"Dos discursos, homilias, cartas e mensagens de Francisco, que direta ou indiretamente têm por objeto a missão do padre, emerge um mosaico decididamente rico, pedaço por pedaço, que, em vez de se deter em definições simples e áridas de tipo doutrinal e sistemático, denota a intenção de oferecer o retrato do padre ideal da Igreja de hoje".
O texto é de Andrea Lebra, leigo católico italiano, publicado por Settimana News, 20-12-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
A partir do rico magistério do Papa Francisco, é possível traçar o retrato do padre ideal que também nós, christifideles leigos, gostaríamos de ver em nossas comunidades?
Parece que sim.
Dos discursos, homilias, cartas e mensagens de Francisco, que direta ou indiretamente têm por objeto a missão do padre, emerge um mosaico decididamente rico, pedaço por pedaço, que, em vez de se deter em definições simples e áridas de tipo doutrinal e sistemático, denota a intenção de oferecer o retrato do padre ideal da Igreja de hoje, mantendo em estreita correlação a substância e a forma, o conteúdo e a vivência.
Pelo menos sete peças podem ser destacadas desse mosaico.
Como "homem misericordioso e compassivo"[1], o padre "caminha com o coração e o passo dos pobres ..., torna-se rico com a sua convivência"[2] e se deixa "marcar pelo grito de quem sofre”.[3] Ele parte do reconhecimento de que os marginalizados, pobres e sem esperança "foram eleitos a sacramento de Cristo"[4] e "são a carne de Cristo".[5]
Todo cristão - portanto, "também os pastores"[6] - e toda comunidade são chamados a ser "instrumentos de Deus ao serviço da libertação e promoção dos pobres, para que possam se integrar plenamente na sociedade",[7] abrindo espaço para eles na Igreja, mesmo quando a enchem de insultos.[8]
“O rosto mais belo de um país e de uma cidade é o dos discípulos do Senhor - bispos, sacerdotes, religiosos, fiéis leigos - que vivem com simplicidade na vida quotidiana o estilo do Bom Samaritano e se fazem próximos da carne e das chagas dos irmãos, em quem reconhecem a carne e as chagas de Jesus”.[9]
A Igreja precisa de pastores (bispos, mas também padres: ndr) que, deixando de lado "toda forma de arrogância",[10] se ajoelhem "na frente dos outros para lavar-lhes os pés".[11]
Como "homem de dom e perdão",[12] o padre sabe se manter "distante da frieza do rigorista, bem como da superficialidade de quem quer se mostrar condescendente a todo custo".[13] "A dureza lhe é estranha", porque não é "um inspetor do rebanho" ou "um contador do espírito", mas "um pastor segundo o coração manso de Deus".[14]
Mesmo nos momentos difíceis espalha serenidade ao seu redor, "transmitindo a beleza da relação com o Senhor".[15] Ele não é um controlador da graça, mas um facilitador; para ele a Igreja não é uma alfândega “culpabilizadora”,[16] mas “a casa paterna, onde há lugar para todos com a sua vida fadigosa”.[17]
Sente-se chamado pelo Senhor “para uma obra esplêndida, para trabalhar para que a sua casa seja cada vez mais acolhedora, para que cada um possa entrar e viver nela, para que a Igreja tenha as portas abertas a todos e ninguém seja tentado. concentrar-se apenas a olhar e mudar as fechaduras”.[18]
“Especialista em humanidade”,[19] o padre “traz harmonia onde há divisão, harmonia onde há contenda, serenidade onde há animosidade”.[20]
Como “apóstolo da alegria”,[21] o padre demonstra fidelidade à sua vocação, transmitindo ao Povo de Deus, com o seu modo de viver,[22] a alegria que carrega dentro de si[23] e que deriva do seu permanecer enraizado em Cristo.[24] A alegria do padre “é um bem precioso não só para ele, mas também para todo o Povo fiel de Deus”.[25]
A alegria, além disso, "é o sinal do cristão: cristão sem alegria ou não é um cristão ou está doente".[26] E “a alegria do cristão não é a emoção de um instante ou um simples otimismo humano, mas a certeza de poder enfrentar toda situação sob o olhar amoroso de Deus, com a coragem e a força que dele emanam... Sem alegria, a fé torna-se um exercício rigoroso e opressor, e corre o risco de adoecer de tristeza ... Não há santidade sem alegria”.[27]
Mesmo em meio às dificuldades, o padre conserva o senso de humor,[28] uma das características da santidade. Graças a ele pode rir dos outros, de si mesmo e até de sua própria sombra.[29]
Como "homem da Páscoa e com o olhar voltado para o Reino de Deus", para o qual sente que caminha a história humana, apesar dos atrasos, das obscuridades e das contradições, o padre “ama a terra que reconhece visitada toda manhã pela presença de Deus”.[30] Ele "nunca chegou", mas é sempre um "peregrino pelos caminhos do Evangelho e da vida, assomando o limiar do mistério de Deus e a terra sagrada das pessoas que lhe são confiadas".[31]
Deixando-se formar pelo Senhor todos os dias, evita tornar-se "padre apagado" e se arrastar no ministério "por inércia", "sem entusiasmo pelo Evangelho e sem paixão pelo Povo de Deus". Entregando-se dia a dia "às mãos experientes do Oleiro (com o "O" maiúsculo), mantém o entusiasmo do seu coração ao longo do tempo, acolhe com alegria o frescor do Evangelho, fala com palavras capazes de tocar a vida das pessoas. E as suas mãos, ungidas pelo bispo no dia da ordenação, são por sua vez capazes de ungir as feridas, as expectativas e as esperanças do Povo de Deus”.[32]
O seu não é "um coração bailarino que se deixa atrair pelas sugestões do momento", mas um coração firme no Senhor, aberto e disponível para os irmãos e as irmãs.[33]
Como constituído a favor das pessoas nas coisas que se referem a Deus, o padre tem autoridade mas não é autoritário, firme mas não duro, alegre mas não superficial, pastor mas não funcionário: sabe estar entre as pessoas como pai e irmão, compartilhando suas alegrias e sofrimentos.[34] “Não se detém nas desilusões e no esforço não desiste; ele é, de fato, obstinado em fazer o bem ... Ninguém está excluído de seu coração, de sua oração e de seu sorriso”.[35]
Às vezes se coloca diante do Povo de Deus para mostrar o caminho e sustentar esperanças e aspirações, outras vezes está no meio de todos com sua proximidade simples e misericordiosa, e em algumas circunstâncias caminha atrás do Povo de Deus para ajudar e infundir coragem àqueles que lutam para manter o passo.[36]
Em relação aos leigos batizados o padre não se comporta como o dono da casa, mas elimina concretamente não só toda visão verticalista e distorcida de seu ministério,[37] mas também toda forma de clericalismo tanto ativo (a tentação, de parte do clero, para clericalizar os leigos) como passivo (o desejo dos leigos de serem clericalizados).[38] O clericalismo, de fato, é uma perversão [39] que mantém os fiéis leigos à margem das decisões,[40] na medida em que tende a diminuir e subestimar a graça batismal posta pelo Espírito Santo em seus corações.[41] “Surge de uma visão elitista e excludente da vocação, que interpreta o ministério recebido como um poder a ser exercido e não como um serviço gratuito e generoso a ser oferecido; e isso leva a acreditar que pertence a um grupo que tem todas as respostas e não precisa mais ouvir nem aprender nada, nem finge escutar”.[42]
O padre promove e valoriza a participação na vida da Igreja de toda pessoa batizada[43] dotada do sensus fidei que a ajuda a “discernir o que realmente vem de Deus”.[44] Em sua comunidade "todos são protagonistas e ninguém pode ser considerado um mero figurante".[45]
Como contemplativo da Palavra e contemplativo do Povo de Deus, [46] o padre coloca Deus e as pessoas no centro das suas preocupações cotidianas, “espalha a luz do Evangelho o sabor de Deus ao seu redor, transmite esperanças aos corações inquietos”. [47] Alimenta-se da Palavra que prega, [48] fazendo-a ressoar com todo o seu esplendor no coração do Povo, tendo ressoado primeiro no seu coração de pastor. [49]
“A sua palavra, pregada ou escrita, aure clareza de pensamento e força persuasiva da fonte da Palavra do Deus vivo, no Evangelho meditado e orado, encontrado no Crucifixo e nos homens, celebrado em gestos sacramentais nunca reduzido a puro rito”: “não é alguém que exige a perfeição, mas que convida cada um a dar o melhor de si”. [50] Visto que a ignorância das Sagradas Escrituras é ignorância de Cristo, o padre sente a forte exigência de torná-las acessíveis e familiares à própria comunidade, fazendo tudo o que for necessário para que os fiéis as possam frequentar com assiduidade.[51]
