“É a vez dos indígenas e, mais ainda, é a vez das mulheres indígenas”. Entrevista com Elisa Loncon

Bandeira Mapuche (Fonte: Wikimedia Commons)

29 Setembro 2021

 

No que era antes o Congresso Nacional, localizado no centro de Santiago do Chile, agora se reúne a Convenção Constitucional. O edifício foi o lugar onde deputados e senadores se reuniram de 1876 a 1973, quando a ditadura no Chile assolou partidos políticos, a democracia e milhares de vidas. Hoje, nesse mesmo lugar, debate-se como acabar com o último legado de Augusto Pinochet e redigir uma nova constituição política. A líder mapuche Elisa Loncon preside a convenção que realizará essa histórica tarefa.

 

A enorme escrivaninha de seu escritório está iluminada pela luz que entra por uma grande janela voltada para o leste, onde o sol nasce em Santiago. Essa luz ilumina seu computador, uma impressora cheia de papéis, flores sempre naturais, mas também os tesouros mapuche que ocupam uma pequena parte do espaço: um metawe – uma espécie de cântaro -, alguns livros sobre a identidade de seu povo, e ela, sentada atrás da escrivaninha. Embora os símbolos se destaquem em sua mesa, os emblemas mais importantes são os utilizados por ela.

 

Elisa Loncon chega a muitas das sessões da convenção – que preside há pouco mais de dois meses – com roupas que, segundo a tradição de seu povo, simbolizam a força da natureza, a fertilidade, a terra e a chuva. Como vestido usa um Kvupan preto e um Xariwe, que é uma faixa com símbolos de oração. No centro do peito, também carrega um grande círculo de prata como proteção que, talvez, tenha lhe servido de escudo, pois embora tenha sido eleita presidenta da convenção por 96 de seus 155 colegas, constantemente enfrenta duros questionamentos. “Precisamos fazer essa transformação, mudar o modelo social, econômico e político e queremos fazer isso incorporando todas as minorias para construir um novo Chile”, diz.

 

Nos anos 1980, Elisa Loncon fez parte da organização Admapu, que buscava reivindicar os direitos originários em meio à ditadura. Nos anos 1990, fez parte do Conselho de Todas as Terras, que entre seus marcos conta com a criação da bandeira mapuche como uma forma de manifestar a identidade desse povo.

 

A entrevista é de Alejandra Carmona López, publicada por Ojo Público, 26-09-2021. A tradução é do Cepat.

 

Eis a entrevista.

 

Por que foi tão difícil manifestar essa identidade?

Pelo próprio processo colonial. Não tivemos autonomia e menos autodeterminação dentro dos marcos estruturais do Estado. Sempre fomos marginais. O que o Estado oferece, até agora, é que é possível participar, mas dentro da estrutura do Estado, claro, não a partir de uma forma de organização própria.

 

Surgiram diferentes movimentos sociais e políticos na América Latina. Apareceram no Chile, mas também no Peru e na Colômbia. Em todos eles, há uma reivindicação aos povos indígenas. A que você atribui isso?

O que acontece é que a partir de 1992 se instala a emergência indígena e, nesse ano, se estabelece um foco revolucionário na América Latina. O indígena integrou essa batalha em função dos direitos dos mais explorados.

 

Como isso foi vivido no Chile?

Aqui, no Chile, aconteceu o processo da Unidade Popular. Os mapuche aproveitaram a conjuntura para avançar na recuperação de terra, mas a condução do processo fazia parte da esquerda revolucionária chilena. Esta também tinha uma visão colonial em relação ao mundo indígena.

As propostas revolucionárias também iam nessa direção, tirar os indígenas da pobreza para entrar no mundo do desenvolvimento, sei lá, um desenvolvimento socialista, talvez coletivo. Era o desenvolvimento em termos de melhorar as condições de trabalho, mas sem as demandas mais profundas para manter um pensamento próprio, manter a forma de entender a terra como o espaço também espiritual para a vida, mas sempre como um recurso humano explorável para o bem do ser humano.

 

Ou seja, mesmo no governo de Salvador Allende seus direitos não foram contemplados.

Não foram incluídos os direitos da natureza, por exemplo. Eles não foram compreendidos, nem problematizados. Então, a partir dessa experiência, os povos indígenas compreendem que o pensamento revolucionário também tem uma base eurocêntrica que não refletia o pensamento dos indígenas.

Não é que os indígenas fossem contrarrevolucionários. Os indígenas, ao menos no Chile, demonstram um forte compromisso como o governo da Unidade Popular, porque ele permitiu, de alguma forma, recuperar terras. No entanto, não recuperamos o conceito e nem a dignidade mais profunda do que significa ser indígena. Nisso não se conseguiu avançar; e na ditadura, menos.

 

E com o retorno da democracia?

Aí a população indígena foi entendida como um grupo que iria entregar votos para um setor ou outro, liderado pelos partidos políticos tradicionais e com base eurocêntrica, de esquerda, direita ou de centro. Continuam sendo pensamentos que vêm e que valorizam a filosofia europeia.

A emergência de movimentos sociais na América Latina, hoje, tem a ver com demandas por direitos sociais, porque o neoliberalismo forte se instalou no Chile e em todos os países. Diminuíram os direitos sociais, mas também há uma crítica mais profunda ainda, ou seja, o que fazemos em relação à crise generalizada? A crise do meio ambiente, por exemplo.

 

Qual é o momento político vivido pelo povo indígena da América Latina em relação às reivindicações sociais, culturais, econômicas, ambientais?

