01 Setembro 2021
"A confiança ou a falta dela costuma, ao mesmo tempo, erguer mitos e liquidá-los, levantar estátuas e reduzi-las a escombros", escreve Alfredo J. Gonçalves, cs, padre, vice-presidente do Serviço Pastoral dos Migrantes - SPM, 30-08-2021.
As relações sociais, de uma forma geral, têm na noção de confiança o fio de ouro que tece os laços, os encontros, as ligações e os compromissos. Daí a metáfora de tecido social que, por sua vez, supõe aquela de contrato social. O fio da confiança cimenta, em primeiro lugar, as relações entre pessoas do mesmo sangue, de parentesco ou clã, de vizinhança e amizade; mas cimenta também os liames comunitários, sociais, políticos e culturais. Somente através desse conceito de confiabilidade somos capazes de acreditar, por exemplo, na palavra dada, olho-no-olho, cara-a-cara; podemos estabelecer contratos tácitos ou escritos, seja de convivência matrimonial, seja de compra e venda de imóveis; passamos a acreditar nos movimentos, associações, organizações de todo tipo; damos fé, ainda, sobre os costumes, as expressões culturais, os valores, como também os partidos, as empresas e outras “pessoas jurídicas” que compõem a sociedade civil; enfim, as congregações de ordem religiosa, as instituições do Estado, e assim por diante.
Sobre os alicerces da confiança, ergueram-se povos, países e nações; ergueram-se pesquisas que fizeram progredir a ciência e a tecnologia; ergueram-se culturas diferenciadas e complexas, bem como inteiras civilizações; ergueram-se novos modos de produção, associados a variadas formas de distribuição e comércio; ergueram-se instituições de estudo e educação, além dos diferentes modos de interpretar os acontecimentos da história humana; ergueram-se diversas ramificações da ciência e do conhecimento. Em outras palavras, não há casamento sem confiança mínima; menos ainda família e parentesco. Tampouco poderão germinar, proliferar e multiplicar-se os grupos de amigos, as comunidades conviviais, o ensino e a educação, a medicina e a engenharia, o sindicato, o direito, a moral, a ética ou a religião.
Parafraseando Simone de Beauvoir, a confiança espalha as estrelas pelo firmamento, permitindo que nos orientemos em meio às ondas bravias da tempestade; provê as placas de sinalização nos caminhos, estradas, rodovias e ferrovias, o que nos faz chegar com maior rapidez e eficácia ao lugar desejado; pavimenta o chão irregular debaixo de nossos pés, conferindo-nos a certeza de que pisamos terreno firme, sólido e seguro. Numa palavra, é ela que, através dos séculos, da memória dos ancestrais, da tradição cultural e/ou religiosa e do conhecimento, nos proporciona referenciais indispensáveis para conduzir nossas frágeis embarcações ao porto. Sem sua ajuda, corremos o risco de perder as raízes de onde viemos, o rumo dos passos que devemos trilhar e o horizonte sempre novo a ser descortinado e alcançado.
Na prática política, as coisas não são diferentes. O fio de ouro da confiança tece a relações nas entranhas mesmo da democracia e da república, mas também no interior dos partidos e de seus núcleos de base; tece acordos e alianças, táticas e/ou estratégicas, frentes de manutenção ou de oposição ao status quo. Tece, inclusive, de forma implícita ou explícita, momentos de trégua e de hostilidade, de união e de separação. A confiança ou a falta dela costuma, ao mesmo tempo, erguer mitos e liquidá-los, levantar estátuas e reduzi-las a escombros.
A onda de negacionismo e de falsas notícias que hoje varre diferentes países do planeta, com governos de extrema-direita e alinhados ao populismo nacionalista, corrói pelas bases esse cimento da confiança. Corta o fio que a alinhavava, rompe os contratos que a sustentavam. O resultado é a crise em várias dimensões, o vácuo de poder, o caos da desordem, a barbárie e o salve-se-quem-puder. Esgarça-se o tecido social, rasga-se o véu tênue da confiança. Talvez ao lado da Covid-19, esse seja o vírus mais letal do contexto socioeconômico e geopolítico no qual estamos vivendo. Que legado de valores e de referências estamos deixando para as crianças, os adolescentes e os jovens? Nesta “modernidade líquida” (Z. Bauman), onde e como encontrar pontos sólidos nos quais firmar os pés e os passos? Se as próprias autoridades, a começar pelo chefe supremo, fazem, desfazem e refazem as próprias “verdades” em seu favor, em quem e como depositar nossa confiança e nossas energias?
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
O fio tênue e frágil da confiança - Instituto Humanitas Unisinos - IHU