27 Junho 2022
“É justamente a força do tecido organizacional indígena que sustentou a mobilização social no início desta paralisação nacional de 2022. Sua corajosa e enorme entrega à luta social contagia os meios urbanos conforme passam os dias. Desencadeia as forças contidas da frustração e da vontade dos setores branco-mestiços mais empobrecidos, com os quais compartilham condições de vida semelhantes”, escreve Pablo Ospina Peralta, professor da Universidade Andina Simón Bolívar, pesquisador do Instituto de Estudos Equatorianos e militante da Comissão de Vivência, Fé e Política, em artigo publicado por Nueva Sociedad, Junho/2022. A tradução é do Cepat.
No momento em que escrevo estas linhas, o Equador vive o décimo dia de uma paralisação nacional que evoluiu até se tornar uma autêntica rebelião popular, liderada pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Outra vez a Conaie.
A Confederação foi criada em 1986 pela confluência de uma organização regional de povos indígenas amazônicos, a Confederação de Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (Confenaie), fundada em 1982, e uma organização regional de povos indígenas da Serra, a Confederação de Povos da Nacionalidade Kichwa do Equador/Ecuarunari, fundada, por sua vez, em 1972.
Em 1990, a Conaie se tornou a mobilizadora de um grande levante indígena que paralisou o país e catapultou a organização para torná-la a porta-voz mais poderosa e autorizada dos povos e nacionalidades indígenas do Equador. Desde então, sucessivos levantes e paralisações nacionais convocados ou liderados por essa entidade matriz do movimento indígena a tornaram o centro de uma coalizão popular que se opôs às políticas de ajuste estrutural neoliberal, durante os anos 1990 e os primeiros anos do novo século.
Após a chegada do governo de Rafael Correa (2007-2017), a Conaie foi o centro articulador de uma oposição de esquerda à versão equatoriana do progressismo, especialmente em temas agrários, de gestão da água e na resistência ao extrativismo. Desde 1996, o movimento político eleitoral Pachakutik, fundado e comandado (não sem tensões) pela Conaie, tem participado com sucesso de eleições locais em várias províncias amazônicas e da Serra e formado coalizões de esquerda e centro-esquerda para participar de eleições nacionais. Sua melhor participação eleitoral nacional foi em fevereiro de 2021, após o levante popular de outubro de 2019, quando Yaku Pérez Guartambel, seu candidato presidencial, obteve 20% dos votos e ficou perto de ir para o segundo turno.
Na convocação atual, a Conaie não está só: coordena suas ações e declarações com duas organizações rurais nacionais de base social indígena e camponesa, o Conselho de Povos e Organizações Indígenas Evangélicas do Equador (Feine) e a Confederação Nacional de Organizações Camponesas, Indígenas e Negras (Fenocin). A primeira, como o próprio nome indica, é uma organização de indígenas evangélicos, ao passo que a segunda reúne uma rede de organizações rurais que em algumas províncias concorre com a Conaie e possui orientação mais decididamente camponesa.
Outras organizações populares urbanas aderiram à paralisação ou convocaram mobilizações paralelas que se conectam a ela: a Frente Popular, baseada em grupos estudantis e de professores, a Frente Unitária de Trabalhadores, de sindicatos operários, e uma infinidade de coletivos descentralizados feministas, ambientalistas, cristãos, de bairros e estudantis. Mas o que sustenta e anima essa mobilização urbana, mais dispersa e tardia, é o impulso rural das comunidades de base da Conaie. Por isso, obviamente, a rebelião é mais intensa onde há bases organizadas pela entidade indígena e menos forte onde é mais fraca, como no litoral ou em várias cidades andinas, como as sulistas Cuenca e Loja.
Seja qual for o desenlace final dessa nova rebelião popular equatoriana, a Conaie sairá ainda mais forte. Como explicar a sobrevivência de mais de 30 anos de capacidade contínua de mobilização? O mistério que cerca esse autêntico milagre político e organizacional se torna mais profundo quando são lembrados os contínuos conflitos entre os líderes ou as constantes divisões e tensões que acompanham cada eleição de um novo presidente da organização.