Ocorreram processos interessantes. Por exemplo, para nós foi muito interessante o triunfo do governo de Evo Morales, como o primeiro indígena que chegou à Presidência da República, isso trouxe dignidade a todos os povos e admiração pelo que conseguiram. O que aconteceu no Equador também foi importante, mas os dois movimentos entraram em crise pelo modelo econômico neoliberal. O que se avançou no Equador, depois foi destruído. Não conseguiram equilibrar as forças políticas.

Há um movimento indígena forte, mas há um tema que não conseguem superar: o modelo econômico. E isso foi dito pelos próprios indígenas. Não se avançou em incorporar traços do modelo econômico indígena, por exemplo, o mais coletivo, o mais comunitário. Aqui, no Chile, nós, povos indígenas, somos minoria. Lá, são maioria. Não sabemos quanta força conseguiremos abrigar para fazer mudanças.

 

Como essa presença indígena lida com um discurso de ódio e de uma parte da direita recalcitrante na América Latina?

É daninho. Prejudica e maltrata profundamente a presença indígena. No entanto, também é preciso assumir que há uma vontade majoritária em incorporar os indígenas. Por isso, estamos aqui. Eu cheguei aqui por votação, foi o povo do Chile que votou para que eu fosse a presidenta. Ou seja, há maior reconhecimento de nossa incidência política e da incidência das mulheres indígenas.

No entanto, o discurso de ódio e racismo tem a ver com a educação, com o modelo colonial que está instalado endemicamente no nascimento da república. Todas as repúblicas latino-americanas têm o colonialismo instalado, essa visão de que o indígena é atrasado, que se opõe ao desenvolvimento.

A nova Constituição terá que gerar futuras leis que permitam ter uma educação pública de qualidade e também antirracista, porque isso tem a ver com a formação que a sociedade chilena recebeu. Muita ignorância sobre quem são os povos originários, nossas contribuições, nosso jeito de ser.

 

Considera que é importante que os povos indígenas se articulem na América Latina, nesse momento em que há tanta efervescência social?

Eu estive ligada a um movimento de mulheres no Peru, que é o Chirapaq (Centro de Culturas Indígenas do Peru). Há muitas lideranças importantes, mas conheço muito bem Tarcila Rivera Cea, uma liderança quéchua com quem participei de eventos internacionais. Ela esteve em várias oportunidades no Chile e eu fui a Lima.

Trabalham com as mulheres e potencializam a liderança feminina de mulheres muito jovens. Sempre conversamos com elas e estamos participando de organismos internacionais indígenas. Compartilhamos posições, visões sobre as mulheres e sua luta.

Eu acredito que, em nível de continente, é a vez dos indígenas e, mais ainda, é a vez das mulheres indígenas. Não é por acaso que eu sou a presidenta da convenção, porque aqui há um movimento feminista e porque, desde sempre, existiu um movimento de resistência indígena forte no qual também me formei.

 

Seria possível afiançar muito mais ou fazer crescer essa articulação indígena na América?

A América Latina requer a incorporação da diversidade de línguas, diversidade de povos e de conhecimentos como contribuições para o futuro. O pensamento eurocêntrico está em crise porque não resolveu os problemas que nos prometeram: desenvolvimento e futuro.

Esse desenvolvimento nunca chegou, mas, ao contrário, o que veio? A pandemia e a morte. Já morreram muitos indígenas pela Covid, nesse último período. Diante dessa visão, nós éramos obstáculos para o desenvolvimento, mas isso foi uma falácia, porque veio a crise, não houve vacina, as pessoas começaram a morrer, o que se soma a todos os problemas ambientais, estruturais e econômicos.

 

Como se supera, do ponto de vista indígena, essa sociedade em crise?

É aí onde está o chamado que eu faço a todas as nações originárias do continente, às mulheres originárias. Elas têm maior sabedoria, inclusive, maior que a dos homens, mas devido ao patriarcado instalado pela sociedade capitalista, essa liderança ficou em segundo plano. As mulheres indígenas também tiveram que esperar a sua vez para gerir a política de seus respectivos países e povos.

 

De que maneira o pensamento indígena e o não ocidental latino-americano pode ser útil para propor soluções ou saídas a momentos de crise como a que o mundo vive agora?

Eu acredito, por exemplo, que aqui no Chile houve um processo bem interessante a partir da deflagração social. Foi gerado pelo povo do Chile, os povos do Chile, incluindo indígenas, regiões e jovens. Esse povo, por uma decisão autônoma, foi às ruas para se manifestar contra o modelo econômico neoliberal no Chile, ninguém nos mandou.

Esse povo foi às ruas e disse: “basta, aqui, é preciso mudar a Constituição”, mas não só isso, também sai desencantado com a democracia pactuada, porque aqui no Chile, durante os 30 anos posteriores à ditadura, viveu-se uma democracia onde a elite política pactuou com os militares, pactuou com o modelo econômico para manter uma democracia excludente.

Houve também uma crise de representação política: o Parlamento, o Senado e o Governo já não representavam os interesses desse povo e não havia mais identificação com esse poder, porque esse poder negociou contra o povo. E o que aconteceu? O povo do Chile assumiu, por exemplo, a bandeira mapuche como estandarte de resistência.

 

Isso foi simbólico...

Simbólico! Em termos de que esse povo pôde ler que os mapuche e ele estavam sendo oprimidos. Houve uma leitura comum de entendimento de que a luta mapuche, a do povo do Chile, das mulheres, dos jovens, tinham o mesmo propósito. Eu acredito que minha nomeação tem a ver com a continuidade disso.

Após esse reconhecimento, quem teria que dirigir essa convenção deveria ser uma mulher, e uma mulher indígena. Então, o movimento social, político, na América Latina, tem essa riqueza. Ainda existe a diversidade para dialogar, para enriquecer os movimentos e para sair de maneira conjunta, para nos unir mais do que nos dividir, para somar as lutas contra um mesmo sistema opressor.

 

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