Dogville: “As pessoas são as mesmas em qualquer lugar”

Foto: Reprodução

22 Março 2022

 

"O que move as personagens de Dogville é exatamente o oposto daquilo que o Papa Francisco vem tentando nos comunicar quase todos os dias: misericórdia".

 

O comentário é de Patricia Fachin, jornalista, graduada e mestre em Filosofia pela Unisinos.

 

"Dogville - Uma pacata cidade não muito longe daqui" é o título do filme do diretor dinamarquês Lars von Trier, classificado como um dos dez melhores produzidos na primeira década dos anos 2000. A trama tem como cenário os Estados Unidos durante a Grande Depressão dos anos 1930, mas, como o próprio título sugere, a história é muito mais próxima de qualquer um de nós do que podemos imaginar.

 

O que move as personagens de Dogville é exatamente o oposto daquilo que o Papa Francisco vem tentando nos comunicar quase todos os dias: misericórdia. Para quem nunca assistiu ao filme, é preciso um pouco de paciência para acompanhar o desenrolar do enredo, que se passa em um pequeno set de cinema, intercalado por dez takes, um prologo e nove capítulos, no qual é possível observar a história de cada personagem em particular e também sua inserção na comunidade. O fato de todos os ambientes serem representados apenas por marcações no chão, que determinam cada local, sem a edificação de paredes, parece ser um indicativo de que o diretor deseja nos mostrar muito do que nós somos, especialmente se desejamos nos mantermos fieis à nossa própria natureza.

 

 

Resumidamente, Dogville narra a relação de Grace, uma fugitiva que busca refúgio no vilarejo, com o restante da comunidade. Inicialmente, os moradores são determinantemente contra sua permanência no local, mas depois de sopesarem os riscos e as possíveis vantagens que poderiam obter com sua presença entre eles, decidem acolhê-la por duas semanas. Mas, pouco a pouco, ela é transformada em escrava e este é o preço a pagar para permanecer escondida. Sufocados por suas misérias, dores e sofrimentos particulares, os moradores de Dogville justificam em si mesmos e nos outros a dificuldade de optar pela misericórdia.

 

 

Grace, que à primeira vista é apresentada como a injustiçada, digna dos sentimentos de pena e de revolta por parte dos espectadores, não surpreende quem observa a condição humana abandonada em si mesma: ela própria decide pela execução e pelo extermínio de todos aqueles que, apesar de suas misérias, fraquezas e egoísmos, um dia lhe estenderam a mão. O cardápio para justificar o comportamento dela e de seus vizinhos é vasto, mas difícil de ser coadunado com a misericórdia.

 

 

Em oposição a Dogville, outra arte expressa a misericórdia, aquela que volta a clamar em todos os momentos em que o sofrimento humano é escancarado no cotidiano - e não poderia ser outra: a Pietà. Jesus morto nos braços de sua mãe. Essa obra tem um valor em si mesma não só porque Michelangelo a esculpiu em um bloco de mármore bruto aos 24 anos, mas porque o sofrimento resignado, a dor e o amor de Maria sobre o corpo morto do filho é e continuará sendo um símbolo da Paixão de Cristo e da "paixão do mundo", que grita por misericórdia. Ela é igualmente universal porque nos diz algo sobre a maravilha que também deseja ser esculpida em nós.

 


Pietà de Michelangelo (Foto: Reprodução)

 

Como explica o Papa Francisco, a misericórdia é diferente de ter "bons sentimentos" e de "fazer filantropia". Trata-se de outro tipo de sentimento e experiência: "uma viagem do coração às mãos", como ele disse no 14º Encontro Nacional de "Manos Abiertas" em 2016. Isto é, uma viagem de ida e de volta: de ida quando permitimos que o nosso coração seja ferido pela miséria do outro e pela nossa, para que ela entre em nosso coração e do coração faça a viagem de volta, vá às mãos, com atos de misericórdia para com os demais. Em suma, a misericórdia depende fundamentalmente da relação pessoal de cada um com Cristo, como expõe o Papa: "O único caminho para sentir misericórdia é através do próprio pecado reconhecido por quem o pratica e perdoado pelo Senhor, através do pecado reconhecido e perdoado. Só podemos ser misericordiosos se nos sentirmos realmente misericordiados pelo Senhor, de outra maneira não se pode ser misericordiosos".

 

 

 

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