04 Setembro 2021
As Irmãs do Imaculado Coração de Maria se levantaram em nome de si mesmas e da justiça social na vibrante cultura de Los Angeles dos anos 1960 (Foto: YouTube)
"Visualmente encantador e profundamente comovente, o filme “Rebel Hearts” [Corações rebeldes] nos leva em uma jornada por um momento singularmente importante na história católica moderna".
O comentário é de Anna Harrison, professora do Departamento de Teologia da Loyola Marymount University, nos Estados Unidos, que está trabalhando atualmente em um livro sobre o paradoxo no pensamento do monge Bernardo de Claraval, do século XII. O artigo foi publicado em Commonweal, 20-08-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Usando uma ampla variedade de fontes, incluindo imagens de arquivo da televisão e entrevistas individuais, e saturado com as cores do poder da Pop Art, incluindo a engenhosa animação de Una Lorenzen (pense em um encontro entre Yellow Submarine e Madeline), o filme conta a história das irmãs da congregação do Imaculado Coração de Maria (IHM) de Los Angeles, responsáveis por educar milhares de crianças no sistema escolar católico durante o boom populacional da cidade no pós-guerra.
O filme retrata as irmãs trabalhando em condições de exploração, eventualmente entrando em conflito com o “cardeal da educação” inflexível e parcimonioso da sua diocese, James Francis McIntyre, cuja autoridade eclesial oprimia e feria as mulheres, assim como a inteligência e os princípios delas.
Lideradas pela sua astuta e corajosa madre geral, Anita Caspary, durante seus anos mais tumultuados (1963-1973), as irmãs mantiveram-se firmes tanto ao seu compromisso com o papel da consciência na vida religiosa quanto à sua confiança na retidão da sua própria tomada de decisões.
Elas chamaram a atenção nacional pelo modo como a história delas se desenrolou contra o pano de fundo dos choques culturais mais amplos do movimento feminista e por ajudarem a alimentar a renovação associada ao Concílio Vaticano II.
“Rebel Hearts” oferece uma amostra da revolução cultural dos anos 1960 e 1970 vivida por um grupo extraordinário de mulheres aninhadas no coração de Hollywood. Sem sacrificar as particularidades do seu relato, o filme transmite ainda o poder universal da coragem e da criatividade para acender e sustentar vidas individuais e comunidades.
Com uma produção de 20 anos, “Rebel Hearts” foi concebido pelo produtora Shawnee Isaac Smith, que coescreveu o documentário com Erin Barnett (ele é dirigido por Pedro Kos).
Apesar da sua longa gestação, ele nunca se mostra envelhecido, graças ao fácil desdobramento do seu arco narrativo.
Isso ocorre em parte porque o filme persuade que personalidades individuais o assistam por meio de uma série de entrevistas, algumas realizadas por grandes personalidades das redes de televisão dos anos 1960 e 1970, quando as Irmãs do Imaculado Coração de Maria alcançaram algo como um status de celebridade, e algumas realizadas mais recentemente por cineastas.
Assim, ouvimos as irmãs em vários momentos da sua juventude, meia-idade e velhice, com uma intimidade reservada mais frequentemente à família.
Ficamos sabendo com Caspary que ela era aluna do Imaculate Heart College, dirigido pelas irmãs, onde suas professoras se tornaram suas modelos. Depois de se formar em 1936, ela se juntou à congregação e recebeu seu doutorado em Língua Inglesa pela Universidade de Stanford.
Há uma longa história de mulheres como Caspary, para as quais as comunidades religiosas femininas eram um casamento e uma maternidade alternativos, oferecendo, em vez disso, oportunidades de educação e apoio para carreiras intelectuais.
Mas a fantasia de uma vida da mente expansiva ficou comprometida para Caspary e para muitas das suas irmãs: a liberdade em relação a uma presença masculina controladora permaneceu distante da sua realidade cotidiana, já que a tão ansiada vida da mente era minada pelo implacável tédio das obrigações domésticas e a sede de investigação espiritual era entorpecida pelo aprendizado mecânico.
