Após manobra da bancada ruralista, proposta criticada por pesquisadores e ambientalistas pode ser votada ainda esta semana no Senado; confira em 6 pontos o impacto na sua vida.
A reportagem é de Hélen Freitas e Poliana Dallabrida, publicada por Repórter Brasil, 14-07-2022.
Desde que assumiu a presidência, Jair Bolsonaro (PL) vem adotando uma política de liberação de agrotóxicos. Nos últimos três anos, foram aprovados 1.682 novos produtos, segundo levantamento feito pela Repórter Brasil. Quase a metade (45%) de todos os pesticidas vendidos no país foram registrados no atual governo.
No final de 2021, o presidente aprovou um decreto que altera a Lei dos Agrotóxicos, permitindo que produtos que causam doenças como câncer possam ser liberados no Brasil caso exista um “limite seguro de exposição” e criou uma tramitação prioritária para aprovação de novos pesticidas. O decreto foi visto como mais uma saída “fácil” para a flexibilização das regras de agrotóxicos, já que o ‘PL do Veneno’ seguia parado na Câmara dos Deputados desde junho de 2018.
Apesar dos atos presidenciais, os decretos são frágeis já que poderiam ser revogados. Ao manobrar para acelerar a aprovação do chamado ‘PL do Veneno’, como ocorreu na semana passada, senadores da bancada ruralista buscam consolidar o que já foi conquistado por meio do Executivo, segundo especialistas ouvidos pela Repórter Brasil.
Via decretos presidenciais, liberação de agrotóxicos foi uma das prioridades do Executivo
(Foto: Alan Santos/PR)
“Uma vez aprovado, o PL deixa mais forte e contundente todo o desmonte proporcionado pelo governo”, analisa Rafael Rioja, coordenador de consumo sustentável do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor).
O possível fim do mandato de Bolsonaro, conforme mostram as pesquisas de intenção de voto, é uma preocupação para a bancada ruralista, ou a Frente Parlamentar Agropecuária. Com a possibilidade de entrada de um governo mais preocupado com o meio ambiente e saúde, os parlamentares estão fazendo de tudo para que o projeto seja aprovado o quanto antes.
Manobras da bancada ruralista anteciparam a votação do ‘PL do Veneno’ e permitirão que ele seja votado somente na Comissão de Agricultura, sem passar pelas outras comissões (como a do Meio Ambiente e de Assuntos Sociais). A ideia dos parlamentares favoráveis à medida era aprová-la ainda antes do recesso parlamentar, que começa na próxima segunda-feira (18). No entanto, em reunião nesta quinta-feira (14), integrantes da Comissão da Agricultura decidiram que uma nova audiência pública para discutir o projeto acontecerá em agosto, atendendo a um requerimento feito por senadores do PT, Cidadania, PROS e PSB.
Ruralista e presidente da Comissão da Agricultura, senador Acir Gurgacz (PDT/RO) cancelou audiência pública e acelerou a tramitação do PL.
(Foto: Pedro França/Agência Senado)
“A sociedade tem que debater esse tema muito mais do que estão debatendo. Não dá pra aprovar uma lei que está envenenando a água, os alimentos, o meio ambiente, pulando comissões. É inaceitável”, critica Suely Araújo, ex-presidente do Ibama.
Investigação da Repórter Brasil e da Agência Pública mostrou que cinco senadores da Comissão da Agricultura foram multados em R$ 444,9 mil por infrações e crimes ambientais nos últimos 23 anos. A maioria dos senadores da comissão são ligados à Frente Parlamentar Agropecuária, a bancada ruralista. Em abril, os parlamentares se reuniram com o presidente do Senado Rodrigo Pacheco para cobrar agilidade na tramitação desse e de outros projetos com impacto ambiental – e foram prontamente atendidos. Como o projeto de lei foi aprovado na Câmara dos Deputados por 301 a 150 votos em fevereiro, caso passe no Senado, vira lei.
“Esse projeto não interessa à sociedade, aos consumidores, à população, justamente pelos impactos na saúde e no meio ambiente. Se tem um setor que se beneficia é o que vem se posicionando a favor dele”, afirma Rioja, do Idec, referindo-se aos fazendeiros e empresários ligados ao agronegócio.
Realmente, o projeto recebeu críticas por parte de diversas organizações, tais como o Ministério da Saúde, Anvisa, Ibama, Instituto Nacional do Câncer, Fiocruz e a ONU. Porém, a pergunta que fica é: o que muda na sua vida caso a manobra dos senadores dê certo? A Repórter Brasil conversou com especialistas para entender quais os impactos à saúde, à vida dos trabalhadores rurais e ao meio ambiente caso o ‘PL do Veneno’ seja aprovado.
