"A verdade, o conhecimento e a ciência devem ser para e a favor daqueles que precisam. A forma como obtemos a verdade pode nos poupar muitas dores de cabeça e também evitar inimigos" escreve Antonio Lafuente, físico, pesquisador do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas (CSIC) da Espanha, na área de estudos da ciência, em artigo publicado por Outras Palavras, 20-10-2021. A tradução é de Vitor Costa.
Há alguns anos, uma boa amiga, muito comprometida com os processos de paz na Colômbia, perguntou-me se a verdade poderia ser um bem comum. Não me lembro do que respondi, mas não consegui tirar a pergunta da cabeça até conseguir escrever o texto que agora compartilho. Lembro-me de começá-lo assim que cheguei ao hotel e terminá-lo de madrugada. Também me lembro que, quando terminei, tremia de cansaço e medo. A audácia de tratar de assuntos de tal substância e urgência me assustava.
Para mim o comum é diferente do público, porque ao invés de ser para todos deveria estar mais próximo do ideal de ser entre todos. Para saber então se algo é um bem comum, a chave é saber como se constrói ou, em outras palavras, saber que o resultado não é o mais importante, mas a forma como o obtemos. Construir bens comuns não é nada parecido com o que acontece quando fazemos livros, templos ou festas. Não se trata de produzir soluções, mas de projetar respostas que nos representem a todos igualmente. E deve-se presumir que tudo de que falo pode ser muito heterogêneo.
A verdade pode então ser entre todos? Temos muitos exemplos históricos de como tentamos tratado de que fosse para todos, seja por imposição de quem manda em nós, seja por consenso de quem nos representa. Ambas as estratégias, nem sempre diferentes, têm em comum o custo excessivo de manter uma afirmação que todos possam assumir como verdadeira. E que condições devem existir para que uma verdade o seja para todos? O razoável é exigir que seja uma afirmação que sobreviva em muitos lugares e em diferentes tempos. E assim descobrimos que enquanto no primeiro caso são necessários poderosos aparatos repressivos e de propaganda, no segundo se demanda a existência de numerosos laboratórios que a verifiquem e mais aparatos institucionais que a atualizem e divulguem.
Em ambos os casos, os custos são extraordinários e talvez insustentáveis. É inimaginável, por exemplo, que cada cidade tenha toda a parafernália técnica, pessoal ou financeira necessária para verificar a avalanche de afirmações, teses ou proclamações que nos inundam todos os dias. A confiança, nesse caso, demanda infraestruturas poderosas, cujo código às vezes é intrincado ou oculto.
Podemos ter confiança sem ser crédulos? Podemos reduzir o poder daqueles que governam ou daqueles que sabem? O que o Iluminismo fez foi transferir a autoridade da Igreja para a Corte e dos claustros para a academia. E isso foi visto como um grande progresso. Mas hoje não basta. É preciso renovar a ousadia do moderno e enfrentar novos desafios.
Agora precisamos diminuir a influência das corporações e aumentar a dos cidadãos. Existem tantos abusos documentados que não podemos mais parar de olhar para este problema de frente. São tantos os excessos cometidos que poderíamos dizer que os especialistas, mais que solução, passaram a fazer parte do problema. E, convenhamos, a linha entre os interesses privados e públicos não é mais clara. Não sabemos se “quem sabe” trabalha ao serviço do bem comum ou se tem outros interesses menos exemplares.
A verdade especializada não apenas parece potencialmente contaminada, mas também é frequentemente mostrada a nós como uma verdade pequena, mesquinha, desconfiada e amedrontadora. Parece uma verdade que sobrevive muito mal fora de toda aquela parafernália de Universidades, Congressos, Revistas, Faculdades e Cátedras, transpassada pela rede de Consultorias, Conselhos, Planos Estratégicos, Aceleradoras, Fundos de Investimento e Patentes. Uma verdade que é pequena porque parece que sempre confirma os valores e estilos de vida de uma minúscula percentagem da população.
Não importa do que estejamos falando, as questões que melhor cabem no laboratório são aquelas que perturbam as classes média e alta. E, finalmente, poderíamos expandir esse argumento para torná-lo mais robusto, mas talvez não acrescentemos nada que não possa ser derivado do que já foi dito. E então o que podemos fazer? Ou, em outras palavras, o que poderíamos exigir das práticas e instituições da verdade?
O mais fácil é nos perguntarmos o que queremos saber e tentar moldar as práticas para alcançar isso. Porque não queremos apenas chegar o mais perto que pudermos de algo que seja confiável, ou seja, de algo que chega até nós dotado de autoridade suficiente. Agir com sinceridade é um objetivo nobre, mas como o alcançamos é tão ou mais importante para nós do que o resultado em si.
Não queremos desprezar nada nem ninguém, mas uma verdade-chave na mão, costumeira e irrepreensível na sua execução, não nos interessa porque, como já foi dito, o custo subsequente da sua manutenção pode ser tão desproporcional quanto seria distante o grupo daqueles que gostariam de defendê-la.