As entrevistadas relatam longas horas de trabalho polindo, limpando e decorando o Catecismo, uma sequência de tarefas em que cada uma era tão esgotante quanto a outra.
Os cineastas justapõem fotos em preto e branco das irmãs em hábitos compridos, com seus coifes e véus no lugar, com anúncios em revistas coloridas de mulheres vestidas como felizes donas de casa, com batas com corpete e brandindo espanadores com desenvoltura.
O filme apresenta seu ponto central: as freiras trocavam uma autoridade por outra; as mulheres devem servir aos homens, com as vestes de sua preferência, escondendo o corpo ou modelando-o, dependendo das propensões masculinas.
“Rebel Hearts” retrata a comunidade se posicionando contra McIntyre, que era um corretor na Bolsa de Valores de Nova York antes de entrar no sacerdócio e levou o conhecimento de Wall Street consigo para Los Angeles, supervisionando o crescimento sem precedentes no número de paroquianos e nas matrículas nos colégios católicos.
As irmãs do Imaculado Coração de Maria eram a maior parte das professoras dos colégios.
Como uma força de trabalho barata e – McIntyre deve ter suposto – dócil, elas frequentemente lecionavam para 70 ou 80 crianças em cada sala de aula.
A maioria das mulheres não tinha formação nem experiência.
Segundo uma irmã, tudo o que elas sentiam era derrota.
“Eu acho que o cardeal McIntyre via as mulheres, pelo menos as freiras, como uma mão-de-obra barata para as suas escolas”, observou uma irmã, enquanto a tela exibe um cartum que retrata as freiras colocadas em uma esteira rolante, como bonecas produzidas em massa.
“Demo-nos conta de que o nosso problema trabalhista estava na raiz de tudo o mais (...) Posso ouvir o cardeal nos dizendo: ‘Vocês não vão me dizer como administrar as minhas escolas’”, lembra outra irmã.
As mulheres permaneceram firmes na defesa por melhores condições de trabalho, incluindo turmas menores e maior apoio institucional, alimentando a raiva do seu chefe.
Um espírito diferente, de apoio mútuo e de pesquisa aberta, reinava no Imaculate Heart College, administrado pelas irmãs, cujo corpo docente totalmente feminino tinha mais diplomas do que todos os padres da Diocese de Los Angeles, e que assumiram sua tarefa de pesquisadoras e educadoras com uma confiança e uma ambição que ameaçavam o clero.
Fotografias e filmagens em salas de aula cheias de instrumentos de investigação e criação – aparatos científicos, livros, instrumentos musicais, pincéis – transmitem a exuberância que acompanha o amor ao aprendizado, que as irmãs cultivavam e que alimentava a vida devocional da comunidade.
Estudantes e professoras colaboravam para substituir as sisudas procissões da Festa de Assunção por uma barulhenta festa ao seu papel na recreação. “Deus gosta de mim”, proclama uma placa com letras rosa-choque.
“Paz, paz, paz”, diz outro cartaz, enquanto mulheres com hábitos completos e coroadas com grinaldas de flores dedilham violões ao lado de seus alunos, vestidas com tons roxos, azuis e amarelos gritantes, e agitando girassóis de papel gigantes, todos disputando a nossa atenção, contra o pano de fundo uma paisagem do sul da Califórnia com palmeiras e pinheiros, proclamando juntos a grandeza da criação e celebrando a criatividade humana.
“Naqueles dias, eu estava cercada por algumas das melhores mulheres que você poderia conhecer (...) Tenho certeza de que, se eu fosse uma dona de casa recatada e decente, eu não teria topado com nenhuma dessas ideias”, diz Corita Kent, contemporânea de Caspary e membro mais conhecida da comunidade, que ensinou seus alunos a explorarem supermercados em busca de material, a explorarem o significado da banalidade cotidiana e a se maravilharem com as joias escondidas na paisagem de Los Angeles, repleta de postos de gasolina e garagens.
Embora o jornal Los Angeles Times tenha saudado Kent como uma de suas “Mulheres do Ano” de 1966, e a revista Newsweek a colocou na capa – “A freira que se moderniza” – em 1967, ela foi ofuscada no campo da arte por “meninos grandes” como Andy Warhol e Robert Indiana.
