15 Março 2022
"Talvez a era 'pós-moderna' seja, por assim dizer, a era das máscaras individuais e coletivas. As individuais para evitar o sofrimento maior de precisarmos tomar conhecimento do horror perpetrado pela própria dinâmica do progresso capitalista democrático", escreve André Márcio Neves Soares, mestre e doutorando em Políticas Sociais e Cidadania pela Universidade Católica do Salvador – UCSAL, e integrante do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH).
O que uma passagem do filme “Batman Begins” e as máscaras usadas nessa pandemia da COVID-19 têm a ver com a invasão russa da Ucrânia? Resposta: as múltiplas facetas de todos nós, seres humanos.
Mesmo para quem viu, não custa relembrar uma cena quase no final do primeiro filme da trilogia sobre o herói fantasiado de morcego, o Batman, em que a mocinha, chamada Rachel, beija Bruce Wayne e diz que teve esperanças quando ele retornou à cidade, até descobrir a máscara que ele usava. Wayne então diz que o “Batman” é apenas um símbolo, mas Rachel o interrompe afirmando que não era à máscara do “Batman” que se referia, mas ao próprio rosto de Wayne, pois este era o verdadeiro rosto que todos agora temiam. E acrescenta que, quando tudo isso acabar, talvez um dia ela possa recuperar o homem que amou no passado. Melodramático? Um pouco! Mas essa passagem emblemática do filme pode nos dar algumas pistas das inúmeras facetas dos seres humanos reveladas durante essa pandemia e, para piorar tudo, nesse conflito que estourou no leste europeu.
É fato que não paramos para pensar sobre as consequências dessa pandemia, para além de todos os horrores que a nossa espécie tem vivenciado, de ordem médica, sanitária, psicológica, fisiológica, financeira etc. Na verdade, a máscara que seremos obrigados a usar ainda por muito tempo, quiçá para sempre, servirá também de escudo para esconder ainda mais nossas já furtivas demonstrações de emoção diante de momentos indesejados. A máscara da COVID-19 será a desculpa perfeita para a ausência de qualquer deslize que nos denuncie enquanto ser emotivo, numa sociedade que prima pela aparência de todos e de tudo. Sem perceber, estamos sendo treinados por um sistema global de vigilância e segurança para jamais parar de nos movimentar, mesmo diante das maiores dificuldades. O tempo da reflexão e da conexão com a natureza, com nossos semelhantes e com o mundo mesmo, terminou.
Nesse sentido, se antes algum trejeito facial denunciava ao mundo a nossa irritação, alegria ou mesmo indiferença, hoje a máscara esconde essa faceta, evitando a exposição dos nossos sentimentos. Para o bem ou para o mal. O sujeito contemporâneo autêntico já está sendo medido pelo que consome, pelo que destrói na sua incessante movimentação – e o rastro ou resto que deixa pelo caminho - ou pelo que usurpa em nome do seu bem-estar solitário e unitário. Em nome do bem comum, o “Batman” abdica da sua vida pessoal, dos seus sentimentos e dos sentimentos das outras pessoas para com o verdadeiro mascarado que está por baixo da vestimenta negra. As pessoas estão abdicando de suas vidas pessoais em favor dos bens materiais, dos minutos de fama e das oportunidades que podem se abrir para aquelas isentas de empatia.
O escritor e poeta francês Guy de Maupassant escreveu um conto [1] em que denunciou, ao mesmo tempo, o insensível modo capitalista de reprodução da força trabalho e a assombrosa imposição da estética às mulheres. Realmente, para a primeira mãe retratada, os bebês deformados que nasceram se transformaram em lucro para ela, que os vendeu para os aproveitadores comerciais de espetáculos místicos; para a segunda mãe retratada, descrita como bela e esbelta, a deformação dos bebês decorria da necessidade dela de manter sua silhueta conforme os padrões de época, através do espartilho. Dinheiro e espetáculo unidos.
Consumo e fetiche é a nova ordem global. A todos os que, por motivos diversos, não se encaixam nessa nova ordem, restará a exclusão sumária do viver em sociedade. No devir de um mundo cada vez mais caótico, nem mesmo a família, a mais tradicional das instituições privadas de todos os tempos da humanidade, poderá salvar esses “desgarrados”.
