04 Agosto 2022
Não será a tentativa de substituir o divino, mas sim uma renovada aliança homem-Deus, purificada de tantas superestruturas, que poderá reservar a descoberta de inéditas possibilidades de plenitude de vida e de fecundidade.
A reflexão é do jesuíta italiano Andrea Dall’Asta, diretor da Galeria San Fedele, em Milão, e professor da Pontifícia Faculdade Teológica da Itália Meridional, em Nápoles. O artigo foi publicado em Avvenire, 31-07-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O termo “homendeus” [uomodio] pode ajudar a interpretar como o ser humano viveu a busca da sua identidade em relação com Deus e o seu eterno dilema entre “permanecer” homem ou “tornar-se” Deus.
De fato, segundo a fenomenologia das religiões, na origem da percepção que o ser humano tem de si mesmo, está postulado um encontro “primordial”, inapreensível conceitualmente: o sagrado.
Do ponto de vista bíblico, esse relato começa no livro de Gênesis com a criação do cosmos. Se, nos míticos tempos das origens, Deus e o ser humano vivem na harmonia do Jardim do Éden, logo a sua amizade se romperá, arrastando toda a realidade para a confusão e o caos. Devido a uma transgressão fatal, tudo desmorona.
Se Deus impõe a proibição de comer os frutos da árvore do bem e do mal que tornariam os seres humanos como deuses – pensam os progenitores enganados pela serpente insinuante – Deus não pode ser bom, pois se comportaria como um patrão ciumento em relação à própria divindade.
Assim, contrariando o mandato divino, Adão e Eva comem do fruto da árvore, mas, em vez de se tornarem deuses autossuficientes como esperavam, descobrem-se frágeis, vulneráveis... humanos. A relação com Deus é atravessada por uma ferida, e o sonho de se tornarem deuses desaparece. O ser humano não confiou no seu criador e agora se encontra vagando pela terra sem rumo.
A partir desse momento, o ser humano não deixará de se interrogar sobre o dilema da própria identidade. Quem é o homem, quem é Deus? A partir dessa fratura, nasce a pesquisa jamais realizada sobre o mistério desse “homendeus”, suspenso no céu em equilíbrio instável sobre um fio fino como um equilibrista, pronto para alçar voo, assim como para se espatifar no chão.
De fato, o evento da encarnação pelo qual Deus mergulha na história fazendo-se homem em Jesus Cristo torna-se o eixo em torno do qual gira a reflexão da cultura europeia. Deus se fez homem para que o homem se tornasse Deus, diziam os Padres da Igreja. Mesmo que a humanidade custe a acolhê-lo.
A vida daquele homem, que morreu tragicamente na cruz, que anuncia a vinda de um Reino de paz e de comunhão, de fato, parece louca, desconcertante, escandalosa. Por que o Messias tão esperado de Israel morre pendurado em um madeiro como um escravo às portas de Jerusalém? Que rosto de Deus ele pretendia revelar?
Na realidade, ao anunciar a boa nova de que Deus é o único Pai e os seres humanos, irmãos, Jesus desmascara as falsas imagens de onipotência que o ser humano sempre projetou sobre a divindade. Deus não é um patrão poderoso e ciumento, como acreditavam os progenitores. Deus é amor e não precisa de sacrifícios para ser apaziguado ou para conceder proteções. Pelo contrário, ele doa a si mesmo no seu próprio filho, Jesus Cristo, para libertar o ser humano de toda escravidão e de todo ídolo. Ele cuida de cada um de nós, porque cada ser humano é precioso aos seus olhos.
Desse modo, Cristo mostra que o lugar do sagrado não é o altar do sacrifício, mas a caridade, a misericórdia. O sagrado encontra o seu mais alto cumprimento na compaixão, no reconhecimento de Cristo nos últimos, nos necessitados. O bem feito ao irmão é o socorro dirigido a Deus, e Deus é o outro em necessidade.
O sagrado se torna vínculo vivo dos seres humanos entre si e com Deus. Essa é a vida divina, o verdadeiro tesouro que Deus queria oferecer gratuitamente ao ser humano desde a fundação do mundo. Como mostrou a história do Oriente e do Ocidente europeus, em uma alternância contínua entre fidelidade e infidelidade, a fé cristã atravessou os séculos na convicção de que quanto mais o ser humano se aproxima de Deus, mais ele experimenta alegria e plenitude de sentido. Deus é considerado o fim mesmo da vida de cada ser humano.
Com o passar dos séculos, no entanto, essa relação entre Deus e o ser humano será cada vez mais questionada e percebida com suspeita. A presença de Deus no mundo parece sufocante e incômoda. O ser humano deve poder se sentir livre para se autodeterminar e autotranscender.
O século XX se abrirá com um trágico anúncio. “Deus está morto”, proclama Nietzsche em “A gaia ciência”. O fim da cristandade se assoma no horizonte. Deus sai do mundo.
Se Deus está morto, porém, surge uma pergunta de maneira angustiante: “Quem sou eu?”. Tudo parece fluido, desprovido de certezas. Se Deus, de fato, era o centro da vida humana, tudo agora parece fragmentado. As categorias do passado tornam-se antiquadas, obsoletas. A vida é conduzida etsi Deus non daretur, sem mais a necessidade de recorrer a Deus para explicar a história humana e os fenômenos de uma realidade já secularizada.
As consequências antropológicas dessa revolução não têm precedentes. O ser humano agora se sente desorientado, perdido, sozinho, parece orientado a viver a busca de si mesmo e do mundo na solidão da sua própria procura. Trata-se, talvez, da difícil e sofrida passagem da adolescência à maturidade da razão humana?
Se, no passado, o eu sempre se defrontava com um outro que, em última instância, era Deus mesmo, agora ele se sente nômade, a sua identidade se fragmenta em identidades plurais, para investigar novas dimensões do ser. Se Deus está morto, tudo pode ser posto em discussão.
Em uma busca sempre provisória, a identidade do sujeito não é mais entregue como no passado por uma comunidade, seja ela religiosa ou civil, mas deve ser buscada avidamente, torna-se objeto de hipótese, em uma contínua exploração jamais satisfeita de si mesmo.
Se Deus está morto, a percepção de si por parte do indivíduo torna-se cada vez mais fluida. É claro, o ser humano pode finalmente tornar-se autônomo e autossuficiente como um deus grego, pode idolatrar a si mesmo, mas os seus traços tornam-se incertos, frágeis, provisórios.
Quando os deuses se afastam da terra, o sopro do vazio parece se insinuar em cada aspecto da vida humana. Nessa busca continuamente voltada para si mesmo, o ser humano viveria um declínio do qual não se vê saída. Seria essa expressão de um niilismo ontológico sem apelação, do desencantamento do mundo, do esgotamento do reino do invisível?
Na crise atual que todos sentimos, quais esperanças podemos ter no futuro para reconquistar uma confiança que parece ter desaparecido no nada? Talvez, não a exaltação de um “homodeus”, mas sim uma renovada aliança homem-Deus, purificada de tantas superestruturas e de tantos mal-entendidos, poderá reservar a descoberta de inéditas possibilidades de plenitude de vida e de fecundidade.
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O dilema do “homendeus”. Artigo de Andrea Dall’Asta - Instituto Humanitas Unisinos - IHU