Ciente, aliás, que a religião não pode se limitar à esfera privada e que não existe apenas para preparar as almas para o céu, [52] ele "desconfia das experiências que o levam a intimismos estéreis e das espiritualidades realizadoras que parecem dar consolação mas, em vez disso, levam a fechamentos e rigidez”. [53] Ele rejeita toda espiritualidade desencarnada e está disposto a sujar as mãos com os problemas das pessoas, [54] sem usar luvas. [55] Ele se empenha em "despertar o humano nas pessoas para abri-las ao divino" e "devolver a palavra aos pobres, porque sem a palavra não há dignidade e, portanto, nem mesmo liberdade e justiça". E é a palavra que vai “abrir o caminho à plena cidadania na sociedade, mediante o trabalho, e à plena pertença à Igreja, com uma fé consciente”. [56]
Em outras palavras, o padre nutre a esperança e cultiva o sonho de mudar o mundo com o Evangelho. [57]
Por ser profundamente consciente de que "o caminho que Deus espera da Igreja do terceiro milênio é o da sinodalidade" [58] que, longe de ser uma moda ou um slogan, exprime a natureza, a forma, o estilo e a missão da Igreja [59], como padre sente a urgência de contribuir para construí-la, [60] não ocasionalmente, mas estruturalmente. A começar pela valorização dos organismos de participação e corresponsabilidade que, em nível paroquial, deveriam favorecer "o diálogo e a interação no Povo de Deus, especialmente entre sacerdotes e leigos".[61]
Todos têm algo a aprender com os outros, desde que nos encontremos sem formalismos e sem fingimentos, e nos coloquemos na escuta das perguntas, das aflições e das esperanças do povo de Deus para podermos discernir [62] o que o Espírito sugere para evitar que nos tornemos uma igreja-museu, linda mas muda, com muito passado e pouco futuro. [63]
O autêntico objetivo da sinodalização da Igreja, de fato, "é fazer germinar sonhos, despertar profecias e visões, fazer florescer esperanças, estimular confiança, lenir feridas, tecer relações, ressuscitar uma aurora de esperança, aprender uns com os outros e criar um imaginário positivo que ilumine as mentes, aqueça os corações, devolva as forças às mãos”. [64]
[1] Discurso de 6 de março de 2014 aos párocos de Roma.
[2] Discurso de 16 de maio de 2016 à Conferência Episcopal Italiana.
[3] Discurso de 10 de junho de 2021 à comunidade do Pontifício Seminário Regional da região de Marche Pio XI de Ancona.
[4] Discurso de 18 de setembro de 2021 aos fiéis de Roma.
[5] Discurso de 15 de novembro de 2021 aos participantes do Capítulo Geral da Ordem Franciscana Secular.
[6] Evangelii gaudium n. 183.
[7]Evangelii gaudium n. 187.
[8] Discurso de 18 de setembro de 2021 aos fiéis de Roma.
[9] Mensagem de 18 de setembro de 2015 aos participantes no encontro dos consagrados húngaros no ano da vida consagrada.
[10] Homilia de 23 de maio de 2013 por ocasião da solene profissão de fé do episcopado italiano.
[11] Discurso de 20 de setembro de 2014 aos bispos participantes no seminário promovido pela Congregação para a Evangelização dos Povos.
[12] Discurso de 15 de setembro de 2018 por ocasião do encontro, na catedral de Palermo, com o clero, os religiosos e os seminaristas.
[13] Discurso de 16 de maio de 2016 na Conferência Episcopal italiana.
[14] Homilia de 3 de junho de 2016 por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia - Jubileu dos presbíteros.
[15] Discurso de 20 de novembro de 2015 aos participantes no congresso promovido pela Congregação para o Clero, por ocasião do 50º aniversário dos decretos conciliares Optatam totius e Presbyterorum ordinis.
[16] Discurso de 18 de setembro de 2021 aos fiéis de Roma.
[17] Evangelii gaudium n. 47.
[18] Homilia de 23 de setembro de 2021 por ocasião da concelebração eucarística com os participantes na Assembleia Plenária do Conselho das Conferências Episcopais da Europa.
[19] Discurso de 10 de junho de 2021 à comunidade do Pontifício Seminário Regional da região de Marche Pio XI de Ancona.
[20] Discurso de 15 de setembro de 2018 por ocasião do encontro, na catedral de Palermo, com o clero, os religiosos e os seminaristas.
[21] Discurso de 20 de novembro de 2015 aos participantes no congresso promovido pela Congregação para o Clero, por ocasião do 50º aniversário dos decretos conciliares Optatam totius e Presbyterorum ordinis.
