A atroz beleza do soldado moribundo. Artigo de Tomaso Montanari

Soldado Morto, 1950. Vasco Prado. (Foto: Acervo Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli)

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23 Mai 2022

 

Este quadro é um epicédio para quem caiu em armas. Essas malditas armas com as quais invasores e invadidos esperam vencer a guerra. Belas, cintilantes, elegantes: como um caixão que fecha para sempre o corpo e a alma desse soldado à espera da morte.

 

A reflexão é do historiador da arte italiano Tomaso Montanari, professor da Universidade Federico II de Nápoles. O artigo foi publicado no caderno Il Venerdì, do jornal La Repubblica, 20-05-2022. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

 

Eis o texto.

 

Este não é um quadro fácil. Foi comprado pela National Gallery de Londres como de Diego Velàzquez e foi capaz de inspirar (como tal) o célebre “Torero morto”, de Édouard Manet: mas hoje não sabemos a quem atribuí-lo.

 

Parece ser do século XVII (mas não faltaram dúvidas a quem tentava situá-lo justamente no tempo de Manet) e italiano (e não espanhol): mas quem realmente o pintou? Em Nápoles ou em Roma? Ou na Emília?

 

Cada vez que me detenho diante dele, me vem à mente a aguda melancolia e a intensa e profunda pintura de Domenico Fetti: mais uma sensação do que uma proposta científica.

 

Soldado moribundo, autor italiano desconhecido, óleo sobre tela, primeira metade do século XVII, National Gallery, Londres (Foto: Wikimedia)

 

Em todo o caso, se hoje essa magnífica tela me veio à mente, não é pela sua atribuição, mas pelo seu significado. Um soldado morto, ou talvez prestes a expirar. Em uma caverna, entre caveiras e ossos: como um São Jorge derrotado pelo dragão. Composto como um bailarino, a quem poderiam pertencer aqueles pomposos sapatos de laço. É quase o amanhecer, o céu clareia.

 

Mas a lanterna ficou sem óleo, está se apagando: o sopro vital esgotou. E as bolhas, em primeiro plano, falam da fragilidade humana, da facilidade de despedaçar uma vida.

 

Nestas semanas, pensei todos os dias nos civis, nos pais, mães e filhos, nos professores e nos médicos da Ucrânia sob as bombas. Nos desertores: porque é bem-aventurado quem diz não à guerra, de todos os modos e de todas as formas.

 

Mas esse quadro é um epicédio para quem caiu em armas. Essas malditas armas com as quais invasores e invadidos esperam vencer a guerra. Belas, cintilantes, elegantes: como um caixão que fecha para sempre o corpo e a alma desse soldado à espera da morte.

 

Mas mais belo do que as armas é o soldado: os seus cabelos rebeldes de garoto, o seu perfil elegante, a sua mão ossuda e muito grande – como ocorre com os adolescentes que não acabaram de crescer. Belo: mas de uma beleza atrozmente sequestrada pela morte.

 

Como não ver nele os corpos sem vida dos soldados russos, enviados ao massacre por um tirano monstruoso. E os dos soldados ucranianos, que nem o seu governo nem os nossos conseguem salvar. São todos iguais na morte. Até mesmo aqueles dos monstros que combatem em ambos os fronts. Os nazistas do batalhão Azov com o sol preto no uniforme e os chechenos que parecem possuídos pela morte mesmo quando vivos.

 

Mas, realmente, diante de um corpo assim, alguém consegue falar de heroísmo e de pátria, de bandeiras e de liberdade? Ideais para viver, não para morrer.

 

Deixemos que os celebrem com palavras cheias de mentiras os chefes de governo: que a morrer não vão. Nós paramos em silêncio, ao lado desses corpos. Todos estirados assim, enquanto o sol surge inutilmente, e a lanterna da vida se apaga.

 

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