"Bento XVI e Francisco são dois presentes do Espírito Santo para a Igreja, para nós, corpo de Cristo, que por vezes preferimos a nossa própria militância do que a da Igreja militante. Enquanto Bento XVI nos explica teoricamente e argumentativamente quem é Deus, nos mostra a beleza da Igreja e nos inquieta na busca da Verdade, Francisco nos anuncia Cristo na vivência diária do Evangelho, nos diz todos os dias que devemos nos encontrar pessoalmente com Ele na oração diária porque é Ele quem nos modifica interiormente e exteriormente, tal como repetiram todos os grandes mestres espirituais da mística cristã. Portanto, os dois são papas do querigma".
O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.
Muitas análises comparativas entre Bento XVI e o Papa Francisco acentuam as diferenças entre ambos, suas posições teológicas e pastorais, seus erros e acertos na condução da Igreja, as implicações políticas de seus discursos e tentam decifrar quais são as visões de cada um sobre a própria Igreja, como se eles tivessem visões radicalmente opostas - e não complementares ou as mesmas, expressas de diferentes modos - do que é a Igreja e como ela deveria atuar no mundo enquanto corpo de Cristo. O exercício em si não é inútil, porque expressa as características e os carismas de cada um enquanto sucessor de Pedro, assim como as dificuldades e particularidades das ações de cada um no momento histórico em que atuaram e atuam no governo da Igreja.
Em algum nível, as análises também manifestam muito do nosso jeito de olhar para a própria Igreja: mais uma instituição meramente humana, que pode ser conduzida deste ou daquele modo, a depender do chefe do momento, ou uma instituição velha e arcaica que é enredada em velhas regras e normas que foram inventadas igualmente por outros homens que estiveram à frente do seu governo no passado. Por vezes, esquecemo-nos que a Igreja é mais do que isso e que os Padres da Igreja primitiva e da Patrística foram igualmente movidos por um desejo visceral de entendimento do Evangelho. Se ela perdura desde que foi instituída por Cristo, certamente não é pelo mérito dos seus membros, mas pela própria ação do Espírito Santo, que age, apesar das inúmeras misérias que acometem os pontífices, os bispos, os sacerdotes, os religiosos e as religiosas, e nós próprios, os leigos.
Se olhamos para os pontificados de Bento XVI e de Francisco do ponto de vista espiritual, para além da mesquinharia diária que acomete a Igreja, das dificuldades na resolução de temas difíceis que causam dores a todos os envolvidos, no disque-disque dos corredores e de uma visão reduzida à ação política, será possível observar a ação do Espírito Santo nos comunicando algo sobre o que significa ser e viver como o corpo de Cristo.
Se, de um lado, a erudição de Bento XVI causa ojeriza em parte da Igreja, é possível perceber que ela está diretamente vinculada não só ao seu amor por Cristo e pela própria Igreja, mas em uma motivação existencial agostiniana que busca incansavelmente a Verdade - por isso seu envolvimento em tantos debates filosóficos sobre temas que dizem respeito à fé cristã em diálogo com o desenvolvimento das demais ciências, a fim de nos mostrar que é possível crer e ter uma fé esclarecida apesar do progresso científico - e tenta comunicá-la de diferentes maneiras. Seu esforço é, assim como o dos Padres da Igreja, nos comunicar que Jesus é o próprio Deus encarnado e que o amor a Cristo deveria nos ensinar a amar igualmente a Igreja, que é seu corpo. E, portanto, as suas honras no serviço ao altar e o cuidado com as coisas sacras nada têm a ver com pedantismo ou mero apego ou ostentação de riqueza, mas consistem em atos para manifestar, através da liturgia, a nossa própria relação com Aquele que É e o culto que manifestamos a Ele - que inclusive está presente em todas as celebrações através da ação do Espírito Santo e da própria Eucaristia.
De outro lado, se o "cheiro de rua" de Francisco causa ojeriza em outra parte da Igreja, que é mais afeita ao templo e ao cumprimento da liturgia, dos ritos, e da tradição, é inegável o seu amor a Cristo e a Virgem Maria - mãe da Igreja -, a radicalidade com que vive o Evangelho, sua vida de oração e contemplação constante que tem reflexo direto em suas ações e discursos entre e sobre aqueles que mais necessitam, que estão nas periferias do mundo, seja em situações de pobreza social e econômica, seja em casos de pobreza existencial. Este é um papa que nos ensina que a caridade não consiste apenas em dar esmola ou participar de movimentos sociais, mas negar-se a si mesmo, ajudando o próximo nas pequenas coisas do cotidiano banal.
Bento XVI e Francisco são dois presentes do Espírito Santo para a Igreja, para nós, corpo de Cristo, que por vezes preferimos a nossa própria militância do que a da Igreja militante. Enquanto Bento XVI nos explica teoricamente e argumentativamente quem é Deus, nos mostra a beleza da Igreja e nos inquieta na busca da Verdade, Francisco nos anuncia Cristo na vivência diária do Evangelho, nos diz todos os dias que devemos nos encontrar pessoalmente com Ele na oração diária porque é Ele quem nos modifica interiormente e exteriormente, tal como repetiram todos os grandes mestres espirituais da mística cristã. Portanto, os dois são papas do querigma. Como sabemos - e isso é visível nos diversos carismas da Igreja - há muitos modos de anunciar o querigma.
Ao invés de nos perdermos na defesa de um ou de outro, que diz mais sobre os nossos próprios gostos pessoais, seria mais oportuno nos abrirmos também ao Espírito Santo, para descobrir as maravilhas que Ele nos comunica através dos dois últimos papas que Ele próprio guia.