[22] Discurso de 27 de maio de 2017 ao encontro de padres, consagrados e seminaristas de Gênova.
[23] Meditação de 31 de janeiro de 2019.
[24] Discurso de 7 de junho de 2021 aos padres do Convitto San Luigi dei Francesi de Roma.
[25] Homilia de 17 de abril de 2014.
[26] Meditação de 22 de maio de 2014.
[27] Angelus de 1º de novembro de 2021.
[28] Discurso de 11 de setembro de 2021 aos participantes do Capítulo Geral da Ordem do Frades Carmelitas Descalços.
[29] Discurso de 7 de junho de 2021 aos padres do Convitto San Luigi dei Francesi de Roma.
[30] Discurso de 16 de maio de 2016 na Conferência Episcopal italiana.
[31] Discurso de 1 ° de junho de 2017 aos participantes da Plenária da Congregação para o Clero.
[32] Discurso de 7 de outubro de 2017 aos participantes na conferência internacional promovida pela Congregação para o Clero.
[33] Homilia de 3 de junho de 2016 por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia - Jubileu dos presbíteros.
[34] Discurso de 20 de novembro de 2015 aos participantes no congresso promovido pela Congregação para o Clero, por ocasião do 50º aniversário dos decretos conciliares Optatam totius e Presbyterorum ordinis.
[35] Homilia de 3 de junho de 2016 por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia - Jubileu dos presbíteros.
[36] Homilia de 25 de abril de 2021. Cr. também, referido aos bispos, Evangelii gaudium, n. 31.
[37] Momento de reflexão em 9 de outubro de 2021 para o início do caminho sinodal.
[38] Discurso de 22 de março de 2014 aos membros da Associação “Corallo”.
[39] Discurso de 5 de setembro de 2019 por ocasião do encontro com os Jesuítas de Moçambique.
[40] Evangelii gaudium n. 102.
[41] Carta de 19 de março de 2016 ao card. Marc Ouellet, presidente da Pontifícia Comissão para a América Latina.
[42] Discurso de 3 de outubro de 2018 por ocasião do lançamento do Sínodo dedicado aos jovens.
[43] Discurso de 16 de maio de 2016 na Conferência Episcopal italiana.
[44] Evangelii gaudium n. 119.
[45] Discurso de 18 de setembro de 2021 aos fiéis de Roma.
[46] Evangelii gaudium n. 154.
[47] Discurso de 7 de junho de 2021 aos padres do Convitto San Luigi dei Francesi de Roma.
[48] Discurso de 15 de setembro de 2018 por ocasião do encontro, na catedral de Palermo, com o clero, os religiosos e os seminaristas.
[49] Evangelii gaudium n. 149.
[50] Discurso de 20 de junho de 2017 por ocasião da visita ao túmulo de dom Primo Mazzolari.
[51] Carta apostólica Aperuit illis de 30 de setembro de 2019.
[52] Evangelii gaudium n. 182.
[53] Discurso de 10 de junho de 2021 à comunidade do Pontifício Seminário Regional da região de Marche, Pio XI de Ancona.
[54] Discurso de 15 de setembro de 2018 por ocasião do encontro, na catedral de Palermo, com o clero, os religiosos e os seminaristas.
[55] Homilia de 3 de junho de 2016 por ocasião do Jubileu Extraordinário da Misericórdia - Jubileu dos presbíteros.
[56] Discurso comemorativo de 20 de junho de 2017 junto ao túmulo de Dom Lorenzo Milani.
[57] Discurso de 22 de novembro de 2014 aos participantes do IV Congresso Nacional Missionário promovido pela CEI.
[58] Discurso para comemorar o 50º aniversário da criação do Sínodo dos Bispos (17 de outubro de 2015).
[59] Discurso de 18 de setembro de 2021 aos fiéis da Diocese de Roma.
[60] Discurso de 17 de outubro de 2015 para comemorar o 50º aniversário da criação do Sínodo dos Bispos.
[61] Um momento de reflexão em 9 de outubro de 2021 para o início do caminho sinodal.
[62] Homilia de 10 de outubro de 2021 por ocasião da celebração eucarística de abertura do Sínodo dos Bispos sobre a sinodalidade.
[63] Momento de reflexão em 9 de outubro de 2021 para o início do caminho sinodal.
[64] Discurso de 3 de outubro de 2018 no início do Sínodo dos Bispos dedicado aos jovens.