Evidentemente, a Conaie soube interpretar nos dois levantes mais poderosos dos últimos tempos, o de outubro de 2019 e o atual, a intensidade da ira e do desespero popular diante das medidas de ajuste econômico, diante da indiferença governamental e diante do colapso do emprego e a carestia. Mas existe algo a mais do que apenas a habilidade em combinar a radicalidade na mobilização social com a capacidade de se concentrar em demandas populares mais amplas do que as exclusivas reivindicações setoriais dos indígenas. De fato, foi em um desses levantes contra medidas semelhantes de ajuste econômico, em fevereiro de 2001, que surgiu o slogan cunhado pelos manifestantes e que ficou marcado como símbolo e comportamento público das mobilizações futuras: “Nada só para os índios”.
Aponto duas razões. Em seus 35 anos de existência, a organização nacional funciona como uma rede descentralizada que reúne nada menos do que 2.000 organizações de base, comunidades, centros, conselhos ou comunas, que operam como governos territoriais. As estruturas territoriais superiores, que atuam nos níveis provincial, regional e nacional, funcionam como estruturas reivindicativas e de coordenação, mas as estruturas comunitárias operam em uma lógica autonomista, ou seja, em vez de se concentrar exclusivamente na reivindicação do Estado, dedicam-se diretamente a revolver problemas locais.
Gerem a irrigação, administram o trabalho de construção e manutenção da infraestrutura, executam projetos produtivos, resolvem conflitos de bairro, exercem a justiça comunal em casos civis e penais. As reclamações ou solicitações ao Estado buscam geralmente sua contribuição, sua ajuda ou que facilite recursos para suas próprias iniciativas. Ou, ao menos, que não estorve. Não concentram sua luta em pedir que o Estado faça em seu lugar, mas buscam manter, com maior ou menor êxito, sua autonomia para ser governo local ou participar muito ativamente dele.
O efeito preciso de tal configuração organizacional é este: em um tempo e um país onde a palavra dos políticos e da política está tão desacreditada, as organizações indígenas falam por seus atos, suas bases reconhecem só aqueles que passaram por essa labuta organizacional de “falar fazendo”. Está longe de ser perfeito ou harmônico, é claro, mas é uma tendência claramente discernível de sua conflitiva história organizacional. E é um elemento crucial de sua permanência e de sua contínua legitimidade junto às bases.
A estratégia política da Conaie, desde o seu nascimento, tem sido uma contínua e conflituosa combinação de formas de luta: a mobilização social e a participação eleitoral são, é claro, as mais conhecidas. Em qualquer balanço final de ambições redobradas, burocratização e caudilhismos exacerbados, em meio à contínua tensão entre autoridades eleitas e lideranças das organizações, há um efeito fundamental.
A participação institucional (mas também os projetos de desenvolvimento) favorece que centenas ou mesmo milhares de intelectuais e profissionais indígenas se mantenham ligados ao movimento social em suas atividades cotidianas de trabalho. E não só isso: em muitos casos, não em todos, é claro, esses intelectuais e profissionais se mantêm parcialmente dependentes das estruturas organizacionais e da mobilização social. Seu sucesso político depende, em uma dinâmica variável e instável, do apoio da organização de base.
Nada garante que será sempre assim, e há casos em que os caudilhos se tornam autônomos e se mantêm sós, baseados em seu prestígio pessoal e suas próprias redes de poder. Mas o fato permanece: sem essa combinação de estratégias, as comunidades e organizações de base teriam muito mais dificuldades para segurar uma geração de profissionais e quadros políticos que alimentam, aproximam e fortalecem o funcionamento organizacional e que dele dependem. O centro de parte do futuro organizacional estará no equilíbrio preciso entre o nível de dependência dos atores em relação à organização ou, ao contrário, o quanto a organização estará subordinada aos atores.
É justamente a força do tecido organizacional indígena que sustentou a mobilização social no início desta paralisação nacional de 2022. Sua corajosa e enorme entrega à luta social contagia os meios urbanos conforme passam os dias. Desencadeia as forças contidas da frustração e da vontade dos setores branco-mestiços mais empobrecidos, com os quais compartilham condições de vida semelhantes. Por outro lado, o mundo branco-mestiço acomodado se polariza contra o mundo popular inflamado e cresce o racismo ou se manifesta aquele que permanecia oculto.
Também é verdade que crescem os hegemonismos na própria Conaie, porque ninguém no mundo das organizações populares tem uma estrutura organizacional e de mobilização medianamente comparável. Mas a solução ao dilema de sua hegemonia incontestável não consiste em exigir dela uma generosidade política desinteressada (o que demonstra muito em suas reivindicações includentes), mas, sim, em construir organizações que possam ser comparadas a ela.
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Equador. “Nada só para os índios” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU