03 Janeiro 2022
"Instituições realmente de serviço (civil e eclesial) não se deixam nem ser compradas por um prato de lentilhas nem instrumentalizadas no ministério do Evangelho por lógicas de ordem pública ou de acomodação pessoal: só assim e a esse preço podem permanecer instituições com autoridade, capazes de palavras e ações credíveis", escreve o teólogo italiano Andrea Grillo, professor do Pontifício Ateneu Santo Anselmo, em artigo publicado por Come Se Non, 01-01-2022. A tradução é de Luisa Rabolini.
No novo ano, as instituições estatais e eclesiais serão chamadas a desafios de grande importância. Isso acontecerá, como é natural, de acordo com o entrelaçamento diferenciado com que se movem na história o Estado democrático e a Igreja de Cristo, com a síntese de autoridade e liberdade que caracteriza tanto o primeiro quanto a segunda.
Gostaria de dizer que o "regime de consenso", com o qual os Estados democráticos têm atuado nos últimos 200 anos, e a "autoridade hierárquica", que ao invés domina a experiência da Igreja Católica no mesmo período, implicam desafios distintos, mas que convergem em seu sentido geral. Vamos tentar ver em detalhe dois deles, que dizem respeito à comunidade civil, por um lado, e à comunidade eclesial, pelo outro, partindo de uma pequena premissa.
O princípio democrático que rege os Estados modernos não tem correspondência na experiência eclesial. Aliás, poderíamos dizer que o princípio de liberdade, que caracteriza o primeiro, corresponde ao princípio de autoridade, que qualifica a segunda. Essa diferença, no entanto, não deve ser forçada para a ideologia.
Se o princípio democrático conhece, inevitavelmente, lógicas de autoridade (por exemplo, na administração da justiça), o princípio eclesial trata do consenso, ainda que de forma indireta. O fato de a liberdade ou obediência do sujeito estar no início não implica que o livre arbítrio deva ser negado ou que a autoridade deva sempre ser pressuposta. Por isso é útil destacar, no início deste ano, duas tensões internas, ao princípio democrático e ao princípio hierárquico, que poderão reservar, nos próximos dias, algumas surpresas positivas ou desagradáveis.
O princípio da "eleição de baixo" constitui um grande sistema de atribuição de autoridade que as instituições democráticas estabeleceram no lugar do "princípio monárquico". Também na próxima eleição do Presidente da República Italiana teremos que lidar com esse mecanismo "democrático". Em nosso país, não vale a "eleição direta", mas aquela mediada por um número considerável de representantes do parlamento e das instituições locais. A garantia democrática, entretanto, não está protegida de "furos".
O populismo, no caso da eleição direta do Chefe do Estado, ou a “compra e venda de apoio”, no caso da eleição mediada, podem esvaziar o consenso de seu valor. Todo mecanismo eleitoral “de baixo” sofre essa pressão. Quem já viu o filme "Lincoln", de S. Spielberg, descobriu, talvez com um certo escândalo, que mesmo a primeira superação das leis racistas nos Estados Unidos passou por um grandioso "toma lá dá cá". Isso também pode acontecer na próxima eleição do Presidente da República italiana. Mas a votação para a Presidência da República não pode ser comprada como uma lei sobre as emissoras de televisão ou um voto de desconfiança do governo. O risco é que quem que está acostumado há vinte e cinco anos a se deixar comprar, possa estar tentado a assumir o cargo mais alto do estado mantendo o quarto dos fundos do patrão.
A qualidade das forças políticas reside em saber discernir os níveis de dignidade e de autoridade. A democracia poderia ser capaz de produzir, neste caso, uma autoridade formal desprovida de qualquer autoridade política. Quem já presenteou geladeiras para ganhar votos nas eleições, ou perdoou dívidas de parlamentares para conseguir fechar acordos, poderia se convencer - e convencer - de que mesmo o Palácio do Governo seja apenas um prédio à venda.
O mundo eclesial também experimenta, de diferentes formas, os mesmos desafios. O esforço de elaborar um modelo de “igreja sinodal” parece às vezes mais preocupado em evitar as semelhanças com as falhas da democracia do que em refletir seriamente sobre formas semelhantes de esvaziamento não da liberdade sem autoridade, mas da autoridade sem respaldo. Um aspecto importante diz respeito às complexas relações entre "centro" e "periferia". A reavaliação do "periférico", que com o papado de Francisco encontrou um léxico singularmente eficaz, às vezes luta para encontrar um padrão de funcionamento coerente.
Em particular, isto diz respeito ao modo como os Pastores das Igrejas particulares são escolhidos e nomeados. Ao lado de muitos exemplos de nomeações corajosas, proféticas e clarividentes, ainda permanecem sinais de uma forma de conceber o episcopado como uma "coroação de carreira", como uma "chegada de cursus honorum", como um "prêmio" ou mesmo como uma "remoção" de pessoas da Cúria, que são "transferidas" para a pastoral "particular". Essas escolhas costumam ser míopes. Acima de tudo porque muitas vezes jogam para a periferia o que havia sido um problema no centro.
Esta é uma das piores formas de clericalismo, garantida pelo princípio antievangélico e cínico que soa como “promoveatur ut amoveatur”. Não é nem justo nem digno descarregar sobre uma diocese os problemas que uma pessoa criou em um gabinete romano. Qualquer um que se presta a esses joguinhos burocráticos macula-se por uma forma gravíssima de autorreferencialidade clerical, na qual a eclesiologia do Vaticano II, mas também a do Vaticano I e do próprio Concílio de Trento, são oficialmente ridicularizadas e reduzidas a "quantité nèglieable".
Como é evidente, o sistema civil parte da divisão do poder, enquanto o sistema eclesial católico parte do poder não dividido. Essa diferença, que certamente é grande e importante, porém, corre o risco de desviar a atenção do ponto-chave. Ambos os sistemas produzem paz e justiça se souberem fazer a mediação entre autoridade e consenso.
Os modos são diferentes, mas o objetivo é o mesmo. Precisamente sobre isso somos desafiados no ano que se inicia, como cidadãos e como cristãos. Não ser clericais significa, neste caso, não ceder ao toma lá dá cá (típica degeneração eletiva) nem à indiferença para com terceiros (típica degeneração hierárquica). Se no plano civil formos capazes de eleger uma pessoa digna e de autoridade para Presidente de todos os italianos, e se no plano eclesial soubermos nomear bispos como serviço às dioceses e não como "honrarias ad personam", este novo ano será promissor.
Instituições realmente de serviço (civil e eclesial) não se deixam nem ser compradas por um prato de lentilhas nem instrumentalizadas no ministério do Evangelho por lógicas de ordem pública ou de acomodação pessoal: só assim e a esse preço podem permanecer instituições com autoridade, capazes de palavras e ações credíveis.
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O 2022 e as instituições: dois desafios para o Estado e a Igreja. Artigo de Andrea Grillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU