21 Dezembro 2021
"Uma das idealizadoras e fundadora da Copime, tem provocado profundas reflexões sobre territorialidade e o direito à cidade, como lugar de pertencimento, onde defende que a identidade de um povo ultrapassa os limites das reservas, e para eles devem ser garantidos os direitos constitucionais" escreve Ludimar Nunes Kokama, da etnia Kokama de Santo Antônio do Içá, acadêmico de Ciências Contábeis da Universidade do Estado do Amazonas – UEA.
Nos contam os mais velhos que as nossas histórias não começam com o nosso nascimento e sim com as raízes das nossas ancestralidades. Marcivana Rodrigues Paiva nasceu na cidade de Maués, no dia 10/03/1969, às 18h, numa pequena casa de feita barro antigo, e território tradicional do povo Sateré Mawé. De lá, partem suas raízes indígenas até aonde a memória alcança. Coube sempre à mulher indígena manter viva essa memória e cultura, por meio dos filhos. E foi sua mãe, Ana Rodrigues Paiva, nascida no Nova Vida, Lago Grande, em Maués, que assim contava sobre a sua origem com muito orgulho. Contava ela que seu bisavô havia sido escravo numa fazenda de portugueses, onde hoje está demarcada uma pequena área do povo Sateré-Mawé. E que no período da Cabanagem foi uma liderança que lutou e matou junto com os cabanos os portugueses daquela fazenda e da região.
Era um período de luta contra a escravidão, a que foram submetidos os indígenas e os negros. Com o final da revolta, foram viver descendo o rio e fixou morada no Rio Arari, onde nasceram os filhos, entre os quais Raimunda Rodrigues, que teve quatro filhas, uma delas Adair Rodrigues (sua avó), que casou com Manoel da Silva, do povo Munduruku. Em busca de melhores condições de vida, a família mudou para o Nova Vida, no Lago Grande, Rio Apuquitaua.
Era o tempo do desenvolvimento e do sonho por melhores condições de vida. Da substituição do querosene pela energia elétrica em Maués, por meio da Eletronorte, o que motivou o desejo do seu tio, Paulo Luiz, em cursar engenharia eletrônica, encantado com a profissão daqueles homens à frente das obras.
Enfeitiçado pelos maus espíritos, o avô partiu cedo, deixando dona Adair Rodrigues sozinha com os filhos. Sua avó, como grande parte dos indígenas, saiu do Município de Maués e foi para a cidade grande, Manaus, onde seu tio fez faculdade de Engenharia na Universidade Federal do Amazonas (Ufam). E sua mãe, que era “mãe solteira”, como diziam na época, veio junto para a capital, com as duas filhas pequenas, Márcia e Marcivana. Dona Adair foi morar no bairro de Santo Antônio e dona Ana Rodrigues, em uma ocupação no Terreno da Viúva Borel.
No início da ocupação na Compensa, tinham outros indígenas. Marcivana lembra de uma família Tikuna, mas não havia essa identificação como indígenas. Muitos os chamavam de peruanos, por conta da língua diferente que falavam. Sua mãe era uma mulher muito inteligente, seu modelo de inteligência, muito sábia. Praticava a medicina tradicional da própria cura espiritual dos pajés. Curava os seus filhos com os banhos medicinais. Tinha uma cabeça muito à frente do seu tempo. Nunca se calou para as imposições da época. Fazia profundas críticas em relação à própria igreja, que teria afetado a tradição cultural dos povos indígenas. E Marcivana foi crescendo nesse ritmo, vivendo essa realidade junto de sua mãe e aprendendo a ser o jeito que é hoje.
Ainda na infância, Marcivana viu a Paróquia Mae da Misericórdia se estruturar e se tornar uma paróquia. Era o tempo das Comunidades Eclesiais de Base (Cebs), cuja vivência vai marcar para sempre sua vida missionária. Época da chegada dos jesuítas no bairro da Compensa. Lembra até hoje do Padre Albano Ignácio Ternus e diz que teve muita sorte de se deparar com pessoas com pensamentos libertadores. Foi um tempo em que a igreja não era só templo, tinha muitas ações voltadas às questões sociais e aos jovens, com caminhadas missionárias e retirões de Carnaval.
