23 Julho 2021
"Para a coordenadora Sônia Regina, agora é uma nova fase na Amism, pois as jovens estão tendo a oportunidade de avançar nos estudos e já sabem como arrecadar recursos, escrever projetos e avançar nos editais. No ano passado, Samela foi uma das articuladoras para conseguir entrar em um edital da Sitawi, uma organização social, e foi contemplada entre os projetos de combate aos efeitos da pandemia", escreve Wérica Lima em artigo publicado por Amazônia Real, 22-07-2021.
No fim dos anos 1990 e início dos 2000, quando a matriarca Zenilda da Silva Vilacio comandava assembleias da Associação de Mulheres Indígenas Sateré-Mawé (Amism), fundada por ela e outras artesãs, Samela Sateré-Mawé, neta de Zenilda, e Waikyru Sateré-Mawé eram crianças que acompanhavam suas mães nos encontros. Em 2007, quando Zenilda, uma liderança histórica do movimento indígena no Amazonas, morreu, as artesãs ficaram sem ter a quem responder juridicamente e a associação acabou se afundando em dívidas. Após 14 anos, uma renovada direção assumiu a Amism e, agora, as jovens Samela e Waikyru assumiram cargos pela primeira vez com muitos planos pela frente.
Samela, de 24 anos, é a nova tesoureira da Amism. Ela é filha da nova coordenadora, Sônia Regina Vilacio Sateré-Mawé. A aguardada Assembleia Extraordinária e Ordinária Eleitoral da associação foi cercada de expectativa. As artesãs tiveram de esperar 16 meses, já que a pandemia do novo coronavírus as impediam de se reunir presencialmente. No último dia 4 de junho, já com a maioria das mulheres vacinadas contra a Covid-19, 60 artesãs se encontraram para aprovar o novo estatuto da associação e eleger a nova diretoria da associação.
“A gente tem que incentivar os jovens, pois os nossos antepassados já fizeram a parte deles e está na hora de fazermos a nossa. Que os jovens possam agir para beneficiar as comunidades e enfrentar o preconceito”, afirmou Waikyru, que foi eleita para ser secretária da associação. “Para reerguer a Amism precisamos da força de todos.”
Presente na assembleia, a coordenadora da Rede de Mulheres Indígenas do Estado do Amazonas (Makhira-Ehtha), Rosimere Teles, do povo Arapaço, ressaltou a importância da reunião ter acontecido. “Esse espaço que a Amism proporciona é muito importante para nós mulheres, independente da etnia que a gente é. Sempre torci pela participação ativa das jovens, torci para que há 2 anos isso acontecesse e a Samela e outros jovens tivessem espaço”, disse Rosimere, que é da região do Alto Rio Negro e uma das principais lideranças do movimento de mulheres indígenas da Amazônia.
A presença da quarta geração de mulheres Sateré-Mawé na associação é cercada de simbolismos. Um dos legados importantes da associação sob direção da “mana” Zenilda, como era conhecida a liderança, foi a luta e a coordenação do movimento de mulheres pela reserva de vagas indígenas no ensino superior, institucionalizada em 2004 no Amazonas com base na Lei nº 2894. Samela atualmente cursa ciências biológicas na Universidade Estadual do Amazonas (UEA) graças às cotas nas universidades.
Para a coordenadora Sônia Regina, agora é uma nova fase na Amism, pois as jovens estão tendo a oportunidade de avançar nos estudos e já sabem como arrecadar recursos, escrever projetos e avançar nos editais. No ano passado, Samela foi uma das articuladoras para conseguir entrar em um edital da Sitawi, uma organização social, e foi contemplada entre os projetos de combate aos efeitos da pandemia.
“Agora vai encaixar a pedra que faltava. Eu vejo uma luz no fim do túnel, agora tudo vai dar certo, pois não precisamos mais de ninguém sendo nosso proponente. É isso que falo sempre para todos, para que estudem. Nós povos indígenas somos vistos com outro olhar, como o índio incapaz, o índio que não sabe, o índio que é sujo. Eles acham que a gente não tem capacidade de estudar, de se formar e ser alguém na vida. Eu ficava muito constrangida quando ouvia que o índio é burro e ficava pensando: um dia meus filhos vão estudar”, conta Sônia Regina.
Para Samela, a luta e o ativismo que ela preza tem suas raízes nos seus antepassados. “Eu cresci desenhando no chão da reunião e agora estamos aqui, eu e minhas primas. Estamos formando lideranças, me inspiro na minha avó, na minha mãe, e agora temos que ser inspiração. A gente pode ser maior, mais atuante e conseguir muito mais, fazer parte desse legado me deixa muito orgulhosa em poder contribuir”, afirmou.
