02 Outubro 2019
“Seja no regime local de Elinor Ostrom ou no regime global de Hardt e Negri, o que está claro é que cada vez são mais vozes que começam a perceber que os comuns não são somente um simples modo de gestão coletiva mais ou menos minoritária e isolada, mas um novo projeto civilizatório completamente alheio à lógica proprietária que governou o Ocidente nos últimos dois mil anos”, escreve Jorge León Casero, professor de filosofia da Universidade de Zaragoza, na Espanha, em artigo publicado por El Salto, 01-10-2019. A tradução é do Cepat.
Desde que Elinor Ostrom - primeira mulher a ganhar o Prêmio Nobel de Economia em 2009 - publicou o livro Governing the Commons, em 1990, as lutas e debates em torno dos “comuns” ou “o comum” só cresceram, tanto no âmbito acadêmico quanto no social. No âmbito intelectual, um grande número de autores continuou e ampliou as primeiras reflexões e defesas sobre os comuns feitas pela cientista política estadunidense até desenvolver um projeto completo de reestruturação sociopolítica que, pelo menos em teoria, teria a capacidade de agrupar uma nova frente global, o múltiplo e heterogêneo panorama de lutas mais ou menos dispersas que surgiram a partir dos anos 1990.
Por outro lado, no âmbito social, há cada vez mais movimentos, grupos, associações ou simplesmente espaços urbanos abertos a qualquer pessoa, sem fins lucrativos - os famosos comuns urbanos - que rejeitam abertamente a colaboração das administrações públicas, que mesmo que tentem sinceramente apoiar tais tipos de agrupamentos, não podem evitar certos modos de gestão próprios do direito administrativo que envolvam graves dificuldades para o tipo de filosofia organizacional com a qual esses grupos pretendem funcionar.
O termo “comum” deriva da união do prefixo indo-europeu kom (junto, próximo) e o substantivo munus (tarefa, atividade), que vem da raiz mei (mudar e / ou mover). Dessa união derivam termos como comunhão, comuna e comunismo. Originalmente, em todos eles havia sempre a ideia de atividade coletiva orientada para o futuro que permanecia estranho a qualquer consideração jurídica de um sujeito - individual ou coletivo - titular de direitos adquiridos no passado e transmissíveis de uns para outros. Ou o que é o mesmo, o significado etimológico do comum não apela tanto a um horizonte de sentido propriamente jurídico como a um pro-dutivo, onde o prefixo pro indica uma orientação para “algo” futuro gerado coletivamente.
Por outro lado, o termo "público" vem de publicus, termo este derivado de populus, que é de onde vem o vocábulo "povo". Populus foi um dos termos usados para traduzir do latim para o grego demos. Pois bem, para poder conhecer com precisão o significado originário do termo "público" é preciso apontar que populus não foi o único termo com o qual era possível traduzir demos, uma vez que também existia plebs. De plebs derivam palavras como plebe e plebeu, que sempre tiveram uma conotação de "vulgar" e, portanto, "comum". É nesse sentido que, no século VII, Santo Isidoro de Sevilla já afirmava que “o povo (populus) é toda a cidadania, enquanto as pessoas comuns (vulgus) na verdade são a plebe (plebs). A plebe se chama assim por sua pluralidade [plebs e pluralitas vêm da mesma raiz indo-europeia pel, que indica magnitude], uma vez que os menores são mais numerosos".
Em outras palavras, enquanto populus se referia ao povo como cidadãos com direitos reconhecidos e transmissíveis, plebs se referia àquela parte da população residente em um território que não tem direitos de cidadania reconhecidos, como por exemplo eram os escravos, os estrangeiros, as mulheres e, em última instância, qualquer outro tipo de não proprietário. É nesse sentido que Jacques Rancière costumava lembrar que a democracia (demos + kratos), para além das mistificações liberais que acabaram por confundi-la com o parlamentarismo, sempre significou a força (kratos) empenhada pela plebs para obter acesso ao status jurídico de um populus com direitos e cidadania reconhecidos.
Esse antagonismo entre populus e plebs encontra um curioso paralelismo em nossa atual articulação jurídica do público e do comum, uma vez que, como afirma Laval e Dardot, o comum não pode ser concebido como “uma categoria totalmente jurídica, mas como uma estância pré-jurídica”. Ou seja, o comum não é um conceito plenamente válido para a lógica jurídica. Basicamente, assim como a plebs apela para uma realidade que, estritamente, não existe juridicamente. A razão para isso é que todos os nossos atuais sistemas jurídicos foram construídos fundamentalmente a partir do modelo de um direito romano, assentado sobre uma profunda aliança de fundo entre o conceito de propriedade e o próprio conceito de direito (ius). É nesse sentido que já Ulpiano definiu a Justiça como a ação de “dar a cada um o seu”, no sentido de dar a cada um o seu ius ou seu direito. O que tal definição implica é que os direitos sempre são propriedade de alguém, a tal ponto que o conceito de propriedade é postulado como ontologicamente anterior ao próprio conceito de direito.
O problema está em que os diferentes modos do comum não são compatíveis com essa lógica romana do direito como propriedade. Para enfrentar o comum, o direito romano o reconfigurou através de um simples cálculo que coordenava os diferentes direitos individuais envolvidos. É por isso que, diferentemente da antiga comunidade de bens germânica em que nenhum membro do coletivo podia solicitar a divisão do comum para dispor de sua parte individualmente, a comunidade de bens romana, ao contrário, concebeu o regime jurídico da mancomunidade de bens mediante uma cota individual de participação que pode ser transmitida a terceiros com total liberdade. Enquanto a comunidade de bens germânica era algo indivisível e incomensurável completamente incompatível com o conceito de propriedade, a comunidade de bens romana nada mais era do que a simples soma aritmética dos direitos individuais dos coproprietários. Na atualidade, todo o direito de sociedades – pouco importa se é o caso de sociedades de capital ou de sociedades de trabalho - é herdeiro direto dessa lógica romana das cotas de participação.
Da mesma forma, a concepção atual do direto que governa as administrações públicas se baseia na ideia romana de propriedade privada e apenas acrescenta certos limites às ações do Poder Executivo. Concretamente, a lógica do domínio público no Ocidente - dos bens que dirige diretamente uma Administração Pública - nasceu ao longo do século XVII com a intenção de limitar as faculdades de disposição do monarca em relação aos bens da Coroa, tais como rios, portos e equipamentos, que mais tarde passariam a ser descritos como bens da Nação.
Concretamente, o art. 132.1 da atual Constituição Espanhola estabelece que o regime jurídico dos bens de domínio público se inspirará pelos “princípios de inalienabilidade, inatacabilidade e imprescritibilidade”. Ou seja, estão excluídos do tráfego jurídico privado (não podem ser vendidos), os tribunais não podem julgá-los como pagamento das dívidas que o Estado adquiriu e que sua propriedade não pode ser perdida por "usucapião", ou seja, por sua posse continuada no tempo por parte de um terceiro. À margem dessas limitações, as administrações públicas dispõem deles com a mesma lógica proprietária do direito privado. Uma lógica que lhes permite ser as únicas entidades que podem conceder “direitos de uso” exclusivos e excludentes sobre os bens de domínio público a empresas privadas e particulares.
Se levarmos em conta que essas concessões não estão excluídas do tráfego jurídico privado, mas podem ser vendidas livremente entre particulares, resulta que o modo de gerenciamento dos bens de domínio público nada mais é do que um modo de propriedade privada sob um regime de monopólio estatal. É por isso que Laval e Dardot não hesitam em afirmar que "a propriedade pública não é uma proteção do comum, mas uma espécie de forma 'coletiva' de propriedade privada, reservada à classe dominante que pode dispor dela".
Em oposição aberta à lógica jurídica do público e do privado, existem duas concepções diferentes, mas não necessariamente antagônicas, do comum. A primeira delas, mantida por Ostrom, se concentra no estudo de diferentes formas de gestão coletiva de bens comuns que não se enquadram nem na lógica privada das cotas de participação, nem no regime soberano do público, uma vez que empregam uma grande variedade de estratégias híbridas que, embora em seu conjunto e dependendo dos casos podem estar mais próximas do regime privado ou do público, sempre garantem que "a maioria dos indivíduos afetados pelas regras operacionais podem participar de sua modificação".
A segunda, desenvolvido por Hardt e Negri, entre outros, incide na absoluta inadequação da lógica jurídica da propriedade em todas as sociedades altamente colaborativas em que o valor do que é produzido coletivamente não pode ser medido como a simples soma aritmética dos valores produzidos de maneira individual. Por isso, e aceitando sem medo a crise definitiva da lei do valor definida por Marx, segunda a qual o valor do que foi produzido coletivamente equivalia à soma das horas de trabalho aportadas por cada indivíduo, Hardt e Negri desenvolvem todo um programa de novas instituições comuns de produção, redistribuição e consumo que excedem em muito a simples gestão coletiva de alguns bens determinados e entre as quais a Renda Básica Universal é apenas mais uma.
Em qualquer um dos casos, seja no regime local de Ostrom ou no regime global de Hardt e Negri, o que está claro é que cada vez são mais vozes que começam a perceber que os comuns não são somente um simples modo de gestão coletiva mais ou menos minoritária e isolada, mas um novo projeto civilizatório completamente alheio à lógica proprietária que governou o Ocidente nos últimos dois mil anos.
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Público não é comum - Instituto Humanitas Unisinos - IHU