Criança curiosa, gostava de ouvir os Jesuítas na partilha da Palavra, vendo-os nos afazeres do dia a dia, participava dos círculos bíblicos das irmãs, principalmente, dos que eram celebrados pela Irmã Yolanda Setubal, cônega de Santo Agostinho. Para uma criança indígena, o rosto de Jesus está presente na mata, nos rios, animais, nas pedrinhas, nos galhos, nas folhas, na semente, no punhado de terra e na cuia com água que eram usados na mística dos encontros. Se faz presente no tempo, na espiritualidade carregada no corpo desde as raízes.
Ainda muito jovem já estava envolvida em protestos nas ruas da Compensa por saneamento da rua em que morava. Viu os olhos d’água que brotavam do chão serem substituídos pelas água sujas do Rip Rap. Criaram um grupo de jovens, que se organizavam em manifestações por melhorias para a comunidade. E os jesuítas tiveram uma influência muito grande nesse processo de formação política social. Na adolescência conheceu e conviveu com a Irmã Helena Augusta Walcott, primeira professora de catequese. Para Marcivana, o exemplo de vida desses missionários contribuiu significativamente para a sua visão de mundo e dos problemas sociais. Assim, foi crescendo nesse ritmo, junto aos jesuítas e às freiras, lutando pelo direito à terra e à moradia digna.
Aos 16 anos, ajudou a fundar a Comunidade Divino Espírito Santo, com apoio da Irmã Helena, em 1985, Santo do qual é devota até os dias de hoje. Foi secretária, tesoureira, coordenadora da Comunidade, coordenadora de batismo e catequista. Nesse período, faziam um trabalho bem interessante na área social, de sensibilizar os jovens que não tinham perspectiva de vida na comunidade. Muitos desses, infelizmente, morreram por conta do tráfico de drogas.
Em casa e no núcleo familiar eram indígenas, embora alguns membros já negassem suas raízes, principalmente, os que já nasceram na cidade de Manaus. Em 1999, Marcivana foi voluntária na Pastoral da Criança, coordenada por Graça Cascais, atuando como professora de Jovens e Adultos na Comunidade do Divino Espírito Santo. Em 2005, indicada pelo padre Guilherme Cordona, foi trabalhar na Cáritas Arquidiocesana de Manaus, fato que deu início a uma nova experiência, que veio contribuir para o seu fortalecimento político e social. Muito do que é hoje e defende foi fortalecido por esse aprendizado na Cáritas. Era uma época interessante, de muitos sonhos por uma mudança social e por dignidade. Um momento em que os Movimentos Sociais em Manaus estavam muito fortes. O movimento pela moradia estava iniciando, o processo da economia solidária, a questão das cidades, dos indígenas nas cidades, dos negros e de outras linhas de ação.
Em 2006, apaixonada pelos números, herança herdada da mãe, Marcivana ingressa no Curso de Ciências Contábeis, pela Faculdade Salesiana Dom Bosco. O curso ajudaria mais tarde a fortalecer institucionalmente as organizações indígenas em Manaus e a própria Copime. Em agosto de 2008, nasce sua primeira e única filha, Naamyn Flor.
Nesse mesmo ano, começa a ser executado pela Pastoral Indigenista da Arquidiocese de Manaus (Piama), em parceria com a Cáritas, o mapeamento dos indígenas que vivem em Manaus, formações e Encontros das Lideranças Indígenas de Manaus, com objetivo de organizar suas principais reivindicações juntos aos órgãos públicos para conquistas de políticas públicas.
Nesse período, a Piama era coordenada por Ana Délia, que desenvolvia um importante trabalho junto aos povos indígenas e organizou o I e II Encontro dos Povos Indígenas de Manaus, em 2008 e 2009, respectivamente. Em 2011, com a chegada de Pe. Roberto de Valicourt, francês de origem e espírito de índio, os indígenas Joelma Apurinã, Silvio Bará e Marcivana Sateré Mawé passaram a fazer parte da coordenação colegiada da Piama, nascendo o sonho da criação de uma organização indígena local, que abrangesse as outras organizações indígenas, com objetivo de discutir a questão dos indígenas e lutar por políticas públicas.