Durante a pandemia, as duas jovens ajudaram na produção de máscaras, venda de artesanato e arrecadação de alimentos. “Para mim é um desafio. A luta é árdua, é todo dia. Às vezes, tem reunião do movimento, marcha. Às vezes não tem dinheiro e precisamos de tempo, trabalho e compromisso. Eu já participava porque vejo como a mamãe [Sônia] vai para cima e para baixo. Tentando tirar um pouco o peso das costas dela, eu vou lá, já que a gente já está na faculdade, já sabe escrever um projeto, falar em público”, contou Samela.
A neta de Zenilda é comunicadora do Blog Jovens Cidadãos, da Amazônia Real. Ela foi uma das alunas da primeira oficina, de 2018, e hoje apresenta também o Canal Reload, plataforma colaborativa da qual a Amazônia Real faz parte.
Os Sateré-Mawé são um povo originário da Terra Indígena Andirá Marau, na região do Baixo Rio Amazonas. O mundo deve um tributo a eles: são inventores da cultura do guaraná, fruto amazônico que foi beneficiado por eles, dando origem à bebida. As mulheres Sateré-Mawé são exímias artesãs que produzem peças com sementes que caem das árvores nativas, entre elas o puká, o morototó, o açaí, a jarina (marfim vegetal), o tento, o caramuri, o tucumã e o muru-muru. Em suas habilidosas mãos, viram colares, brincos, pulseiras, adornos para os cabelos e pés.
Mas com a pandemia essa fonte de renda praticamente sumiu. Antes mesmo da crise sanitária, a venda das peças artesanais só era suficiente para pagar as contas básicas. Mas o susto de se ver sem recursos, de um dia para o outro, se reverteu em outra história que está sendo escrita agora.
Uma das mudanças realizadas no novo estatuto da Amism foi a inclusão da medicina tradicional e da plantação de hortas no trabalho das associadas. A ideia surge para que as mulheres resgatem os conhecimentos ancestrais e não dependam apenas do artesanato. “É um conhecimento que está se perdendo e a gente quer retomar”, ressaltou Samela.
A primeira atividade da nova coordenação da Amism será a ida e a aproximação às comunidades Sateré-Mawé localizadas em Manaus (zona urbana e rural) e aldeias localizadas na região dos rios Andirá e Marau, no Baixo Rio Amazonas, para a troca de saberes e produção da medicina tradicional. Os dois rios dão nome ao território tradicional dos Sateré-Mawé e ficam localizados em Barreirinha (Andirá) e em Maués (Marau). A terra indígena também abrange o município de Parintins, no Amazonas, e Aveiro e Itaituba, no Pará.
“Vamos fazer também oficinas nas aldeias. Já era para ter acontecido essa reunião, mas com a pandemia a gente parou mais ainda, estamos aqui retomando e esperamos que tudo dê certo”, disse Sônia Regina Sateré-Mawé durante discurso após ser eleita.
Mais conhecida como “mana Amism” ou “dona Amism” entre as mulheres Sateré-Mawé, Zenilda Vilacio precisou migrar da TI Andirá Marau para Manaus por motivo de doença. Chegando à cidade, acabou se divorciando do marido e precisou criar quatro filhos sozinha. Por não possuir estudo e pelo racismo enfrentado na época, só conseguia serviços de empregada doméstica. Os irmãos da “mana” trabalharam como garis na capital do Amazonas.
“A gente passou muita necessidade, humilhação, preconceito por sermos Sateré-Mawé, por sermos indígenas e foi difícil. Foi numa dessas que minha mãe disse assim: ‘bora trabalhar com o que nós sabemos?’. Quando fui criada na minha aldeia a gente trabalhava com artesanato, mas antigamente era só troca, não tinha dinheiro. Começamos a fazer para usar aqui [em Manaus] e o pessoal começou a perguntar se a gente vendia. Aí abriu a mente da gente: por que não se a gente precisava de dinheiro?”, lembrou a coordenadora Sônia Regina.
Zenilda faz parte de uma extensa família de mulheres lideranças, filhas da matriarca Tereza Ferreira, que faleceu em 2013, aos 97 anos. Outra irmã de grande projeção foi Zelinda Freitas, mais conhecida como Baku, pajé, cacica e fundadora da aldeia Sahuapé, localizada no distrito de Ariaú, em Iranduba, falecida em 2018. Outra irmã foi Zeila, conhecida como Kutera, fundadora da aldeia Inhambé, no entorno de Manaus.
A Amism foi fundada em 1992, no bairro Redenção, com o objetivo de atender às necessidades das mulheres indígenas e garantir o direito à terra, ao bem estar social, cultural e econômico. Muitos deles passavam por dificuldades após migrarem das aldeias para Manaus, por causa dos problemas gerados pela expansão das cidades. Atualmente a sede funciona no bairro Compensa 2, na rua São Marçal, n° 822.
“A minha mãe sempre queria avançar no campo das leis, pois queria o direito dela. Como a família é grande, cada um decidiu trabalhar com uma coisa, mas a dona Zenilda sempre quis ir para o lado dos direitos, sempre lutando pelos direitos, questionando por que nos discriminam, o por que que não ajudam a gente”, explicou a coordenadora eleita da Amism.
Com a chegada da pandemia, o Centro de Empreendedor Indígena Yandé Muraki, localizado no centro de Manaus, foi fechado e muitas artesãs deixaram de vender no local. Nas aldeias e comunidades indígenas que dependiam do turismo para venda de suas produções, a renda também caiu a zero. A infecção por Covid-19 era só um dos problemas enfrentados pelas mulheres que, por vezes, são mães-solo.
No caso de Kian Sateré-Mawé, de 26 anos, o artesanato é sua única fonte de renda. É desse dinheiro que ela sustenta a filha Yandra, de 1 ano e 8 meses. Da aldeia Sahuapé, localizada no Distrito do Ariaú, Kian se viu sem saída até a chegada da Amism.
“A gente trabalhava com artesanato presencialmente, com turismo. Quando parou a gente ficou sem saída. A associação veio ajudar mandando alimento quando tinha e depois a gente mandava o artesanato e eles botavam na loja online. Se não fosse isso, acho que a gente não teria pernas para se manter financeiramente”, explicou Kian. A filha, já desmamada, teve de voltar ao peito para não passar fome.
Na aldeia Uaraná, que tem cerca de 50 pessoas e está localizada no município de Manaquiri, os alimentos básicos também faltaram, mas com a plantação de banana, pesca e ajuda da Amism foi possível atenuar os efeitos da pandemia.
“A pandemia chegou muito dolorosa. Como a gente planta banana e pescamos não sentimos tanta fome, mas faltou açúcar, sabão e passamos aperreio. A gente comia mais era banana e peixe com farinha. Ficamos de escanteio e não tinha internet, aí meu filho comprou uma antena e entramos em contato, pois estive bem mal quando peguei corona. Foi quando a Amism nos apoiou na cesta básica e meu filho ajudou na produção de máscara”, disse a Tuchaua Zorma.
A Tuchaua Zorma, irmã da fundadora Zenilda, esperava pela regularização da Amism há muito tempo. “A Amism é a nossa mãe. Minha irmã sempre dizia ‘mana, a gente não desiste, a gente vai à luta’. Eu me sinto feliz porque sei que daqui mais uns dias teremos muitos frutos disso. Meu filho veio para trabalhar e hoje ele diz: se tivermos uma máquina, um apoio, nós vamos produzir lá na aldeia também. Era um sonho que eu tinha de não deixar a Amism acabar, fico feliz com o que minha irmã deixou”, disse.
Apesar do grande número de doações para a associação, nem todas as comunidades puderam ser atendidas por serem muitas e as mulheres Sateré-Mawé distribuírem não só entre as pessoas da própria etnia, mas também a outros indígenas que precisavam. “Quando a gente foi para o nosso território, a gente só levou 150 cestas básicas e conseguiu atender somente 2 de 126 aldeias. É por isso que fizemos a assembleia, para a gente contemplar editais e conseguir ajudar cada vez mais”, explicou Samela.
Costureira, artesã e musicista, Dilza Lopes perdeu o emprego na pandemia. Foi quando Samela lhe chamou para ajudar na produção de máscaras. Na época, só Dilza tinha habilidade com a costura. Foi ela quem ensinou os indígenas da Amism a cortar e costurar. Não foi nada fácil. “Com muita paciência e luta a gente conseguiu avançar”, lembrou.
A equipe composta em boa parte por jovens já chegou a produzir 2 mil máscaras por semana, vendendo-as no ambiente virtual. Eleita vice-coordenadora da Amism, Dilza sonha em compartilhar seus conhecimentos. “Pretendo ajudar a mulherada da base que precisa de oficinas para aprender como trabalhar com artesanato”, ressaltou.
A iniciativa da produção de máscaras se deu quando um grupo de artistas do Reino Unido sugeriu a ideia e doou dinheiro para a compra dos materiais para a confecção. De prontidão, as indígenas aceitaram. “A gente nunca tinha feito máscaras, mas a gente aceitou porque não tínhamos dinheiro nem para comprar máscara. Naquele tempo o governo falava para a gente ficar em casa, usar máscara, usar álcool em gel, mas a gente não tinha nada disso, então aceitamos”, lembrou Samela.
Agora, os próximos passos serão de crescimento para as mulheres e de fortalecimento cultural, segundo a coordenadora Sônia. “A nossa missão é mostrar para essa sociedade que somos capazes, que aprendemos e nos formamos. Esse é o meu objetivo daqui para a frente, mostrar que vamos vencer levando nossa cultura e identidade para a frente como povos indígenas que somos”, afirmou.
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Nova geração de mulheres Sateré-Mawé já escrevem o futuro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU