12 Julho 2022
Quando em 2015 circulou na imprensa a hipótese que imaginava como possível um encontro do Papa Francisco, em Havana, com os líderes da guerrilha das Farc que então negociavam a paz na ilha caribenha com o governo do presidente colombiano, Manuel Santos, alguns lembraram imediatamente a famosa e controversa Audiência de Paulo VI a três líderes africanos que lideravam as lutas armadas de libertação contra Portugal.
A informação é publicada por Il Sismografo, 11-07-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
O gesto do Papa Paulo VI teve grande repercussão na mídia e também não faltaram vários protestos diplomáticos. Em 1º. de Julho de 1970, de fato, no final da "Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colônias Portuguesas" realizada em Roma, o Papa Montini recebeu no Vaticano os três principais líderes que naqueles anos dirigiam os movimentos armados contra Lisboa nas então colônias portuguesas. Eram: Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos.
Da esquerda para a direita, Agostinho Neto, Marcelino dos Santos e Amilcar Cabral. (Foto: Reprodução)
Agostinho Neto, liderava o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Marcelino dos Santos a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e Amílcar Cabral era o Secretário-Geral do PAIGC (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde).
Mapa do continente africano com destaque para Moçambique, Angola e Guiné-Bisssau. (Foto: Reprodução | Blog de geografia)
Em 1º. de julho de 1970 o Papa Paulo VI se encontrou no Vaticano com os líderes dos principais movimentos de libertação das colônias portuguesas, Agostinho Neto que liderava o MPLA (Movimento Popular de Libertação de Angola), Marcelino dos Santos à frente da Frelimo (Frente de Libertação de Moçambique) e Amílcar Cabral, secretário-geral do Paigc (Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde), que naquela época estavam engajados em uma única batalha pela derrubada do domínio colonial português e o estabelecimento de sociedades livres.
A audiência privada, organizada nos mínimos pormenores, aconteceu no final da "Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colônias Portuguesas" que havia se realizado em Roma de 27 a 29 de junho e à qual participaram 177 organizações políticas, sindicais e religiosas em representação de 64 países.
Foi um dos eventos mais importantes - mas pouco conhecidos - da história dos países do Terceiro Mundo no final do século XX. Fruto da frutífera colaboração entre organizações de diferentes orientações políticas e intelectuais, o resultado positivo da Conferência refletiu a convergência de posições e interesses de diferentes quadrantes políticos que convergiram na solidariedade anticolonial, fato que se reflete na composição heterogênea do Comitê italiano: de fato, faziam parte Ferruccio Parri, Lucio Mario Luzzatto, Lelio Basso, além da decisiva colaboração de Dina Forti e Marcella Glisenti, na época diretora da Libreria Nuovi Paesi, ponto de encontro histórico dos terceiro mundistas italianos.
O anticolonialismo italiano desempenhou um papel importante na geografia da recepção do problema das colônias portuguesas - e dos movimentos de libertação nacional em geral – de um ponto de vista político e cultural, contribuindo para a legitimação internacional dos movimentos de libertação contra colonialismo lusitano e à difusão da cultura daqueles povos graças sobretudo às muitas atividades de Joyce Lussu e Giovanni Pirelli. O empenho do intelectual de Turim na causa da independência da Argélia quase uma década antes culminou com a tradução e publicação pela Einaudi dos I dannati della terra enriquecido pelo prefácio de Jean-Paul Sartre, que seria seguido anos mais tarde pelas Opere scelte di Frantz Fanon.
Exatamente dez anos antes da Conferência romana, em 30 de junho de 1960, dia em que o Congo conquistava a independência, o novo primeiro-ministro Patrice Lumumba advertia as elites europeias: “Quem jamais poderá esquecer que para um negro seja usada a forma de tratamento ‘tu’, não por ser amigo, mas porque o ‘você’ era reservado apenas para brancos." A "Conferência Internacional de Solidariedade para com os Povos das Colônias Portuguesas" tinha superado esse esquematismo dando conhecimento internacional às lutas dos três protagonistas das maiores revoluções coloniais Neto, Cabral e dos Santos e rompendo com o que o líder guineense tinha definido como "o muro de alto silêncio em torno dos nossos povos pelo colonialismo português".