As análises feitas na água e nos alimentos no Brasil mostram que já estamos em um cenário preocupante. Uma pesquisa divulgada pelo Ministério da Agricultura este ano analisou 37 produtos e mostrou que 89% das amostras do feijão-de-corda e 32% do feijão comum, coletadas em 2019, continham resíduos de agrotóxicos proibidos ou acima do permitido. O pimentão e o morango foram os outros dois produtos com maior índice de contaminação, com 64% e 57% das amostras em desconformidade, respectivamente.
Nem o lanche das crianças fica de fora. Uma pesquisa publicada no ano passado pelo Idec revelou que 59% dos ultraprocessados mais consumidos no país, como cereais matinais, bolachas, bebidas lácteas e pães, tinham resíduos de agrotóxicos. Em 14 dos 27 produtos analisados, foi identificada a presença de glifosato ou glufosinato, herbicida relacionado à má formação embrionária e a problemas no sistema nervoso central em ratos.
E se está no alimento, também está na água que sai da sua torneira. Em março deste ano, a Repórter Brasil mostrou que 50 cidades do país apresentam agrotóxicos acima do limite em suas águas. Os dados são resultados de testes realizados entre 2018 e 2020 por empresas ou órgãos de abastecimento e enviados ao Sisagua (Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano), do Ministério da Saúde. Dos 27 pesticidas monitorados na água do país, 19 são tão perigosos à saúde que foram proibidos na União Européia e 5 são “substâncias eternas”, tão resistentes que nunca se degradam.
A mais grave das mudanças criadas pelo ‘PL do Veneno’, segundo especialistas, é a exclusão de critérios que podem impedir o registro de um novo agrotóxico. Atualmente, qualquer substância que cause câncer, mutações no DNA ou má formação fetal não pode ser aprovada para uso no Brasil. O novo texto, entretanto, não cita nenhuma vez a palavra câncer nem especifica outros possíveis danos ao organismo.
Segundo a proposta, só será proibido o registro de novos produtos caso, “nas condições recomendadas de uso, apresentem risco inaceitável para os seres humanos e para o meio ambiente”. O critério para definir o que é um “risco aceitável” não está detalhado na proposta. “Botando o ‘liberou geral’ numa lei que tira as restrições atuais só vai deixar o cenário pior”, afirma Suely Araújo, especialista em políticas públicas do Observatório do Clima e ex-presidente do Ibama.
Araújo comenta que, se o projeto for aprovado, tanto a população quanto o solo, água e ar estarão mais expostos a agrotóxicos proibidos em outros países e reconhecidamente prejudiciais. “Esse PL implode com o sistema atual”, complementa.
O Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e principal destino de produtos proibidos em outros países e regiões, como a União Europeia.
Brasil é o maior consumidor de agrotóxicos do mundo e principal destino de pesticidas proibidos em outros países e regiões, como a União Europeia. (Foto: Pixabay)
“Quem é que aceita esse tipo de risco à exposição ao veneno? Todas as vezes que os senadores foram questionados, não conseguiram sustentar ou explicar essa questão nas audiências públicas”, afirma Juliana Acosta, da Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e pela Vida.
Expostos diariamente aos produtos nocivos, os assalariados rurais e os agricultores familiares representam o elo mais frágil. Entre 2010 e 2019, 7.163 trabalhadores rurais foram atendidos em hospitais e diagnosticados com intoxicação por agrotóxico dentro do ambiente de trabalho ou em decorrência da atividade profissional, segundo dados do Sinan (Sistema de Informação de Agravos de Notificação), do Ministério da Saúde. O quadro vai se agravar caso o projeto de lei seja aprovado.
“É uma situação grave. Sabemos que o trabalhador vai acabar ficando exposto. Temos diversos relatos: situações de como fica a pele do trabalhador, casos de câncer, que a cada dia aumentam, a contaminação da família, porque o trabalhador vai para casa contaminado. É uma série de preocupações”, afirma Gabriel Santos, presidente da Contar (Confederação Nacional dos Trabalhadores Assalariados e Assalariadas Rurais).
Juliana Acosta concorda: “o trabalhador da agricultura é o que estará mais exposto, e entrará em contato com substâncias ainda mais danosas”.
Segundo o PL, novos produtos só serão vetados em caso de “risco inaceitável mesmo diante de medidas de gestão de risco”, ou seja, mesmo com o uso de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs). A ausência de critérios sobre o que é ou não aceitável pode colocar em risco a saúde dos trabalhadores do campo. É o que teme o presidente da Contar. O sindicalista, que já foi aplicador de veneno em lavouras de arroz e soja no Rio Grande do Sul, explica que mesmo atualmente o uso de EPIs “não é garantia de tranquilidade”.
PL proíbe registro de novos agrotóxicos apenas em caso de “risco inaceitável” aos seres humanos e meio ambiente; ausência de critérios coloca trabalhadores do campo em risco.
(Foto: Aqua.Mech/Flickr)
“Quando você está trabalhando com um macacão de Tyvek [material sintético feito de fibras de polietileno], uma máscara de carbono, com luva, às vezes num sol escaldante de 40 graus, será que você vai aguentar trabalhar o dia todo nessa situação?”, questiona. “É muito difícil. Sabemos que o trabalhador vai acabar ficando exposto”.
Não é somente Santos que tem preocupações sobre o uso dos EPIs. Durante o processo de proibição do Paraquate, substância que pode gerar mutações genéticas e doença de Parkinson, a indústria afirmou diversas vezes que o uso correto dos equipamentos de segurança evitaria a contaminação dos trabalhadores. Contudo, especialistas ouvidos à época afirmaram que os protocolos para uso eram complexos e de difícil execução, além disso, as roupas eram extremamente quentes, tornando as medidas impraticáveis em algumas regiões do país.
Com a aprovação da nova lei, a liberação de mais produtos pode se intensificar e impactar até as exportações brasileiras. Em 2012, por exemplo, os Estados Unidos suspenderam a venda de suco de laranja vindo do Brasil devido à presença de carbendazim na bebida, agrotóxico que pode causar alterações genéticas, prejudicar a fertilidade e o feto, além de ser tóxico para a vida aquática.
“Teremos impacto econômico com a aprovação do PL”, garante Acosta. “Já existe precedente para que outros países barrem os produtos brasileiros com substâncias específicas proibidas em seus países. Quem é que vai ganhar com essa mudança?”.
Outro ponto questionado por pesquisadores e ambientalistas é o enfraquecimento da Anvisa e do Ibama, enquanto o Ministério da Agricultura ganha maior poder decisório. Hoje, os três órgãos são responsáveis pela análise sanitária, ambiental e agrícola do registro de um agrotóxico. Caso o projeto seja aprovado, o ministério será o único responsável pela análise e registro dos produtos, enquanto os outros dois órgãos deverão apenas homologar a avaliação da pasta.
“Hoje, os três órgãos estão em pé de igualdade. Se a Anvisa definir por banir um agrotóxico por ser inaceitável para a saúde humana, ele é proibido no Brasil. A partir do momento que ela não tiver mais esse poder, passa a sugerir ao ministério o banimento, que pode aceitar ou não. Haverá uma concentração de poder”, explica Juliana Acosta.
A proposta também cria um prazo máximo para análise de registros de novos produtos. O texto prevê que os pedidos devem ser analisados entre 30 dias e 2 anos. Se os três órgãos não conseguirem analisá-los dentro do prazo, poderão responder civil, penal e administrativamente, tendo que pagar multa em alguns casos, e os produtos receberão automaticamente uma autorização temporária. Na prática, há a possibilidade de diversos produtos que fazem mal à saúde e ao meio ambiente sejam registrados.
Hoje, a revisão de registros de agrotóxicos já é problemática. Os processos para reavaliação de produtos são demorados e muitos, mesmo com o risco à saúde e sendo banidos em outros países, acabam não tendo seu registro cancelado no Brasil. O glifosato é um exemplo: apesar de ter seu uso banido em diversos países como México, Catar e Vietnã, ser considerado provavelmente cancerígeno pela Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (Iarc) e ser um dos pesticidas que mais matam brasileiros por intoxicação, o Brasil optou por manter seu registro após uma reavaliação que durou 12 anos.
O projeto também altera regras que irão impactar diretamente os trabalhadores dos fabricantes de agrotóxicos. Caso aprovado, as empresas não precisarão mais registrar um produto que seja destinado à exportação e terão apenas que comunicar ao órgão responsável qual o produto e a quantidade a ser enviada ao exterior. Além disso, não será mais necessário que o fabricante apresente estudos toxicológicos e ambientais para a sua produção no Brasil de agrotóxicos destinados ao mercado exterior.
A proposta é criticada por especialistas. Segundo eles, o PL não considera os riscos relacionados ao processo de produção industrial, assim como os riscos aos trabalhadores que estarão lidando diretamente com aqueles produtos e as contaminações ambientais decorrentes da produção. “Toda uma cadeia produtiva que não passa [pela fiscalização] dos órgãos de regulação”, lamenta Acosta.
O texto ainda cria a possibilidade de engenheiros agrônomos, florestais e técnicos agrícolas prescreverem, de forma preventiva, receitas para o uso de agrotóxicos em caso de pragas. O projeto torna mais fácil a compra de produtos sem que haja uma necessidade de uso, deixando os trabalhadores rurais expostos a doses e produtos que não passaram por uma avaliação de um especialista. Críticos ao texto afirmam que essa medida irá criar “receituários de gaveta”.
Hoje, a venda de agrotóxico só acontece mediante a apresentação de uma receita dada por um especialista. Esse profissional, por sua vez, atua como um médico, analisa as condições da lavoura e recomenda qual pesticida deve ser utilizado, a quantidade, os EPIs, as restrições de uso, entre outros alertas. O principal objetivo da receita é garantir a segurança na venda e no uso dos venenos.