01 Outubro 2021
“Lutamos pela sustentação de um sistema que progride em direção aos seus limites. E nessa luta aparecem elites suicidas que são capazes de arrasar seus países para sustentar o modelo que foi muito bom para elas. Tudo menos parar, refletir e avaliar se já não estamos mesmo diante do fim de um modelo econômico, energético, ecológico e social”, escreve Marina Echebarría Sáenz, professora de Direito Mercantil da Universidade de Valladolid, em artigo publicado por Ctxt, 29-09-2021. A tradução é do Cepat.
Se você, querido leitor, é uma pessoa que acompanha habitualmente a imprensa, certamente terá observado a proliferação no uso jornalístico de uma palavra: crise. Provavelmente tenha se cansado de ler artigos sobre a crise do preço da energia e, se é inquieto, certamente terá ouvido que também há uma crise energética em países como o Brasil, Madagascar, Líbano... ou, sem mais, que os preços estão disparando por toda a Europa.
Talvez você, como eu, more em uma cidade com fábrica de automóveis onde a cadeia de produção foi encerrada pela crise dos semicondutores. Talvez você trabalhe na construção e, então, ouvirá falar a respeito da crise de abastecimento de materiais e comprovará que há vários meses compramos tábuas, vigas, etc., com o preço aberto, porque não há suprimentos suficientes.
Para aqueles que lidam com o setor agrícola ou se preocupam com a ecologia, ocorrem a crise do café, a crise dos preços dos cereais... Existem para todos. Se o que lhe traz preocupação é o panorama da humanidade, certamente ouvirá falar da crise de alimentos na África, de sua crise de recursos e da conseguinte crise de emigração que também sentimos deste lado da costa.
Espere mais alguns dias e vão dizer para você sobre a crise dos brinquedos de Natal. O estranho é que raramente vão dizer para você que todos esses fenômenos não estão isolados e que, na verdade, você, todos nós estamos vivendo uma crise de sistema.
Talvez o que acontece é que o nosso modelo econômico se baseou na extração em grande escala de recursos naturais (fundamentalmente petróleo, metais, cereais...) para integrá-los a um sistema de produção cada vez maior e eficiente, o que por sua vez exigia uma sociedade consumista para dar saída a esses imensos estoques de produção.
Um modelo que também se baseava na livre circulação de capitais e recursos materiais, buscando aproveitar as assimetrias de riqueza entre as diferentes regiões do planeta. Ou, caso prefira, no qual as regiões pobres forneciam matérias-primas abaixo do custo e produziam barato e em grande escala para as regiões mais ricas.
E é preciso dizer que esse modelo provocou um grande desenvolvimento econômico e nos deu a ilusão, que muitos teóricos do neoliberalismo alimentaram, de que era possível um progresso econômico exponencial, ilimitado e permanente. A mão sábia do mercado iria distribuindo a riqueza entre os operadores econômicos e os cidadãos em uma progressão social eterna.
Então, as dinâmicas geram sua própria realidade. Uma economia baseada em energia fóssil provoca grandes massas de poluição, que por sua vez levam a mudanças climáticas com maior abundância de desastres naturais e uma expansão da seca. As próprias fontes de energia fóssil se veem, pouco a pouco, forçadas ao seu limite natural e começam a tornar imperiosa a busca por novas fontes, mas implementá-las entra em conflito com o setor energético já estabelecido, que almeja continuar controlando o mercado.
Essas mesmas mudanças climáticas impõem uma crise de produção de energia elétrica em países como Brasil ou Madagascar, efeito que se vê agravado se você queimou ou cortou grandes quantidades de florestas para plantar soja, o que acentua a seca, que de passagem já afeta outros cultivos, como o café ou o chocolate, que precisavam da floresta e da umidade anterior para prosperar.
Por certo, essas mesmas mudanças climáticas nos levam a uma progressiva mudança nas correntes marinhas e a que em nosso país [Espanha] aumentem as tempestades provenientes do sul, com água mais quente e gotas mais pesadas, que penetram mais nas praias do norte, o que mata o berbigões, e você já tem, se preferir, a crise das mariscadoras (uma saudação às mariscadoras de O Grove).
A produção em grande escala em países baratos como a China nos leva, por outro lado, à concentração da extração de metais e terras raras para suas grandes fábricas e à necessidade de transportar grandes quantidades de mercadorias de um extremo a outro do planeta. É que transportamos tudo! Da sua televisão às uvas chilenas que você come ao meio-dia.
Na medida em que a renda é um pouco redistribuída, a China se incorpora ao processo de consumo e se cria outro gargalo. Os níveis de consumo global aumentam, não falta apenas energia, faltam minerais como cobre, zinco, ferro... e se desencadeia uma luta feroz pelas escassas terras raras necessárias para a alta tecnologia, como o coltan ou o lítio. Curiosamente, você observará que os países produtores dessas terras raras com frequência entram em guerra ou sofrem golpes de Estado...
Com a pandemia, a generalização da tecnologia, a incorporação ao mercado capitalista de grandes massas populacionais, com a contínua redução dos recursos naturais, enquanto a produção chega a seus limites, a necessidade de consumo dispara e os preços dos insumos suprimentos e do transporte sobem a máximos inéditos. Um contêiner custava 1.800 dólares no ano passado, agora custa 5.200. Um frete marítimo custava em média 1.000 dólares em janeiro, hoje 2.900, já muito distante dos 500 que custava há apenas dois ou três anos.
Se a China tem que ser abastecida no mesmo nível que os países mais gastadores (por que não deveria ser, se é quem produz tudo?), não existem metais suficientes, e não pode mais exportar sua produção praticamente na totalidade. A necessidade de consumo interno de cereais, materiais e produtos de consumo encarece os preços, obriga a uma escolha sobre o quanto se exporta para não afundar o mercado global externo e o quanto se abastece o mercado interno para não provocar uma ruína doméstica.
Isto nos leva à crise de abastecimento no ocidente, à escassez de semicondutores, ao aumento dos alimentos básicos e faz com os países que importam seus produtos e seus alimentos observem como os preços disparam com a consequente crise social. Se enviar para você algumas uvas do Chile custa o triplo, nem todos podem pagar o preço. Se não é possível enviar semicondutores para a sua fábrica porque precisamos utilizá-los para a tecnificação do 5G na China, mesmo sendo de uma multinacional poderosa, descobre que possui pés de barro. Se o brinquedo que seu filho pede precisa de um chip que não pode ser encontrado, suportará o choro de seu filho quando substituir o robô max por um bonito brinquedo de plástico.
É claro, o sistema sabe reagir e reage. Estão sendo construídas grandes fábricas de semicondutores na China e nos Estados Unidos. Blocos como a União Europeia destinam vários milhares de milhões à luta pela liderança tecnológica e para o fomento da produção própria. São apressadamente construídos gigantescos navios porta-contêineres, com o inconveniente de que nem canais como o de Suez, nem a maioria dos portos, podem com eles, mas não importa, rapidamente empreendemos gigantescas reformas de infraestruturas.
Colocamos datas para o fim da crise. A dos semicondutores será solucionada entre um ano e meio e dois anos. A do transporte marítimo em dois anos... A crise dos cereais é enfrentada cortando mais florestas e abrindo novos campos de cultivo em grande escala...
Lutamos pela sustentação de um sistema que progride em direção aos seus limites. E nessa luta aparecem elites suicidas que são capazes de arrasar seus países para sustentar o modelo que foi muito bom para elas. Tudo menos parar, refletir e avaliar se já não estamos mesmo diante do fim de um modelo econômico, energético, ecológico e social.
É que falar de uma crise de sistema incomoda muito. Enfrentar problemas isolados, delinear respostas rápidas aos diferentes gargalos que vão surgindo nos oferece uma ideia de dinamismo e eficácia, estamos fazendo algo, triunfamos! Ao passo que se colocarmos nossas diversas crises em contato, se concebermos o que acontece como uma falha estrutural, as perguntas que devemos nos fazer são inquietantes e, sobretudo, as respostas são incômodas para os atores econômicos, para o poder político e até para nossas pequenas pretensões de viver como vivemos a nossa vida toda e exercer o nosso direito de tomar uma cerveja no bar da vez.
Em minha humilde forma de ver, podemos nos empenhar em prolongar uma dinâmica de respostas pontuais para as “crises pontuais”, negar que estejamos diante dos limites de uma economia baseada no crescimento perpétuo e de uma crise do sistema extrativo, ou podemos admitir que os recursos de nosso planeta já são medidos e limitados, que não é possível um crescimento eterno dos índices econômicos e do consumo e incorporar em nossa linguagem e em nossa ação política palavras como sustentabilidade, economia circular, decrescimento dos recursos, economia de proximidade...
Não sou muito otimista em pensar que veremos uma reação rápida de nossos líderes sociais e econômicos. Não acredito que nossas universidades irão se tornar críticas da noite para o dia em relação ao modelo econômico que ensinamos a nossos jovens. Mas talvez, se todos nós começarmos a falar de uma crise de sistema, acabaremos demandando respostas a longo prazo, por admitir nossas limitações e por exigir de nossos dirigentes que não atuem como bombeiros incendiários.
Enquanto isso, que fique claro para você, a do próximo mês não será a crise de escassez dos brinquedos de Natal, é que a mariposa que não esvoaça mais na floresta brasileira nos levou a uma crise de sistema.
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É uma crise de sistema - Instituto Humanitas Unisinos - IHU