direitos. A Presidência não deve dizer o que podemos fazer. A lei determinou que a gente tem que tomar à frente do que vem e do que sai, do que queremos e não queremos. Por isso, tem que nos ouvir”, diz.
Relatos sobre danos causados pela prospecção de petróleo no território Sateré-Mawé fizeram parte do relatório da Comissão Nacional da Verdade da Presidência da República que investigou violações de direitos humanos contra povos indígenas do Brasil durante a ditadura militar (1964-1985). No relatório divulgado em dezembro de 2014, consta que em 1980 a Petrobras abriu 300 quilômetros de picadas e clareiras para possibilitar o pouso de helicópteros na região do rio Andirá (no município de Barreirinha), derrubando indiscriminadamente a mata.
A CNV diz que durante um convênio ilegal firmado entre a Funai e a Petrobras, a empresa voltou a invadir o território Sateré-Mawé. Dessa vez, a Braselfa, subsidiária da Elf-Aquitaine no Brasil, e a Companhia Brasileira de Geofísica (CBG), operaram nas áreas da cabeceira do Marau e do Andirá, efetuando novo levantamento sismográfico.
A antropóloga Kalinda Félix diz que a presença das petrolíferas geraram vários tipos de crises internas e externas, surtos de doenças, resultando em deslocamentos dos Sateré-Mawé para outras áreas do Amazonas, incluindo zonas urbanas. Daí a presença de indígenas Sateré-Mawé ser muito forte em Manaus, capital do estado.
A Terra Indígena Andirá Marau fica na região do Baixo Amazonas. O acesso é apenas via fluvial, em pequenas embarcações, descendo o rio Amazonas.
A reserva tem 80 aldeias. A maioria fica à margem do rio Andirá, onde a equipe esteve, localizada em Barreirinha, mas também há comunidades à margem do rio Uaicurapá, em Parintins, e do rio Marau, em Maués. As comunidades do rio Uaicurapá, segundo relatos dos indígenas e do coordenador técnico da Funai em Parintins, Sérgio Bringel, sofrem forte pressão de invasores para retirada de madeira.
A reportagem visitou quatro aldeias à margem do rio Andirá: Ponta Alegre, Castanhal, Simão e Nova União. Os deslocamentos entre as comunidades, em uma voadeira de motor 60HP, levam, no máximo, 20 minutos, pois elas estão geograficamente muito próximas.
Ponta Alegre é a maior comunidade, com cerca de mil pessoas. Há ruas, igreja e um posto médico. Os Sateré-Mawé gostam de ambiente festivo e de atividade esportiva. É comum promoção de torneios de futebol, como o registrado pela reportagem no dia em que esteve na terra indígena.
Mas os Sateré-Mawé também lidam com problemas sociais e territoriais. Denunciam invasão de suas terras por madeireiros e a desestruturada coordenação técnica da Funai para fiscalizar. “A Funai aqui não tem recurso, não tem como fazer visita nas áreas porque não tem gasolina para os barcos”, diz Amado.
Eles também reclamam da escassez de escolas e falta de medicamentos no posto de saúde. Uma das comunidades visitadas, Castanhal, estava com a única escola desativada por estar com sua estrutura comprometida. Outro problema enfrentado é o alcoolismo.
O professor Adalto Ferreira Garcia, 42 anos, da comunidade Simão, dá aula para 15 alunos em uma escola em Ponta Alegre onde estudam 235 jovens e adolescentes.
Adalto conta que o maior problema social dos Sateré-Mawé é a bebida alcoólica, as drogas e a influência dos costumes urbanos. Ele diz que há também casos de suicídio, embora em menor índice do que no passado. “Os jovens das comunidades estão se metendo nas drogas – cocaína, cheira-cola. Isso causa conflito, separa as famílias. Mas estamos trabalhando para acabar com isso na escola”, diz Garcia.
Embora não possuam dificuldades de acesso a alimento, os indígenas recebem o Bolsa Família, cujo recurso eles utilizam para comprar produtos industrializados e pagar viagens fluviais. Há lideranças que criticam a forma como o programa Bolsa Família foi adotado entre as famílias indígenas. É o caso do cacique de Ponta Alegre.
“Aqui, todos têm roçado de subsistência. O Bolsa Família tirou os jovens do trabalho, do roçado. Muitos passaram a beber e a se drogar. Aqui ninguém passava fome. Não existe fome na aldeia. O problema que temos é falta de saúde, é falta de escola”, diz o tuxaua Amado Menezes Filho.
* A reportagem faz parte do Projeto Amazônia Real Promovendo a Democratização e Liberdade de Expressão na Região Amazônica” e recebe financiamento da Fundação Ford. Foi realizada com o consentimento e colaboração do povo indígena Sateré-Mawé, e com a autorização da Fundação Nacional do Índio – FUNAI.
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Povo Sateré-Mawé, os excluídos da discussão sobre as usinas do Tapajós - Instituto Humanitas Unisinos - IHU