A verdade, o conhecimento e a ciência devem ser para e a favor daqueles que precisam. A forma como obtemos a verdade pode nos poupar muitas dores de cabeça e também evitar inimigos. Vamos então considerar essas maneiras.
As três características mínimas que devemos exigir de um processo de busca da verdade são fáceis de nomear: aberto, público e provisório. Vamos explicá-las brevemente.
“Aberto” significa pelo menos duas coisas; a primeira se confunde com a noção de acessível e, a segunda, evoca os imaginários do interdisciplinar e do indisciplinar. A vida não é compartimentada, nem dividida por cadeiras ou departamentos, mas flui por todos os espaços e temporalidades. Qualquer problema específico se ramifica em diferentes áreas do conhecimento e aqueles que os praticam devem se esforçar para se ouvir. Mas os afetados não precisam ser necessariamente pessoas com ensino superior ou conhecimento técnico. Muitas vezes podem ser pessoas com baixíssimo nível educacional e com grande dificuldade de expressão no espaço público. Não contar com elas e eles seria lamentável.
Precisamos, então, criar as condições para que ocorra um diálogo entre os saberes disciplinares e indisciplinares, aqueles que podem ser monitorados e aqueles que se movem pelos âmbitos elusivos do tácito, do local, do ancestral, do afetivo ou do experiencial. A conversa que demandamos requer a criação de grupos heterogêneos, mapas de atores com agência e a existência de espaços de acolhimento, ou seja, facilitados por mediadores.
A verdade que queremos tem que ser pública. Todos nós temos direito à nossa própria opinião, mas não aos nossos próprios fatos. Não é que estejamos desdenhando aquelas verdades domésticas, privadas ou sectárias nas quais frequentemente confiamos para interpretar o mundo que habitamos. Não queremos jogar fora nada que nos aconteça, mas em troca queremos que essas ou outras convicções sejam verificadas ou, em outras palavras, que todas as nossas afirmações sejam públicas, para que possam ser verificadas.
Cada verdade se torna mais robusta com os testemunhos mais favoráveis que recebe, tanto orais como documentais. Quanto mais delicadas as questões abordadas, mais exigentes devemos ser com a documentação comprobatória, para que qualquer pessoa as possa verificar, qualificar, ampliar, apoiar, divulgar ou refutar. A condição de público a torna, pelo menos potencialmente, verificável, participativa e padronizada.
Verificável significa que sempre podemos discriminar as fontes que sustentam nossas afirmações. Participativo para que, em princípio, todos possamos contribuir com nosso modesto grão de areia. Padrão é uma condição que os objetos (dados, protótipos, linguagens e protocolos) devem ter para que possam navegar entre sistemas operacionais e diferentes culturas. A tecnologia agora pode garantir a acessibilidade de todos os documentos, bem como a preservação absoluta de todas as contribuições, visualizações e versões, além de tornar transparente a versão master (ou seja, funcional) e a forma como foi construída.
A terceira característica que queremos exigir da verdade é que seja provisória. A verdade que procuramos está sempre em construção, nunca termina porque estamos sempre à espera de um novo ator, um novo dado, um novo instrumento, um novo conceito ou, em termos gerais, uma nova abordagem.
A verdade de que precisamos não está escrita em pedra, mas está viva e vibrando no campasso do nosso mundo. Por ser uma verdade incompleta, não tem dono e só pode ser emergente. Não é feita exclusivamente de dados ou números, mas também de histórias e presenças. Não é apenas uma consequência epistêmica, mas também uma produção situada.
A verdade de que precisamos não é feita fora de nós, mas é uma construção relacional. É uma forma de relacionamento e de convivência promissora. E se aspiramos a mudar nossos modos de existência, precisamos incorporar mais detalhes, nuances ou contingências para que as novas práticas de convivência não corram o risco de ser reprimidas, ocultadas ou excluídas.
Algumas propostas podem parecer visionárias, impossíveis ou utópicas, seja porque não são práticas, seja porque são minoritárias ou bizarras. Não importa que seja esse o caso, pois as novas tecnologias não só permitem a discrepância, mas a encorajam: possibilitam, sem custo adicional, que a prática da dissidência nos ajude a compreender potenciais deficiências, explorar diferentes possibilidades e contribuir para a produção de confiança.
Essas três características são suficientes para haver uma verdade entre todos e não uma verdade dada, alheia, ditada, abstrata, fria, frustrante ou claustrofóbica? Não creio. Precisamos cumprir outros requisitos. A verdade entre todos tem que ser barata, amigável e granular.
Barata porque, caso contrário, seria sempre uma reserva profissional e/ou uma consequência corporativa. Uma verdade cara é uma produção mal replicável e mal conectada em rede. Uma verdade barata é uma construção que pode ser alcançada por meio de figurações rápidas, ferramentas pobres, práticas improvisadas e antecipações domésticas.