Mapa da República Democrática do Congo. (Foto: Reprodução | Blog de Geografia)
A escolha do Papa Montini, que provocou um incidente diplomático com Portugal, representou um sinal claro e inequívoco como emerge fortemente das palavras de Cabral: “A audiência provocou uma grande desorientação nos ambientes governamentais e eclesiásticos portugueses, causando um impacto saudável nas consciências dos católicos de Portugal e do mundo, alguns dos quais ainda pretendem bancar os ‘defensores da civilização cristã e ocidental’, mesmo tentando sufocar no sangue e com o napalm as legítimas aspirações do nosso povo à liberdade, à justiça e ao progresso rumo à independência. O fato de a audiência ter sido uma grande vitória política e moral do nosso Partido e dos outros movimentos de libertação das colônias portuguesas dispensa qualquer comentário”.
Pela primeira vez na história, um papa se encontrava com os líderes de movimentos guerrilheiros que, além disso, lutavam contra o “catoliquíssimo” Portugal governado por um regime, cujas hierarquias católicas sempre estiveram do lado do colonialismo com raríssimas exceções. Marcella Glisenti lembrou que quando no final do segundo dia de trabalho "fui à mesa da presidência para dizer a Cabral que Paulo VI o receberia em audiência privada com dos Santos e Neto dois dias após a conclusão da Conferência, ele me disse: ‘eis o primeiro dia de nossa criação como nação’.
O líder do PAIGC reconhecia ao Papa Montini a força de seu empenho ao lado dos povos africanos: "A conferência em Roma e a audiência com o Papa Paulo VI marcaram uma nova etapa em nossa luta no plano internacional, porque causou no inimigo colonialista uma desorientação que ele não soube esconder”.
A repercussão da audiência em nível internacional demonstrou seu valor histórico tanto para a luta dos povos quanto para o prestígio da Igreja na África e no mundo, também pelo fato de Paulo VI ter doado aos líderes africanos um livro de João XXIII e um exemplar da Encíclica Populorum Progressio pedindo aos três homens, revelou mais tarde o Cardeal Achille Silvestrini, para não entrar em questões políticas, “mas conhecemos a vossa aspiração. A Igreja, a essa aspiração, não só dá a sua simpatia, mas também o seu apoio”.
Um fio, portanto, ligava a ação pontifícia de Montini a partir do discurso que proferiu na Assembleia Geral das Nações Unidas em 4 de outubro de 1965, no qual havia feito de sua voz a "voz dos pobres, dos deserdados, dos sofredores, daqueles que anseiam por justiça, por dignidade da vida, por liberdade, por bem-estar e por progresso", à homilia proferida em solo colombiano em 23 de agosto de 1968, na qual havia denunciado em termos inequívocos as "desigualdades econômicas injustas entre ricos e pobres" e "os abusos autoritários" ", indicando como saída uma "nova ordem, mais humana".
Assim, a mensagem lançada pela Santa Sé em 1º de julho, há cinquenta anos, era clara. Era confirmada a linha pós-conciliar como vimos já delineada alguns anos antes em favor dos povos latino-americanos oprimidos e cristalizada na encíclica, documento que, escreveu o padre Gustavo Gutiérrez, ressoou como uma trombeta na América Latina, pois exigia maior justiça e, ao mesmo tempo, exortava ao "desenvolvimento dos povos, especialmente daqueles que lutam para se libertar do jugo da fome, da miséria, das doenças endêmicas, da ignorância".
A encíclica teria encorajado a igreja sul-americana a aprofundar a nova mensagem da teologia da libertação que seria mais tarde reformulada, reinterpretada e declinada por vários teólogos, pedagogos e religiosos em todo o subcontinente, superando o conceito vazio de "desenvolvimento" ("desarrollo") que até então havia engessado o subcontinente.
[1] Artigo de Andreia Mulas, pesquisador da Fundação Lelio e Lisli Basso, reproduzido por Articolo, 15-06-2020.
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Quando, 50 anos atrás, Paulo VI recebeu no Vaticano três líderes africanos de movimentos armados: Amílcar Cabral, Agostinho Neto e Marcelino dos Santos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU