"Não obstante a importância de todas as lutas por direitos sociais dos últimos 60 anos, Morin insiste na necessidade de construirmos uma outra via para o futuro da humanidade que reconheça ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do humano. Mudar de vida e mudar de via são os novos imperativos categóricos para o século XXI".
O artigo é de Fagner Torres de França, jornalista, Eugênia Maria Dantas, professora da UFRN, e Josineide Silveira de Oliveira, professora da UFRN.
Em 8 de julho de 1921 nascia Edgar Morin, um dos maiores pensadores contemporâneos, autor de vasta obra, com mais de 60 títulos. O último, “Leçons d’un siècle de vie”, publicado pela editora francês Denoël, saiu há alguns meses. Escritor incansável, em setembro de 2019 já havia lançado pela Fayard mais uma alentada autobiografia de 450 páginas, “Les souvenirs viennent à ma rencontre”. Longe de ser um exercício narcísico, ambos os livros são memórias de uma testemunha ativa de praticamente todo o século XX e parte do século XXI. O presente texto é um pequeno passeio por sua vida e obra.
Edgar Morin nasceu Edgar Nahoun, filho único de uma família judia sefardita, fruto do casamento entre Vidal Nahoun, comerciante originário da Salônica, e Luna Beressi, que morreu quando o garoto Edgar tinha apenas 10 anos. Luna foi a pessoa que mais amou na vida. O ambiente familiar multicultural marcou o primeiro “imprinting” em sua personalidade, socialmente habilidosa e intelectualmente aberta. Em outra de suas autobiografias, “Meus Demônios”, identifica-se como um “onívoro cultural” desde a infância. Aprendeu a amar a música, do clássico ao popular. Gostava do rádio, da televisão e dos gibis. Frequentava o cinema diariamente e adora a cultura de massas, desde a infância, temas de alguns de seus livros.
Em uma de suas viagens ao Brasil, perguntado por um jornalista quem gostaria de conhecer, declarou admiração por Maitê Proença. Não perdia um único capítulo de Dona Beija, novela que chegou a ser exibida na França. É também um apaixonado pelas letras e autor de dois romances, escritos há décadas e publicados faz um par de anos. Dostoievski, Proust e Beethoven figuram ao lado de Heráclito, Hegel, Marx, Adorno e Horkheimer, Freud e Lacan entre os que denomina de Meus Filósofos, mais um de seus escritos publicados por aqui. Mas a literatura, o cinema, a música e a poesia alimentaram fortemente sua formação transdisciplinar.
Aos 18 anos, em 1939, já iniciado o ensino superior, ouvia os tambores da guerra rufarem cada vez mais perto. Em 1941, decidiu juntar-se ao Partido Comunista Francês e à Resistência Francesa contra a Alemanha, que havia ocupado metade do território. Foi aí que o Nahoun virou Morin, codinome incorporado ao nome. Trabalhou como jornalista e redator no jornal distribuído pelo PCF. Os primeiros anos da Segunda Guerra foram difíceis para a Europa, os alemães demonstrando superioridade militar e estratégica.
No entanto, “onde cresce o perigo, cresce também aquilo salva”. Essa frase, que Morin havia lido ironicamente em um poeta alemão, Hölderlin, o ajudou a formular uma das bases mais fortes de seu pensamento: o princípio da incerteza. É preciso saber esperar o inesperado. Quando tudo parecia perdido, em dezembro de 1941 o ataque japonês à base norte-americana de Pearl Harbor, no Havaí, força a entrada dos Estados Unidos na Guerra e começa a mudar o rumo da história.
No ano seguinte, o exército alemão não resiste ao rigoroso inverno soviético, e em fevereiro de 1943 é derrotado na famosa Batalha de Stalingrado. Acende-se um farol no fim do túnel. Em 1944 Paris é liberada. Um ano depois, o improvável torna-se provável e a Alemanha se rende aos aliados. Aprende que um pequeno desvio, quase sempre invisível, pode causar grandes transformações.
Todos esses fatos não são menores em sua biografia, mas contribuíram sobremaneira para a elaboração de sua forma de pensar. Nesse sentido, é impossível separar vida e teoria. Um sujeito implicado naquilo que diz e escreve não se esconde por trás de teorias aparentemente impessoais. Esse tipo de atitude não absolve ninguém. Há sempre uma escolha, de um tema, de um autor, de uma teoria. A ciência, por mais neutra ou abstrata que pareça, tem no fundo uma paixão. Não somos apenas o Homo sapiens do labor, da razão, do cálculo, mas o Homo sapiens demens, cuja contraparte é a loucura, a demência, o orgulho desmedido, o dispêndio, o ódio e o amor.
Pesquisamos o que amamos, o que tememos ou não entendemos. São os nossos “demônios”, nossas obsessões. É movido por essas ideias-força que, em 1946, Morin parte para a terra de Hölderlin a fim de escrever seu primeiro livro, O ano zero da Alemanha, uma investigação histórico-sociológico-jornalística também publicada no Brasil. Levava um caderno na mão e duas ideias na cabeça: como um país tão rico culturalmente pode chegar a esse nível de barbárie e como evitar que isso se repita. Percebeu que gostava de estudar a vida como uma arma quente, no calor dos acontecimentos. Percorreu ruínas, bunkers, conversou com a população local, colheu depoimentos, recolheu documentos assinados pelo próprio führer.
Mesmo em meio ao conflito da Segunda Guerra, entre a Resistência e a universidade, Morin consegue concluir três licenciaturas, em 1942: Direito, História e Geografia. Mas não exerceu diretamente nenhuma das profissões. Pelo contrário, sempre foi um mestre da indisciplina, um defensor da transdisciplinaridade. Não que elas, as disciplinas, não sejam importantes, mas a fragmentação disciplinar acaba gerando uma barbárie no pensamento, pois cada qual conhece apenas o seu pequeno pedaço, sem estabelecer diálogo com as demais áreas do conhecimento, formando, assim, um sujeito parcelar, incapaz de abordar fenômenos cada vez mais complexos. Acredita que as maiores revoluções do pensamento de dão no encontro das diferenças.
A fase que vai de 1946 a 1973 podemos chamar de “sociologia do presente”, apenas para efeitos didáticos. Essa classificação que fazemos é arbitrária e cada um pode conceber a sua, pois Morin concebe o sujeito em sua inteireza, e não em “fases”. É a época, digamos, dos trabalhos de campo. No ano de 1951, sem emprego, tendo abandonado o PCF após críticas contundentes à URSS, praticamente muda-se para a Biblioteca Nacional Francesa. Queria compreender o que era a morte, que tão cedo arrebatou sua mãe. Era uma espécie de acerto de contas. Com ela e com o mundo.
Dessa experiência surgiu “O Homem e a Morte”, um livro que procura compreender as várias representações deste fenômeno biossocial, da antiguidade aos nossos dias, buscando conhecer os diversos saberes já produzidos acerca do tema. E religá-los, como sempre faz. Ainda na década de 1950 publica suas pesquisas sobre cinema, tentando entender o fascínio que as imagens, as vedetes e os astros (Marilyn Monroe, James Dean), misto de deuses e mitos, exercem sobre as pessoas e o que dizem sobre a condição humana. Dessa inquietação resultam “As estrelas: mito e sedução no cinema” e “O cinema e o homem imaginário. Ensaio de antropologia sociológica”.
Os anos 1960 são especialmente produtivos. Morin não está à procura de um tema específico, mas de um método de aproximação e abordagem multidimensional dos fenômenos sociais, de preferência aqueles que ainda estão em efusão. A sociologia do presente tem por princípios os conceitos de “crise”, “acontecimento” e “observação fenomenográfica”. Esse último diz respeito à sensibilidade do pesquisador na observação e construção de um bom relato, entre o literário e o científico.
Esses princípios ficam evidentes em um premiado filme-documentário de 1961, “Crônica de um verão”, dirigido por Edgar Morin e Jean Rouch, no qual aplica seus métodos de pesquisa em desenvolvimento. Mas também em suas obras seguintes: “Cultura de massas no século XX: Neurose”, de 1962; “La métamorphose de Plózevet”, de 1967; “Maio de 68: a brecha”, publicado ainda em 1968, em parceria com os amigos Claude Lefort e Cornelius Castoriadis, sobre os eventos que sacudiram o mundo e promoveram uma revolução cultural importante ainda hoje; e “O rumor de Orleans”, de 1969, uma pesquisa sobre o fenômeno dos boatos e suas raízes históricas.
Embora tenha construído um consistente trabalho na sociologia, nunca foi reconhecido como um membro efetivo deste campo. Sobre isso, podemos avançar aqui algumas hipóteses. Em primeiro lugar, jamais recebeu a benção (nem jamais solicitou) da maior instância de consagração da sociologia na França, Pierre Bourdieu. Depois, porque não se identifica como sociólogo, mas como alguém que pensa sobre determinados fatos usando as ferramentas teórico-metodológicas disponíveis, cruzando fronteiras, áreas e teorias quando necessário.
Em terceiro lugar, porque é incômodo tentar mover pessoas de suas zonas de conforto. Esse é um dos desafios do pensamento transdisciplinar. E Morin é um herdeiro da tradição enciclopédica dos franceses. Por último, pela própria dificuldade de se enquadrá-lo em uma área específica, pois navegou por temas diversos, além de preferir as margens aos centros, os entres aos entes, o nomadismo ao sedentarismo, os outsiders aos estabelecidos. Acabou bastante acolhido pela área da educação, um pouco também na comunicação, quase nada nos outros domínios.
Cerimônia do Centenário de Morin na Unesco | Foto: Christelle Alix - Unesco
Em 1969, uma experiência inusitada reorganiza o seu pensamento. É convidado a passar um ano sabático no Instituto Salk, nos Estados Unidos, entre pensadores de diversas orientações, temporada fartamente narrada em seu “Diário da Califórnia”. Os EUA, como boa parte do mundo, passavam também por sua revolução de costumes. Do ponto de vista intelectual, Morin teve contato com teorias que mudariam para sempre seu modo de pensar: a teoria dos sistemas, a teoria da informação e a cibernética, além de ter acesso às teorias da biologia em voga. Do ponto de vista pessoal, a viagem foi uma verdadeira imersão na contracultura norte-americana.
A partir da década de 1970, seu pensamento ganha outra dimensão. Em 1973, publica “O Paradigma Perdido”, no qual tenta compreender a questão da separação entre natureza e cultura estabelecida no ocidente. Somos 100% natureza e 100% cultura, gosta de afirmar. Em 1977 inicia a elaboração do seu trabalho mais ambicioso, “O Método”, aproximadamente 2500 páginas divididas em seis volumes, que levaram quase 30 anos para ficarem prontos. A obra estabelece uma relação entre a física, a biologia, a vida, a natureza do conhecimento e termina com uma abordagem inovadora sobre a ética.
É justamente na década de 1970 que seu projeto intelectual começa a ganhar contornos mais definidos. Tem início sua fase propriamente epistemológica, conhecida como “complexidade”. Complexo é simplesmente “aquilo que se tece em conjunto”. Morin percebe que tudo está interligado, conectado, em relação, em comunicação. A matéria, o átomo, uma comunidade de insetos, o indivíduo humano, a sociedade ou o universo, enquanto sistemas, não podem ser estudados como em um processo linear de causa e efeito. “Todas as coisas são causa causadas e causantes, ajudadas e ajudantes”, diz ele em algumas de suas obras, relembrando Pascal.
Nesse processo de construção de um pensamento complexo, concebe alguns princípios fundamentais contrapostos à ciência moderna produzida desde o século XVII, cujas principais características são a fragmentação e a disjunção do saber. Seu objetivo é difundir um novo paradigma científico, mais adequado à contemporaneidade e aos avanços da ciência. Essa “ciência nova” tem como bases: a não separação sujeito/objeto; os princípios de incerteza e incompletude da realidade; a dialógica do pensamento, segundo a qual o contrário de uma verdade profunda não é necessariamente uma mentira, mas pode ser também uma outra verdade profunda; a não dualidade do pensamento; o fato de que algumas ideias podem ser ao mesmo tempo antagônicas e complementares.
Tudo isso pode ser resumido no que Morin chamou de tetragrama da complexidade. Todos os sistemas estão em constante ordem-desordem-interação-reorganização, de forma recursiva, quando os elementos interagem uns sobre os outros. Chama-se princípio da recursividade: a causa está no efeito que, por sua vez, retroage sobre a causa. E isso complementa o princípio hologramático, inspirado também em Pascal: o todo está nas partes, assim como as partes compõem o todo.
Uma terceira fase do pensamento moriniano, dos anos 2000 em diante, é dedicada à construção de um pensamento global para uma ética planetária em um mundo que ruma para o abismo. Defende uma cosmopolítica do ser, capaz de incluir o sujeito no cosmos e o cosmos no sujeito. No sexto e último volume de “O Método”, publicado em 2004, chamado simplesmente de “Ética”, Morin propõe uma ética tríplice para o novo milênio: uma autoética (voltada ao cuidado de si), uma socioética (que diz respeito à vida em sociedade) e uma antropoética (capaz de pensar o sujeito e a sociedade como pertencentes a uma espécie, a espécie humana, sempre em relação com o ecossistema planetário).
Não obstante a importância de todas as lutas por direitos sociais dos últimos 60 anos, Morin insiste na necessidade de construirmos uma outra via para o futuro da humanidade que reconheça ao mesmo tempo a unidade e a diversidade do humano. Mudar de vida e mudar de via são os novos imperativos categóricos para o século XXI. Essa outra via passa necessariamente por uma reforma do pensamento, capaz de religar os conhecimentos visando a construção de um sujeito inteiro, um Homo complexus, menos especializado (do tipo que sabe infinitamente tudo sobre o infinitamente pequeno), mas que, pelo contrário, a partir de seu lugar de especialização, possa encontrar espaços de abertura e diálogo com o outro, com a diferença, em busca de um comum.
Esse comum, diz Morin, pode ser o fato de que habitamos todos uma mesma Terra-Pátria, ou seja, compartilhamos uma comunidade de destino. Daí a importância de uma ética planetária, uma ética do comum. Em suma, o pensamento complexo oscila entre o microssocial e o macroplanetário; defende uma racionalidade aberta e a autocrítica permanente do sujeito; compreende que possuímos ideias, assim como elas nos possuem; foge das respostas fáceis e prontas; busca abrir o diálogo entre os conhecimentos; sabe da impossibilidade de construirmos o melhor dos mundos, mas defende a utopia concreta de um mundo melhor, onde a luta por igualdade e fraternidade não prejudique a liberdade.