17 Setembro 2018
“Nós vimos isso nos jornais, quando a procissão de Nossa Senhora para e se inclina diante do chefe da máfia. Não, isso não pode de jeito nenhum”. Com uma frase curta durante o longo discurso aos sacerdotes e consagrados na majestosa catedral de Palermo, Francisco denuncia um costume muito difundido nas procissões no sul da Itália, onde os ritos religiosos se misturam com rituais mafiosos.
A reportagem é de Salvatore Cernuzio, publicada por Vatican Insider, 15-09-2018. A tradução é de André Langer.
Ao clero da capital siciliana, o Papa pediu para que zele pela “piedade popular” generalizada nestas terras, que “é um tesouro a ser valorizado e protegido, porque traz em si uma força evangelizadora”. “Por isso, peço-lhes para que zelem atentamente para que a religiosidade popular não seja manipulada pela presença da máfia, porque, neste caso, em vez de ser meio de adoração afetuosa, torna-se um veículo de ostentação corrompida”, disse o Papa, citando um bispo italiano que disse: “a piedade popular é o sistema imunológico da Igreja”.
O Papa dedicou uma palavra para cada um: para os sacerdotes que fofoqueiam, correndo o risco de seguir a corrente do diabo e acabar dividindo a comunidade, para aqueles que se envolvem em “projetos pastorais faraônicos” ou que vivem o seu ministério para fazer carreira; para os sacerdotes “funcionários e não pastores”, que celebram a missa apenas se receberem a espórtula, e para “as freiras”, que têm a responsabilidade de representar “o rosto materno e feminino da Igreja”, e que são chamadas a ser “mulheres de serviço e não de poder”.
O modelo proposto pelo Papa é a figura do padre Pino Puglisi, “3P”, como era chamado pelos seus pupilos (o padre Pino Puglisi), que não é apenas uma abreviação de seu nome, mas também as características “essenciais” da missão de todos os religiosos: “Prece, palavra, pão”. Francisco referiu-se a ele várias vezes durante o seu discurso na catedral, após ter venerado sua sepultura em silêncio e ter dado a bênção a um ícone que representa o beato com a palma dos mártires na mão.
“O padre Pino saía do mal-estar simplesmente sendo sacerdote com coração de pastor. Aprendamos dele a rejeitar toda a espiritualidade desencarnada e a sujar as mãos com os problemas das pessoas. Vamos ao encontro das pessoas com a simplicidade de quem quer amar com Jesus no coração, sem projetos faraônicos, sem cavalgar as modas do momento. A via do encontro, da escuta e da partilha é a via da Igreja”, disse Bergoglio.
O oposto de tudo isso são “a cizânia, provocar divisões, falar mal, fazer fofocas”. “Não são pecadinhos que todos cometem”, mas uma verdadeira “negação” da identidade dos sacerdotes, como “homens do perdão e de pessoas consagradas, homens de comunhão”, afirmou o Pontífice. “Você não pode celebrar a missa todos os dias e depois ser um homem de divisão, fofocas, ciúmes, também um criminoso, porque mata o irmão com a língua. Se um padre é um fofoqueiro em vez de levar a concórdia, isso provocará divisão, muitas coisas que criarão divisões no presbitério e deste com o bispo”. Também “as comunidades religiosas podem participar da missa e comungar, mas ter ódio e ressentimento em relação ao irmão e à irmã”. E, como disse hoje de manhã, durante a missa no Foro Itálico, não há espaço para o “ódio” na vida cristã. Corre o perigo de “adoecer” o sacerdote ou o consagrado que o incuba e as pessoas que deles se aproximam.
Do mesmo modo, igualmente perigoso é o “clericalismo”. “Temos de proibir qualquer forma de clericalismo; é uma das perversões mais difíceis de eliminar hoje”, afirma. “Também o carreirismo e o familismo são inimigos que devem ser afastados, porque sua lógica é a do poder, e o sacerdote não é um homem do poder, mas do serviço”.
Não é possível ser sacerdotes “funcionários” em vez de “pastores”. “O que diriam a um bispo – pergunta o Papa – que conta que alguns de seus sacerdotes não querem ir a um determinado povoado vizinho para celebrar a missa dos defuntos sem antes receber a espórtula? Eles existem. Rezemos por esses irmãos funcionários”.
Francisco também chamou a atenção para a tentação do mundanismo. “As pessoas não se escandalizam quando veem que o sacerdote erra e é um pecador, que se arrepende e segue em frente... As pessoas se escandalizam quando veem sacerdotes mundanos com o espírito do mundo”.
Dar testemunho, pois, é uma das palavras-chave para o ministério de cada sacerdote ou religioso. Significa não levar uma vida dupla “no seminário, na vida religiosa, no sacerdócio”, disse Francisco. “Não se pode viver uma dupla moral: uma para o povo de Deus e outra na própria casa. O testemunho de Jesus sempre pertence a Ele. E por seu amor empreende uma batalha cotidiana contra os seus vícios e contra qualquer mundanismo alienante”.
Parafraseando os ensinamentos de Puglisi, Bergoglio recorda que a dos sacerdotes “não é uma profissão, mas uma doação; não é um ofício, mas uma missão. Não um ofício que pode servir para fazer carreira, mas uma missão”.
E isso também vale para a vida consagrada. A este respeito, para recordar o papel do serviço a que são chamadas principalmente as freiras, Bergoglio conta uma história pessoal: “Havia, onde trabalhava meu pai, muitos migrantes da guerra espanhola, comunistas, socialistas, ‘comecuras’ [anticlericais], de tudo... Um deles estava 30 dias doente em sua casa, e a freira ia cuidar dele, ele que sofria de uma doença muito séria. Nos primeiros dias, ele lhe dizia todas as grosserias que conhecia. A freira, em silêncio, cuidava dele. No final da história, ele se reconciliou. Certa vez, saindo do trabalho, passavam duas freiras e um desses se pôs a dizer palavrões. Ele o jogou no chão e disse: ‘Você pode ficar com raiva de Deus e dos sacerdotes, mas não toque nem na Nossa Senhora, nem nas freiras’”.
Entre risos dos presentes, o Papa Francisco continuou seu discurso referindo-se à importância do perdão: o sacerdote não é apenas “homem do dom”, mas também “homem do perdão”, “não carrega rancores, não faz pesar o que não recebeu, não faz o mal pelo mal. Não, o sacerdote é portador da paz de Jesus: benevolente, misericordioso, capaz de perdoar os outros como Deus os perdoa por meio dele. Leva concórdia onde há divisão, harmonia onde há brigas, serenidade onde há animosidade”. “Quantas vezes – acrescentou –, nas comunidades religiosas, não há perdão, há fofocas, há ciúmes. Não!”
“Certa vez me disse um bispo: ‘Eu batizaria novamente algumas comunidades religiosas para que se tornassem cristãs, porque se comportam como pagãos’”, brincou o Papa. “Peçamos a Deus para sermos saudáveis portadores do Evangelho, capazes de perdoar os nossos corações, amar os nossos inimigos e rezar pelos que nos prejudicam. Parece uma coisa de museu, mas não é. Hoje devemos fazer isso: rezar por aqueles que fazem o mal, como Jesus. Todos sabemos que não é fácil nos perdoar: ‘Você fez isso comigo e vai pagar por isso’, como na máfia. Mas não em nosso presbitério”, sublinhou o Pontífice.
Ele também disse algumas palavras sobre a confissão. “Que não seja uma sessão psiquiátrica”, nem um momento “detetivesco”, mas um momento para os fiéis se encontrarem com Deus. “Um cardeal conservador (hoje se diz assim: os conservadores e os mais abertos) me disse: ‘Mas se alguém vem porque eu estou aí em vez de Jesus e diz: “Perdoa-me, perdoa-me, eu fiz isso”, e sinto que de acordo com as regras não deveria perdoá-lo...’. Mas, qual pai não dá o perdão ao filho que pede com lágrimas e desespero?”
Devemos ser, portanto, “testemunhas de esperança”, como dizia o padre Pino: “Àqueles que estão desorientados, o testemunho da esperança indica não o que é a esperança, mas quem é a esperança”. Este foi o desejo do Papa, que se despediu do clero de Palermo com um pedido de desculpas: “talvez eu tenha sido um pouco forte, mas gosto de falar assim”.
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Papa Francisco: “Zelem pela piedade popular que é o sistema imunológico da Igreja” - Instituto Humanitas Unisinos - IHU