02 Novembro 2021
"Precisamente porque a memória é essencial para a humanização, não só o Homo Sapiens, mas o homem de Neandertal já enterrava os seus mortos, muitas vezes os reunia em um só lugar e colocava flores sobre os seus cadáveres. Este testemunho de uma consciência da morte inscreve-se entre os elementos mais decisivos na diferenciação entre humanos e animais", escreve Enzo Bianchi, monge italiano, em artigo publicado por Repubblica, 01-11-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Já o grande Homero dizia que "as gerações humanas são como as folhas das árvores", e nós também nestes dias outonais vendo as folhas que caem das árvores somos levados a essa mesma comparação. Sem esquecer o encurtamento dos dias, o escurecer mais cedo, o aparecimento das névoas ... Tudo nos fala das vésperas do inverno, quando a terra descansa e a vida parece abandoná-la. Talvez pela atmosfera a escolha tenha sido feita para lembrar os mortos nesses dias.
Recordar os mortos, pensar nos mortos, é simplesmente reconhecer-nos como devedores aos que nos precederam e ter consciência de que transmitimos o que deles recebemos. Vivemos uma hora em que muitas vezes somos lembrados de que devemos às gerações futuras, que determinamos a vida daqueles que virão depois de nós, em nível cultural, político, econômico, ecológico; mas é possível deixar uma boa herança se não se consegue reconhecer a herança recebida?
Recordar os mortos é assumir uma responsabilidade, é adquirir uma dimensão necessária à nossa passagem sobre esta terra como mortais, inseridos em genealogias que não são apenas familiares, mas também culturais. É muito significativo que na tradição judaica e cristã tenha sido percebido como necessário o sepultamento, um lugar no qual o corpo encontra sua colocação, marcado por uma pedra que testemunha, por meio do nome, uma existência terrena única que terminou com a morte.
Precisamente porque a memória é essencial para a humanização, não só o Homo Sapiens, mas o homem de Neandertal já enterrava os seus mortos, muitas vezes os reunia em um só lugar e colocava flores sobre os seus cadáveres. Este testemunho de uma consciência da morte inscreve-se entre os elementos mais decisivos na diferenciação entre humanos e animais.
Recordar os mortos, porém, também nos leva a pensar sobre a morte e a nos questionar sobre o sentido da vida. A certeza de morrer une homens e mulheres, é a base da ética da empatia, da compaixão, é o que nos leva a sentir-nos todos e todas juntos frágeis, com um destino comum e ao mesmo tempo que nos conduz a ter consciência do valor da nossa vida: única, uma só, uma vida de instantes eternos.
Em nossa tradição judaica e cristã nestes dias vamos "visitar" os mortos nos cemitérios: lugares onde choramos, vivemos saudades, medimos e contamos os nossos dias. Crentes e não crentes, fazemos esse gesto que sentimos como obrigatório para aqueles que amamos, para aqueles que, precisamente porque os amávamos, dizíamos com convicção: “Você não morrerá!”, como sugere Gabriel Marcel.
Mas os cemitérios também são lugares de paz, onde morreram aqueles que foram nossos inimigos e, portanto, agora não são mais inimigos, enquanto aqueles que eram amigos, mesmo que mortos, o continuam sendo, fielmente. Rainer Maria Rilke deixou-nos esta oração que faço minha nos cemitérios: A cada um, Senhor, doa a sua própria morte, o morrer que vem da sua vida em que encontrou amor, sentido e até dor.
Esses pensamentos não são sombrios, nem devem inspirar tristeza, mas querem indicar a bondade do pensamento do limite, que sempre procuramos remover, especialmente hoje, tentados por um individualismo que nega laços e extingue a responsabilidade. A plenitude da vida na aceitação da finitude acende a nossa esperança e nos impede de pensar a uma eternidade no nada.
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Relembrar os mortos para homenagear a vida - Instituto Humanitas Unisinos - IHU