21 Outubro 2021
Combativo como sempre, Jean Ziegler, sociólogo, escritor e ex-Relator Especial da ONU, abordou o tema do direito à alimentação.
A entrevista é de Muriel Scibilia, publicada por Infobae, 15-10-2021. A tradução é do Cepat.
Quais são as causas do aumento da fome e a pobreza?
São muitas, mas o impacto da pandemia de Covid-19 foi desastroso: cerca de 250 milhões de pessoas a mais passaram a sofrer insegurança alimentar, a partir de 2020. Trata-se do maior aumento da fome no mundo, em ao menos 15 anos.
Antes da crise sanitária, a situação já era terrível. Em torno de um décimo da população mundial, cerca de 867 milhões de pessoas, estava grave e permanentemente desnutrida, e uma criança menor de 10 anos morria de fome ou das consequências da fome a cada 5 segundos, ou seja, 17.000 crianças por dia.
A fome é inevitável?
É claro que não. Essa situação é absurda e criminosa. Levando em conta o estado atual das forças de produção, se nos organizássemos de outra maneira, se a distribuição fosse equitativa, a agricultura mundial poderia proporcionar o mínimo vital para um adulto, ou seja, 2.200 calorias por dia, para 12 bilhões de seres humanos. Atualmente, somos “apenas” 7,7 bilhões de pessoas. A fome não é mais uma fatalidade. Cada criança que morre de fome é assassinada.
Quais são os mecanismos da fome?
É preciso distinguir entre a fome estrutural e a fome cíclica. A fome estrutural, que assola um grande número de países do Sul, é o resultado de um desenvolvimento insuficiente das forças produtivas. A segunda é a causada pelo colapso repentino de toda uma economia devido à guerra, catástrofe ecológica ou gafanhotos.
A pandemia agravou ambos os mecanismos ao destruir ainda mais a produção e dificultar o comércio. Em países como Somália, as batalhas para conter a fome foram freadas ou sabotadas por algumas das medidas adotadas para combater a pandemia.
Quais são as causas disso?
A pressão financeira sobre os países em desenvolvimento para que paguem sua dívida externa é ainda mais insuportável, já que enfrentam o choque econômico da pandemia. No ano passado, a dívida soberana desses países alcançou os 3,1 trilhões de dólares. A maioria dos países superendividados estão no hemisfério sul, onde vivem três quartos da população.
Dos 53 países da África, 36 são quase exclusivamente agrícolas. No Senegal, a maior parte da renda procedente das exportações de amendoins é absorvida pelo pagamento das parcelas de amortização e juros da dívida externa, o que não permite investir na agricultura.
Além disso, em tempos normais, quando não há guerras e nem catástrofes climáticas, nos sete países do Sahel, o rendimento de um hectare de cereais é de 600-700 kg por ano, ao passo que na Bretanha é de 10 toneladas. Isso não se deve ao fato de que o agricultor bretão seja mais competente ou mais trabalhador, mas a que os governos do Sahel não têm meios para fornecer fertilizantes, irrigação e facilitar o acesso a crédito e aos mercados. O agricultor se vê reduzido a confiar na boa vontade da chuva, como fazia há 300 anos. A supressão imediata da dívida externa dos 50 países mais endividados lhes permitiria investir em sua agricultura.
Segunda causa: o dumping agrícola da União Europeia. Para manter os preços, exporta seus excedentes de produção aos mercados africanos em condições muito favoráveis. As laranjas procedentes da Espanha são vendidas por três vezes menos do que as produzidas no país sob um sol abrasador por mulheres e crianças que não têm nenhuma possibilidade de ganhar a vida com elas.
A terceira razão é a concentração de terras agrícolas pelos fundos de cobertura e outros grupos financeiros. No ano passado, 41 milhões de hectares de terras agrícolas africanas foram compradas/arrendadas por esses grupos, em sua maioria sauditas e europeus.
O Banco Mundial reconhece que essa concentração de terras está destruindo as famílias, que acabam em míseros povoados de palhoças onde florescem a prostituição infantil, as drogas, o desemprego endêmico e a desnutrição, mas considera que é economicamente justificável que essas terras passem para as mãos de grupos estrangeiros, que são os únicos capazes de aumentar a produção, ter acesso à tecnologia, financiamento e mercados internacionais. Toda a produção é exportada, nada volta para a população local.
Por último, existe a especulação nas bolsas sobre os alimentos. Os alimentos básicos - milho, arroz e trigo -, que representam 75% do consumo mundial, são considerados como qualquer outro. Os especuladores obtêm lucros astronômicos com esses produtos comprados por uma clientela cativa que precisa se alimentar. Quando os preços sobem nos mercados mundiais, o aumento é refletido nos bairros marginais, e as mães não têm mais o suficiente para alimentar seus filhos.
Qual é a alternativa?
Abolir os mecanismos que matam. Todas as bolsas de valores estão reguladas normativamente. Não há obstáculos legais para uma lei. Amanhã mesmo, os parlamentos podem introduzir um artigo que proíba a especulação na bolsa com os alimentos básicos. Isso salvaria centenas de milhares de pessoas. Nosso mundo está dominado por uma ordem canibal.
No ano passado, as 500 maiores empresas privadas continentais de todos os setores controlavam 52,8% do PIB mundial, mais da metade da riqueza produzida em um ano no planeta. Estas empresas são dirigidas por uma oligarquia que tem mais poder financeiro, econômico, político e militar que os Estados mais poderosos.
Possuem apenas uma estratégia: a maximização dos lucros em um tempo recorde, sem importar as consequências para os seres humanos. A esta ordem canibal se opõe a sociedade civil, que funciona sobre a base dos princípios da solidariedade, reciprocidade e complementaridade entre as pessoas.
A sociedade civil é capaz de mudar a situação?
A impotência não existe em uma democracia. Todo cidadão tem os meios para forçar seu governo a abolir esse mecanismo assassino. Estamos em uma luta paroxística. É importante criar consciência. Cada um de nós é responsável por cada criança que morre de fome.
A boa notícia é que, apesar da volta à atitude do “salve-se quem puder” provocada pela pandemia, cada vez mais pessoas estão acordando. Isso levou a um tremendo aumento do pensamento normativo, na luta pelo direito à alimentação, água, moradia, saúde, educação, etc.
Muitos jovens se perguntam a respeito de seu futuro, sobre o legado dos adultos, sobre as capacidades da ONU. O que gostaria de dizer a eles?
A ONU é a guardiã da ordem normativa do planeta. A Carta e a Declaração dos Direitos Humanos são o horizonte de nossa história. Sem o respeito a todos os direitos, sem a segurança coletiva, sem a igualdade soberana de todos os Estados, não há civilização possível. Isso também se aplica à luta pelo clima.
Se permitirmos que as companhias petrolíferas ganhem milhares de milhões, que as perfurações sejam multiplicadas, que aumente a produção de combustíveis fósseis, caminhamos para a destruição do planeta.
Cabe aos jovens impor os objetivos precisos que os governos do mundo estabeleceram para 2030 através de todos os meios oferecidos por uma sociedade democrática aberta: desobediência civil, insurreição das consciências, mobilização, luta sem concessões.
Não estamos na terra por acaso ou por acidente, cada vida tem um sentido, a história tem um sentido. No romance de Dostoiévski, Ivan Karamázov diz: “Cada um é responsável por tudo, antes que os outros”.
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“Cada um de nós é responsável por cada criança que morre de fome”. Entrevista com Jean Ziegler - Instituto Humanitas Unisinos - IHU