Capa da revista Newsweek de 1967, com a freira Corita Kent (Foto: Newsweek)
“Mary Mother is the juiciest tomato of all” [Mãe Maria é o tomate mais suculento de todos], sua deixa sobre o slogan da marca Del Monte, é uma ampliação das telas “Campbell Soup” de Warhol, uma obra repleta de textos sobre a renovação eclesial, em serigrafia nas cores vermelha, amarela, laranja e branca.
“Mary Mother is the juiciest tomato of all”, serigrafia de autoria da freira Corita Kent (Foto: Harvard Magazine)
A obra foi um ponto de ruptura para McIntyre, com sua mistura do mundano e do sagrado sendo vista como uma afronta à sensibilidade asseadamente organizada dele.
“Vocês vão sofrer” por causa disso, prometeu ele à congregação, um dos vários momentos de prender o fôlego que esse filme proporciona.
Energizadas por uma atenção crescente ao mundo ao seu redor, as irmãs levaram para fora da faculdade o seu entusiasmo ao se envolverem com isso.
Um clipe as captura dançando com seus alunos entre as estrelas da Hollywood Boulevard. “Talvez tudo o que há de terrível”, afirma uma das serigrafias de Kent, citando Rilke, “seja, em seu ser mais profundo, algo que pede a nossa ajuda.”
Ela e suas irmãs responderam às demandas contemporâneas por justiça marchando em Selma em 1965, protestando contra a Guerra do Vietnã e dando as mãos aos trabalhadores rurais da Califórnia.
A “faculdade sempre proporcionou uma educação alternativa”, ouvimos uma irmã dizer, “mas foi nos anos de 1963 a 1970 que tudo estourou”. Os católicos mais fortemente presos às armadilhas da tradição começaram a manter suas filhas longe da faculdade.
O filme apenas aponta para o contexto católico de Los Angeles mais amplo do ativismo das irmãs e do engajamento político que as Irmãs do Imaculado Coração inspiraram. Um artigo do National Catholic Reporter sugere o poder das palavras e do exemplo das irmãs.
Sue Walsh, formada pelo Immaculate Heart College e uma das muitas que condenou o descaso racista de McIntyre pelos seus paroquianos negros, relembra o envolvimento dela com o grupo Catholics for Racial Equality: “Fizemos manifestações, sit-ins e até uma procissão de tochas na frente da casa do cardeal (...) Depois que eu apareci no noticiário da NBC naquela noite, eles enviaram dois padres à minha casa procurando por mim. Foi algo maluco. Dos seus púlpitos, eles nos chamavam de comunistas e de agitadores externos. Nós estávamos simplesmente pondo em prática aquilo que aprendemos nas instituições católicas”.
As atividades intelectuais e artísticas das professoras (as irmãs obtiveram verbas federais para suas pesquisas científicas e gravaram o trio de piano nº 2 em Mi bemol maior de Schubert pela Capitol Records, enquanto o pavilhão do Vaticano na Feira Mundial de 1964-1965 apresentou um mural de Kent com mais de 12 metros de largura) geravam uma atenção generalizada.
Isso, somado ao ativismo político das irmãs, enfurecia o seu arcebispo cada vez mais hostil.
Em resposta ao apelo do Vaticano às ordens religiosas para que examinassem seu estilo de vida, as mulheres se engajaram em um processo de discernimento comunitário, culminando em uma votação para tornar opcional o uso do hábito, reduzir o tamanho das turmas, se comprometer com a formação docente e manter a flexibilidade nas práticas de oração.
As irmãs “se afastaram da autoridade, e esse era realmente o problema”, diz o Mons. Clement Connolly, ex-secretário de McIntyre, e ficamos com a sensação de que Connolly se compraz ao dizer sobre o seu ex-chefe: “Aquele cardeal não ia tolerar aquelas mulheres arrogantes”.