As duas grandes guerras mundiais do século XX, e todas as pequenas guerras localizadas delas decorrentes, estão na base da transformação mascarada da sociedade de consumo. Nesse ponto, a invasão russa iniciada no final do mês passado é só mais um capítulo de uma geopolítica em permanente transformação, desde que a vida, como bem maior da humanidade, perdeu o seu sentido. Deixamos de ser sujeitos potentes na linguagem do mundo visível para ser apenas predicados consumidores da fonética mercadológica. A máscara que Putin usa é a do seu próprio rosto impassível diante das câmeras, assim como o próprio Bruce Wayne, a pressionar a Ucrânia e o resto do mundo, para que cedam aos seus caprichos. A máscara que Biden usa, e a OTAN por tabela, é a faceta de uma indignação calculada milimetricamente, mas inoperante, incapaz de dizer aos povos as reais motivações da falta de consenso entre os atores desse cenário de guerra.
Destarte, parece ter chegado ao fim a era dos mitos. Não há mais espaço para poemas como a “Metamorfoses” de Ovídio, poeta romano do século I a.C., no qual ele tentou retratar a interação entre o Cosmos e a história do mundo, através das eras dos homens. Temas caros a esse poeta, considerado hoje o primeiro poeta romano, como o amor, o ciúme e o crime, todos inseridos nas formas artísticas da literatura, da música, da arquitetura e da pintura que perfazem o arcabouço antigo da filosofia e mitologia clássica, estão simplesmente em desuso. A máscara da contemporaneidade, ou pós-modernidade para alguns, é a máscara da indiferença. Ou da hipocrisia. É por isso que a máscara da OTAN que finge indignação perante o assalto de Putin a um país soberano, é a mesma da desconexão com a realidade dos bombardeios efetuados por esta mesma OTAN, ou seus aliados, na Síria, no Iêmen, no Iraque ou na Palestina, para ficarmos em apenas alguns exemplos. Mais. É a mesma máscara das respostas prontas, sarcásticas mesmo, a respeito do infame bloqueio a Cuba, que já dura sete décadas.
Talvez a era “pós-moderna” seja, por assim dizer, a era das máscaras individuais e coletivas. As individuais para evitar o sofrimento maior de precisarmos tomar conhecimento do horror perpetrado pela própria dinâmica do progresso capitalista democrático. Dinâmica esta que já foi muito bem retratada por autores díspares como o filósofo ateu John Gray, e sua crítica da busca da humanidade pela imortalidade através do avanço da ciência [2], e o filósofo humanista camaronês Achille Mbembe [3], e sua crítica de “carbonização” do mundo pelas forças capitalistas. A grande diferença entre ambos, no particular, é que enquanto o primeiro não parecer nutrir maiores expectativas em relação ao futuro da humanidade - dado o já avançado grau de virtualização da vida social do animal humano -, o segundo ainda mantém esperanças numa possível correção de rota da história, especialmente através da nossa volta para casa, ou melhor, do resgate dos valores africanos em relação a nossa interação com a natureza.
Contudo, as máscaras individuais fazem cada vez menos sentido em relação as novas máscaras coletivas do século XXI. Com efeito, se os rostos, e por tabela os corpos, passaram a ser as máscaras na nova normalidade de pessoas cujas vidas se tornaram indefinidas, efêmeras e fetichistas, então podemos ser o que as nossas vidas precisarem, de acordo com as nossas vontades e permanências . Mas quem será o herói que chamará para si a responsabilidade pelos horrores praticados por uma sociedade que já não se reconhece mais como espécie? Na vida real não existe o “Batman”, capaz de ser o que nós precisamos que ele seja. Mas existem muitos “Coringas”, ou seja, muitos sujeitos capazes de fazer enlouquecer a maioria das pessoas ditas normais, como a personagem “Harvey Dent” da citada trilogia.
Quando vemos um experiente e renomado historiador como Laurence Rees (Ayr, 1957) desanimado e frustrado com os rumos tomados pela invasão russa na Ucrânia, e as consequências que dela ainda virão, nos perguntamos: a quem recorreremos nas décadas vindouras? O ocidente parece tresloucado pela aceleração das relações totais entre todos os domínios da vida humana – sociais, econômicas, políticas, religiosas, virtuais. etc. –, e está mais para o justiceiro “Duas Caras”, que para o Promotor “Harvey Dent”. Anseia por destruir o mundo oriental, mas não sabe como fazer isso sem colocar seu próprio lado em perigo. Então, espera criminosamente pelo desfecho do conflito que ele mesmo, Ocidente, fez questão de insuflar, mediante o bombardeio psicológico do tirano, cercando-o através da OTAN. Essa espera criminosa já aconteceu em ocasiões anteriores, envolvendo os mesmos atores, quando Churchill e Roosevelt se omitiram diante dos horrores praticados por Stálin. E mais. O mesmo Ocidente que conciliou com Mikhail Gorbatchov jamais pleitear a entrada da Ucrânia no OTAN.
Destarte, se a COVID-19 naturalizou um procedimento que já era latente na sociedade espetacular, a saber, o uso de máscaras, ainda que dessa vez por motivos sanitários, o fato é que essas máscaras produzidas em série, portanto próprias da sociedade capitalista, veio bem a calhar no momento atual. Os impactos dessa pandemia, aliados à invasão russa, devem redimensionar as tensões globais em termos nunca vistos depois da Segunda Guerra Mundial. Os deslocamentos humanos já tiveram um incremento de mais de 2,5 milhões de pessoas só naquela região deflagrada. A máscara “Harvey Dent” usada pelo Ocidente nesse conflito, de indignação com os atos de Putin, contrasta de maneira sombria com a máscara “Duas Caras” utilizada por esse mesmo Ocidente em outros conflitos espalhados pelo mundo afora.
Ciente da impossibilidade de uma mudança no paradigma civilizatório da espécie humana, entendo ser adequado nos voltarmos para um lúcido pensador já centenário: Edgar Morin. De fato, em uma breve e tocante entrevista dada recentemente [4], Morin vai além de Hessel para dizer que antes de nos indignarmos, é preciso pensar. Obviamente, ele está se referindo à categoria mental do entendimento. Entender tudo o que se passa a nossa volta é, mais do que nunca, imprescindível para mudarmos o “status quo” a que estamos submissos. Para ele, só um diagnóstico correto das mazelas que o ser humano impõe a todos os outros seres viventes, inclusive aos da sua própria espécie, é capaz de fazer com que entendamos o mundo e a história atual. É preciso derrubar o mito de que somos seres naturais superiores, pois dessa visão deturpada é que advém a certeza da humanidade como uma espécie sobrenatural, ou seja, mais importante do que todas as outras.
Morin afirma se apoiar em três princípios para não perder a esperança na humanidade, a saber: apostar no improvável; acreditar nas capacidades criativas e na resistência à opressão das minorias; e acreditar que mesmo o pior sistema totalitário da futura Matriz poderá apresentar falhas, que serão exploradas por indivíduos que tentarão salvar o mundo (4). Entretanto, afirma que hoje não existe qualquer candidato ao posto de herói nesse caminho que trilhamos. Sabe ele que a atual mecanização da vida nos remete diariamente a uma situação distópica entre a face da guerra e da pandemia, e a rejeição delas. Daí as máscaras contemporâneas serem necessárias para a sobrevivência de todos nós, numa era paradoxal entre a fartura e a fome, a abundância indecente e a escassez absoluta, entre a razão e a ignorância. A vida enlatada no que comemos, assistimos, lemos e entendemos como normal só pode ser suportável através de máscaras.
[1] MAUPASSANT, Guy de. A mãe dos monstros. Disponível aqui.
[2] GRAY, Johh. A Busca pela Imortalidade – A Obsessão Humana em Ludibriar a Morte. Rio de Janeiro. Record. 2014;
[3] MBEMBE, Achille. BRUTALISMO. São Paulo. n-1 Edições. 2021;
[4] MORIN, Edgar. Disponível aqui.
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As máscaras atuais da humanidade - Instituto Humanitas Unisinos - IHU