Nada nos obriga a pensar em verdades baratas como simples imitações, panaceias sujas ou conclusões crédulas. Baixo custo não é igual a baixa confiabilidade. A ciência barata, assim como a inovação frugal, não é uma forma alternativa à praticada na academia, mas uma produção tática cujo destino não é fazer carreira, mas construir cidade; não é postulado como conhecimento que busca sua objetivação, mas “objetualização”. Não almeja ser certo, mas materializar o convívio, pois se construirmos o objeto ou protótipo somando nossas habilidades estaremos dando existência a algo que pode ser replicado e, acima de tudo, a uma forma auto-organizada de convivência.
A verdade barata não chega por si, precisa de um lugar para se aninhar, um espaço que a favoreça, um lugar cujos protocolos de gestão não espantem aos que, por serem simples, não deixam de ser sábios ou, em outras palavras, especialistas em sua experiência. Portadores de um conhecimento que deve ser acionado se queremos que nossas práticas sejam inclusivas e, portanto, libertadoras, promotoras de outros mundos possíveis.
“Amigável” é uma bela palavra que evoca os mundos do jovial, do lúdico e do leve. A verdade sempre se veste com uma severidade patriarcal, e se mostra em mundos um tanto hostis, com gestos sóbrios, coreografia cinza, roteiros excessivos, burocracias incompreensíveis, atores masculinos, espaços isolados, trajes formais, palavras previsíveis e horários de trabalho. A verdade é enfadonha, rara, inequívoca e muitas vezes incompreensível. No teatro da verdade (quase) nunca há crianças, mulheres, índios, negros, pessoas com deficiências. São teatros para pessoas mais velhas, fantasias escuras e palavras grandiloquentes. Mas não foi sempre assim.
A ciência moderna, a ciência experimental que conhecemos, nasceu no final do século XVII como um projeto minoritário, contra-hegemônico, artesanal, urbano e ligado à cultura do entretenimento, do café e da praça. E não são poucos os que exigem um retorno às origens nos salões, entre enciclopedistas, libertinos, viajantes, jornalistas, músicos e artesãos. A verdade pode aliar-se ao mundano, ao ordinário, ao comum, ao divertido, ao carnaval e ao vibrante, para se tornar mais alegre, mais da rua, mais carnal, mais alegre e, enfim, mais cúmplice do que nos acontece. Claro, existem muitos cenários possíveis e inspiradores. Devemos mapeá-los e depois projetar espaços que cuidem de nós e onde a leveza é algo que se respira.
Um projeto deve ser granular. A verdade é frequentemente mostrada para nós como um todo e em uma peça, algo que não pode ser desmontado, decomposto, desarmado, desorganizado, descontextualizado ou desgastado. E se não se pode intervir para mudar um canto, reescrever uma frase, abrir um fragmento, refazer uma linha, recriar um bloco, incluir um viés, introduzir uma nuance, propor uma dobra ou restaurar uma moldura, então é uma verdade que nos rejeita, que só nos aceita a adorá-la, como espectadores ou utilizadores, mas nunca como realizadores, críticos ou produtores.
A verdade deve ser-nos mostrada em fragmentos, o mais granular possível, para que quem acesse uma construção tão admirável possa encontrar uma tarefa que a melhore ou a complemente, porque não devemos nos contentar em sermos iguais, queremos fazer parte disso. Não queremos uma verdade alheia à qual somos convidados, mas uma verdade nossa e entre todos nós, feita de fragmentos memoráveis que só existem por convergência com outras contribuições tão diminutas quanto indispensáveis.
E a granularização pode ser aprendida, especialmente se quisermos promover a participação. Mas não basta tentar, é preciso dominar aquela estranha arte de distribuir tarefas, distribuir o jogo, visualizar as contribuições, trazer as contribuições à tona, valorizar o cuidado e, em geral, formar uma equipe sem exigir dedicação total, identidades comprovadas e compromissos de seus membros. Ao tornar os processos granulares, favorecemos estruturas informais, laços frágeis, responsabilidades esporádicas e pertenças intermitentes. Nós não apenas favorecemos a hospitalidade, mas oferecemos a opção de fazer a diferença.
Foto: Antonio Lafuente | Outras Palavras
Podemos então imaginar uma verdade entre todos? Óbvio que sim. Principalmente quando nos referimos a casos como paz, liberdade ou justiça. Como poderíamos não ser necessários na construção de infraestruturas que garantam o convívio? Este texto também é escrito a partir de uma dupla convicção: a primeira é que não nos interessamos pelas verdades universais, alheias às nossas circunstâncias específicas ou insensíveis aos detalhes que nos dizem respeito.
A segunda convicção, então, já foi sugerida, pois estamos nos referindo à verdades que precisam que levemos em conta, como disse, o conhecimento local, experiencial e tácito. Em última análise, não precisamos apenas da produção de certos tipos de verdades, mas essas verdades precisam de nós. Elas precisam muito de nós, precisam o tempo todo. E elas desaparecem assim que nos afastamos. Elas não são nossas, mas estão entre nós. Não somos seus donos, mas seus responsáveis.