McIntyre logo convocou uma delegação vaticana para investigar a congregação (isso pode trazer à mente de alguns a visita do Vaticano a todas as casas religiosas femininas estadunidenses em 2013, o que causou arrepios em muitas comunidades).
Quando as Irmãs do Imaculado Coração se recusaram a ceder, McIntyre as removeu dos seus cargos de ensino, um tiro dirigido contra todas as religiosas de forma mais ampla. A mensagem dele foi clara: não desafiem a autoridade eclesial.
O arcebispo tinha motivos para se preocupar, e o seu ataque às professoras e seus estudantes (muitas das escolas que as irmãs administravam fecharam, e os mais pobres foram os mais atingidos) renderia frutos de descontentamento e rebelião.
A congregação posteriormente se dividiu. Uma minoria permaneceria sob a autoridade da arquidiocese, enquanto mais de 300 irmãs do Imaculado Coração solicitaram a dispensa de seus votos.
Um contingente de mais de 200 ex-irmãs do Imaculado Coração estabeleceu a Imaculate Heart Community (IHC), uma comunidade ecumênica cristã leiga que celebrou seu 50º aniversário em 2020.
A IHC, que toma Maria como seu modelo em seu compromisso com o mundo, continua sendo uma presença vibrante na órbita religiosa, cultural e política de Los Angeles.
Mesmo enquanto o filme concentra seu foco na IHC e nas ex-irmãs, as Irmãs do Imaculado Coração continuam gerando manchetes.
Bem a tempo para o lançamento de “Rebel Hearts”, o Conselho Municipal de Los Angeles atribuiu um status de monumento cultural histórico ao despretensioso edifício bege que era o estúdio de Kent em Hollywood.
Uma história contada de forma mais ampla foi o processo movido pelas irmãs Rita Callahan e Catherine Holzman, do Imaculado Coração, contra o arcebispo de Los Angeles, José Gomez, em 2015, envolvendo a venda por parte da arquidiocese, no valor de 14,5 milhões de dólares, do convento das Irmãs do Imaculado Coração, de 2.000 metros quadrados, para a pop star Katy Perry.
As irmãs alegaram que não cabia à arquidiocese vender a propriedade. Holzman morreu durante uma audiência no tribunal em 2018, e o tribunal, por fim, decidiu favoravelmente a Gomez.
“Em certo sentido, sempre estivemos em apuros”, afirma uma ex-irmã do Imaculado Coração, com 60 e poucos anos, em “Rebel Hearts”.
Ela está certa: décadas de obediência não forneceram nenhuma proteção a Callahan e Holzman quando ousaram questionar a autoridade do arcebispo. De acordo com Callahan, Holzman passou seus últimos anos de vida esmagada pela pobreza – a diocese, e não Holzman, tinha controle sobre a sua conta bancária, e ela vivia com dinheiro emprestado e dependia da caridade para se alimentar.
Mas este filme não é sobre Gomez ou McIntyre. “Rebel Hearts” despede o seu público de forma positiva e iluminada, já que o documentário borbulha de entusiasmo pela forma como as ex-irmãs do Imaculado Coração navegaram suas vidas para fora do convento e com o seu legado.
Os cineastas nos oferecem um passeio revigorante e cheio de alegria em homenagem a uma população feminina frequentemente difamada e rotineiramente desvalorizada.
No fim do documentário, encontramos Rosa Manriquez, um membro da IHC. Educada quando menina pelas irmãs do Imaculado Coração e graduada pelo Imaculate Heart College, Manriquez se casou e constituiu uma família antes de ser ordenada pela Roman Catholic Womenpriests.
Ela é uma das mais de 100 mulheres que desrespeitaram o decreto de 2007 da Congregação para a Doutrina da Fé, que proferiu a pena de excomunhão contra qualquer pessoa, “seja aquele que tenha tentado conferir a ordem sagrada a uma mulher, seja a própria mulher que tenha tentado receber a ordem sagrada”.
As irmãs do Imaculado Coração ensinaram Manriquez a seguir a sua consciência, e essa é a mensagem duradoura de “Rebel Hearts”.
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“Corações rebeldes”: a consciência, a liberdade e a confiança das religiosas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU