08 Abril 2022
São seis da tarde, a hora em que a luz se transforma em noite. Uma criança brinca no balanço, outra, um pouco mais velha, desliza pelo escorregador, fechando os olhos.
A reportagem é de Francesca Mannocchi, publicada por La Stampa, 01-04-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
Natalia Gayetska está sentada no banco da frente, vestida com um macacão cinza muito maior que seu corpo delgado, tênis e uma manta para aquecer o pescoço. Suas pernas se cruzam nervosamente, no rosto, ao contrário, a expressão é sóbria, às vezes altiva. Os cabelos grisalhos puxados cuidadosamente atrás da nuca. Ela usa um par de óculos - armação preta brilhante, o formato de uma folha - o único sinal para lembrar que a vida para ela, antes, era outra. Isso é o que sobrevive no corpo e no rosto dos evacuados, um detalhe, uma borda, uma moldura de memória que sempre lembra, a eles que sobreviveram e a nós que olhamos, que aqueles seres humanos dobrados pelos acontecimentos tiveram outra vida.
A vida de Natalia era em Mariupol. Ela era engenheira, trabalhou em um estúdio de arquitetura para imaginar o futuro ecossustentável da cidade. Ao dizê-lo, sente o constrangimento de alguém que expressou um desejo e ao mesmo tempo percebeu que ousou demais. Para voltar à realidade, então, pega o telefone, para olhar e mostrar as imagens de Mariupol, cidade para a qual o adjetivo destruído já não basta. Natalia expressa isso imediatamente. "Não a chame de cidade destruída", e então ela se corrige.
Cidade é um lugar onde se vive e se deseja. Onde se respeita o passado e se avança a passos lentos e resolutos em direção ao futuro. A moradia e o escritório de Natalia, no lugar que antes era a casa, não existem mais. Há imagens do subsolo, sua mãe enrolada em cobertores durante os dias e noites no subsolo para se proteger das bombas. Dias sem luz, sem água e com comida racionada. Os dias da separação, em que lentamente se perde o contato com os outros e o que acontece lá fora é desconhecido. Foi assim que Natalia viveu por semanas, sem saber do que acontecia do lado de fora, segurando a mão da mãe e do pai, idosos e frágeis.
Diante das palavras ‘corredores humanitários’, a expressão no rosto torna-se dura. Não sabia nada sobre isso. Impossível saber se alguém estava indo para Mariupol para libertar as pessoas. As únicas pessoas que ela viu serem levadas são aquelas levadas pelos russos que eram obrigadas a segui-los, eram colocadas nos ônibus e levadas embora. E depois as outras mulheres, como a amiga Maryana. Ela sente dificuldade em falar a respeito, porque para quebrar os tabus da violência, o tempo parece ser sempre o errado. Depois respira fundo e pronuncia o indizível, de que seus ouvidos foram testemunhas: "Eles entraram na casa dela, e a violentaram". Nem uma palavra a mais sobre violência, não uma palavra a mais. Não são necessárias.
Não sabe mais nada sobre ela. Um dia, cansada demais até para se esconder, ela concordou em se arriscar com as outras mulheres que se escondiam com seus filhos no porão de seu prédio. As outras pegaram os pequenos no colo, ela pegou a mãe e o pai pela mão, saíram, caminharam um pouco pela estrada para o norte, aquela que leva a Zaporijha. Se der errado - pensavam - morreremos. Nas semanas no subsolo ela havia acertado os termos com essa possibilidade. O que não tinha considerado era ver sua cidade despedaçada quando a estava abandonando. Ela caminhou com as outras mulheres e os pais quase sem fôlego, conseguiu usar o telefone novamente. Pedir a um parente para chegar perto da cidade e levá-los embora. Aconteceu no dia 15 de março. Desde então Natalia vive em Lviv, fica na fronteira, mas não quer sair dali.
Para a primavera, a dor não pode ser explicada. Assim era Kiev ontem. Algumas lojas e cafés abertos novamente. O sol batendo nos postos de controle e nos sacos de terra colocados nas ruas para fortificar o território ou em frente às fachadas dos prédios. As flores que desabrochavam nos canteiros surpreendiam como os animais raros. As temperaturas amenas do meio-dia escondiam outra mudança que nada tem a ver com o calendário que modula as estações, mas muito mais com aquele que marca os dias. Isto é o que Kiev mostrava ontem. Ou melhor, o que teimosamente tentava esconder. Que a cidade, as pessoas que ficaram, estão se acostumando com a guerra. Elas não estão habituadas, estão se adaptando à ideia de que a guerra veio para ficar.
E assim aprenderam a organizar as horas de acordo com as novas necessidades. As horas para passar no posto de gasolina, aquelas no guichê do banco, aquelas para comprar um pouco de pão.
São as necessidades do tempo de guerra, às quais os espíritos gradualmente se alinham. Não há civis tentando atravessar a ponte demolida de Irpin, totalmente reconquistada pelo exército ucraniano, de acordo com as declarações do Ministério da Defesa de Kiev, nem há veículos amarelos e voluntários esperando por eles. Não há filas de quilômetros de carros com bandeirinhas brancas em direção à cidade, vindos de Bucha, de Hostomel. Os que conseguiram sair já estão na capital ou deixaram o país.
Quem não conseguiu, é refém da guerra. As próprias estradas para o noroeste estão desertas hoje.
Assim como a que leva a Petrushki está deserta, poucos quilômetros abaixo de Bucha, a oeste de Kiev.
Uma cidade de casas baixas, cada uma com um jardim, uma horta. Muita com escorregador e balanço na frente.
Três mil pessoas viviam lá antes da guerra. Hoje são cinquenta. Quase todas idosas.
Ao longo da estrada que leva à igreja, os sinais dos morteiros que destruíram o asfalto e as casas. Em frente à igreja, também atingida, quatro idosos e uma mulher, de bicicleta, Tatiana Serenov. Ele tem 70 anos. Mora sozinha em Petruskhi. Ela não vai embora porque a única pessoa que lhe resta é o pai, que mora a poucos quilômetros dali, no pequeno vilarejo de Mila, e sofre de um problema cardíaco. Mas ela não pode visitá-lo, porque os russos ainda estão em Mila, estão escondidos nos bosques e montam postos de controle improvisados. Impossível saber onde estão, impossível prever seus movimentos, portanto é perigoso demais levar os remédios ao seu pai. É por isso que Tatiana vem à igreja do padre Vassily, que agora só quer ser chamado de Vassily. A guerra mudou tudo, diz ele. Mudou a igreja, que se tornou um depósito: foram tirados os bancos para rezar, os livros sagrados, as velas e o incenso. Restam caixas de fraldas para crianças e idosos. Azeite e farinha. E remédios, especialmente os remédios, trancados a chave em uma sala. E também, sob a cruz, em frente ao altar, os galões de gasolina que chegam de Kiev, para serem divididas para acionar os geradores de energia. Não há eletricidade e se aprende a viver novamente, como antigamente.
A igreja não é mais a igreja. E o padre Vassily é apenas Vassily, o líder da comunidade dos que ficaram.
Ele prefere ser chamado assim. "Não é uma blasfêmia, diz ele, é que a guerra muda tudo."
Quase tudo. Mesmo fora da igreja, no jardim, as flores desabrocharam.
Alexander é o mais jovem dos que ficaram e o único de uniforme. Antes da guerra tinha uma mercearia, hoje dirige a Unidade de Defesa Territorial de Petrushki. É a ele que Tatiana entrega os remédios para levar ao pai. Vassily veste suas roupas espirituais, o faz inclinar a cabeça, desenha o sinal da cruz com a ponta dos dedos em sua nuca e lhe diz apenas: volte.
Não ‘volte em paz’. Apenas ‘volte’. Aqui também, como em Kiev, entenderam que a guerra veio para ficar.
Na sacristia os homens compartilham combustível e antibióticos. Eles aprenderam que viver juntos significa aprender a racionar. Em seguida, dividem a farinha, o óleo e o sal. Vassily pede para ser seguido. Ele percorre a avenida que sai da igreja, se encaminha por uma rua, ele silencioso, o espaço silencioso. Ele só move as mãos, para esquerda e para direita, dependendo da casa destruída para a qual quer apontar. Chega em frente a um posto de bloqueio, e com um gesto do rosto, mais uma vez silencioso, pede permissão aos soldados para ir até o grande edifício lateral, ocupado por outros soldados que estão descarregando armas e macas, munições e sacos de dormir. Era o depósito onde os alimentos eram armazenados para abastecer os supermercados da região. Foi atingido por um míssil russo. Ainda no chão os sucos de frutas, caixas de leite, pacotes de farinha enegrecidos pelo fogo.
A guerra muda tudo, a primeira arma da guerra é a fome. É aquela que desfigura civis, muda rostos, esmaece almas. Putin sabe disso. É por isso que atingir armazéns e depósitos de alimentos desde sempre fez parte de sua estratégia militar. Foi na Síria, é novamente na Ucrânia.
É por isso que não é por acaso que, três dias atrás, justamente no dia das conversações de negociação na Turquia que deveriam aproximar os agressores e os agredidos, as negociações que pareciam ter marcado um passo positivo na relação entre a Rússia e a Ucrânia, o exército russo bombardeou o armazém de Krasilivky, a vinte quilômetros de Kiev.
Ele havia feito o mesmo duas semanas antes com o gigantesco armazém de Brovary, a poucas centenas de metros de distância. A mensagem era e é muito clara: às derrotas no nível militar e às não vitórias no plano diplomático, a resposta russa é a guerra de desgaste contra os civis.
Ou contra os reféns, ou os famintos.
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O que resta de Kiev - Instituto Humanitas Unisinos - IHU