E a Pastoral Indigenista teve um papel fundamental para a organização dos povos indígenas. Começou a trabalhar esse processo da autoestima dos indígenas. Temos que ser muito corajosos, principalmente, aqui na cidade. Com Padre Roberto e os indígenas na Piama, fortaleceu ainda mais esse processo de reconhecimento. Não só a partir do estado, mas a partir de nós mesmos, de nos reconhecermos, de nos valorizarmos enquanto indígena na cidade, de juntar o indígena com outro indígena.
E o primeiro momento da construção de uma nova realidade foi chamar os indígenas para serem protagonistas de seus próprios caminhos. Em 2011, Marcivana ajudou a organizar o III Encontro dos Povos Indígenas de Manaus, no Xare, onde foi criada uma Comissão para executar os encaminhamentos da Assembleia, comissão que mais tarde se tornaria a Coordenação dos Povos Indígenas de Manaus e Entorno (Copime), e com 4 eixos prioritários a serem trabalhados: Educação Diferenciada, Saúde Diferenciada, Artesanato e Cultura e Terra e Moradia.
Já em 2014, no IV Encontro dos Povos Indígenas de Manaus, no Xare, Tury Sateré foi eleito coordenador, Jonas Kokama vice, Jason Kokama secretário, e Marcivana Sateré, tesoureira. Foi o período das grandes articulações, da consolidação como organização representativas das comunidades, associações, grupos e famílias indígenas de Manaus e Entorno. Período de formações, ocupação dos espaços de direitos e incidência política. Em 2017, a equipe é reconduzida para novo mandato.
Em 2019, Marcivana Sateré é convidada para participar da Conferência sobre Religiões e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) – Ouvindo o Grito da terra e dos pobres, que aconteceu na cidade do Vaticano, no período de 7 a 9 de março de 2019, onde falou sobre a realidade dos povos indígenas nas cidades da Amazônia. Nesse mesmo ano, assume como conselheira, no seguimento indígena, no Conselho Estadual de Saúde do Amazonas (CES/AM).
Em outubro de 2019, a convite do Papa Francisco, participa como auditora do Sínodo para a Amazônia, realizado na cidade do Vaticano, falando sobre Urbanidade e Povos Indígenas. É a voz dos Povos Indígenas ecoando pelo mundo.
E também é nesse mesmo ano que vem um dos maiores golpes sofridos por Marcivana, Copime e Piama, o assassinato brutal do indígena Humberto Tuyuka, catequista, membro da Piama e agente social da Cáritas. Humberto compunha com Marcivana a chapa para concorrer ao pleito da Copime no ano seguinte. Com a partida precoce de Humberto, Ludimar Kokama, membro e vice-presidente do Movimento dos Estudantes Indígenas do Amazonas (Meiam), é convidado para a Piama, Cáritas e para a coordenação executiva da Copime.
Em 2020, em meio a pandemia que atinge Manaus e os Povos Indígenas e num cenário político anti indígena, fortalecido pelo Governo Bolsonaro, Marcivana Sateré é eleita primeira mulher indígena coordenadora geral da Copime, juntamente com Jason Kokama, vice coordenador, Jessica Apurinã, secretária e Ludimar Kokama, tesoureiro. Período de combate à pandemia, por meio das ações emergenciais de distribuição de cestas básicas, kits de higiene e, principalmente, da luta pelo acesso à saúde diferenciada, pelo direito à vacina e contra a violação e retirada de direitos, luta contra o desmonte da política indigenista conquistada a duras penas pelas lideranças passadas. Tempo de fortalecimento institucional interno e sustentabilidade.
Ao longo do processo de organização e fortalecimento da Copime, Marcivana Sateré tem contribuído de forma significativa para dar visibilidade à realidade dos povos indígenas de Manaus. Uma das idealizadoras e fundadora da Copime, tem provocado profundas reflexões sobre territorialidade e o direito à cidade, como lugar de pertencimento, onde defende que a identidade de um povo ultrapassa os limites das reservas, e para eles devem ser garantidos os direitos constitucionais.
Nossa missão, reflete Marcivana Sateré, é aquilo a que estamos destinados é um mistério que somente Deus pode explicar, pois já nascemos com Ele no corpo e no espírito, Dele não podemos fugir.
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Marcivana (Sateré): memórias e lutas estão no sangue, no corpo e na espiritualidade que transcende o tempo e os limites territoriais - Instituto Humanitas Unisinos - IHU