“A revolução digital abre um novo capítulo na história da humanidade que é tão importante quanto os seus antecessores agrícola e industrial. Desta vez, a revolução em curso, provocada por inovações tecnológicas extraordinárias no registro, distribuição e processamento automático de dados, está transformando o ambiente em que vivemos, representado cada vez mais pela infosfera; o modo como vivemos, que é cada vez mais onlife; e a nossa identidade, isto é, o modo como nos vemos e como nos relacionamos uns com os outros.”
A opinião é de Luciano Floridi, filósofo italiano e professor de Filosofia e Ética da Informação na Universidade de Oxford, onde dirige do Digital Ethics Lab.
Trata-se, continua o autor, “de uma revolução conceitual e cultural, que gera significativos desafios éticos e de gestão para a chamada governança da esfera digital. Superar esses desafios com sucesso significa combinar de forma construtiva e lucrativa o Verde de todos os espaços em que vivemos, sejam eles naturais ou artificiais, com o Azul de todas as tecnologias digitais disponíveis, do Big Data à inteligência artificial. Esse casamento entre o Verde e o Azul, junto com seus efeitos positivos na sociedade e no ambiente, é o projeto humano para o século XXI”.
O artigo foi publicado por Pirelli.com, 14-07-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Às vezes, esquecemos que a vida sem a contribuição positiva da política, da ciência e da tecnologia logo se torna “solitária, pobre, sórdida, bruta e curta”, para usar a famosa frase do Leviatã de Thomas Hobbes.
A crise da Covid-19 nos lembrou tragicamente de que a natureza pode ser implacável. Só a engenhosidade humana e o bom esforço podem salvaguardar e melhorar as vidas de bilhões de pessoas.
Hoje, grande parte desse esforço está sendo feito com o objetivo de alcançar uma revolução epocal: a transformação de um mundo exclusivamente analógico em um mundo cada vez mais digital. Os efeitos são visíveis por toda a parte: esta é a primeira pandemia em que um novo habitat, a infosfera, tem ajudado a superar os perigos da biosfera.
Há algum tempo, temos vivido de modo onlife (online e offline ao mesmo tempo), mas a pandemia tornou a experiência onlife uma realidade comum e irreversível.
Os fatores cruciais nesta significativa revolução incluem o poder enorme e cada vez mais acessível dos computadores, a conectividade cada vez mais difundida, as quantidades colossais de dados que continuam crescendo e, finalmente, a inteligência artificial cada vez mais efetiva.
De acordo com uma definição clássica, a inteligência artificial é a engenharia de artefatos que podem fazer coisas que exigiriam inteligência se as fizéssemos por nossa conta. Isso significa que a inteligência artificial não é um casamento entre computação e inteligência, mas sim o divórcio sem precedentes entre agência e inteligência, ou seja, entre a capacidade de completar tarefas ou resolver problemas com sucesso em vista de um objetivo e qualquer necessidade de ser inteligente para fazer isso.
Para jogar xadrez, mesmo que apenas para seguir as regras, eu preciso exercitar um pouco de inteligência, mas o meu celular pode me derrotar, mesmo que seja tão estúpido quanto uma torradeira.
Esse divórcio só se tornou possível recentemente, graças aos fatores mencionados acima – sobretudo as redes, a computação e os dados – além de instrumentos estatísticos cada vez mais sofisticados e da transformação de nossos habitats em locais cada vez mais compatíveis com a inteligência artificial. Quanto mais vivemos na infosfera e onlife, mais compartilhamos as nossas realidades diárias com agentes artificiais que podem realizar com sucesso um número crescente de tarefas.
A única coisa que pode limitar a inteligência artificial é a engenhosidade humana. Hoje, a inteligência artificial pode nos ajudar a conhecer, entender, prever e superar, cada vez mais frequente e efetivamente, os muitos desafios cada vez mais prementes que enfrentamos: as mudanças climáticas, a injustiça social, a pobreza global e a necessidade de atualizar as democracias liberais.
A gestão efetiva de dados e os processos por inteligência artificial podem acelerar o círculo virtuoso da inovação, os modelos de negócios, as empresas mais bem-sucedidas, a ciência mais avançada e políticas mais perspicazes, incluindo aquelas que formam a base da legislação.
No entanto, o conhecimento só é poder se for transformado em ação. Aqui também, a inteligência artificial pode ser uma força extraordinária para o bem, ajudando-nos a enfrentar problemas complexos, sistêmicos e globais. Não podemos resolver isso individualmente. Precisamos coordenar os nossos esforços (não atrapalhar uns aos outros), colaborar (cada um de nós deve fazer a sua parte) e cooperar (trabalhar juntos) cada vez mais frequente e efetivamente. E a inteligência artificial pode nos ajudar a desenvolver esses três Cs de forma mais eficiente (mais resultados com menos recursos), mais eficaz (melhores resultados) e mais inovadora (novos resultados).
Mesmo assim, há um “mas”: quando não orientada por bons propósitos, a engenhosidade humana pode ser perigosa. Se a revolução digital não for controlada e guiada de forma ética e sustentável, ela pode exacerbar os problemas sociais, do preconceito à discriminação; erodir a independência e a responsabilidade humanas; e piorar os problemas do passado, da distribuição injusta de custos e benefícios ao desenvolvimento de uma cultura da mera distração.
E a própria inteligência artificial corre o risco de se tornar não apenas parte da solução, mas também parte do problema. Portanto, boas leis internacionais, começando com as da União Europeia, são essenciais para assegurar que a inteligência artificial continue sendo uma força poderosa para o bem.
Quando usada para a criação e a distribuição de riqueza, para o bem da sociedade e a sustentabilidade ambiental, a inteligência artificial faz parte de um novo casamento entre o Verde de todos os nossos habitats – natural, sintético e artificial, da biosfera à infosfera, dos espaços urbanos às condições culturais, econômicas, sociais e políticas – e o Azul de todas as nossas tecnologias digitais, dos telefones celulares às plataformas de mídia social, da Internet das coisas ao Big Data, da inteligência artificial à computação quântica do futuro.
A pandemia foi o teste geral para aquele que parece ser o projeto humano para o século XXI, um divórcio bem-sucedido entre agência e inteligência e um casamento bem-sucedido entre o Verde e o Azul.
À luz desse casamento Verde e Azul, a sociedade da informação é mais facilmente entendida como uma nova sociedade manufatureira na qual as matérias-primas e a energia são substituídas por dados e informações, o novo ouro digital e a verdadeira fonte de valor adicional. Portanto, além da comunicação e das transações, a criação, o design e a gestão da informação são fundamentais para o correto entendimento da época em que vivemos e para o desenvolvimento de um ambiente melhor e mais sustentável.
Esse entendimento exige uma nova visão de quem somos hoje e do projeto humano que queremos perseguir. As revoluções anteriores na criação de riqueza, como as revoluções agrícola e industrial, levaram a transformações macroscópicas das nossas estruturas ambientais, sociais e políticas, muitas vezes sem níveis significativos de clarividência e com implicações conceituais e éticas de longo prazo e profundas.
A revolução digital é igualmente abrangente. Em consideração a essa importante mudança histórica, o objetivo é formular um marco ético e político que possa tratar a infosfera como o nosso novo ambiente. E a filosofia, como design conceitual, pode levar adiante essa aposta de atualizar a nossa perspectiva.
Galileu notoriamente sugeriu que a natureza é como um livro, escrito com símbolos matemáticos, a ser lido pela ciência. Em um mundo cada vez mais composto de 0s e 1s, hoje isso não soa mais como uma metáfora. As tecnologias digitais fazem cada vez mais sucesso nesse mundo, porque, como os peixes no mar, elas são os verdadeiros nativos da infosfera. Elas são mais capazes do que nós de realizar um crescente número de tarefas, porque os humanos são organismos analógicos tentando se adaptar a um habitat cada vez mais digital, assim como os mergulhadores de águas profundas.
Nesse sentido, agentes artificiais, sejam eles soft (como os aplicativos, os webots, os algoritmos e todos os tipos de software) ou hard (como os robôs, os carros autônomos, os relógios inteligentes e todos os tipos de gadgets), estão substituindo os agentes humanos em áreas que pareciam inacessíveis a qualquer tipo de tecnologia há apenas alguns anos. Tais áreas incluem a catalogação de imagens, a tradução de documentos, a interpretação de raios-X, a extração de novas informações de bancos de dados enormes e a escrita de artigos de jornal, para citar apenas algumas.
Os trabalhadores de colarinho marrom e azul estão sujeitos à pressão da revolução digital há décadas: agora é a vez dos trabalhadores de colarinho branco. É impossível prever quantos empregos irão desaparecer ou serão drasticamente transformados, mas em todos os cenários contemporâneos onde as pessoas funcionam como meras interfaces – por exemplo, entre um GPS e um carro, entre dois documentos em línguas diferentes, entre ingredientes e um prato, entre sintomas e uma doença – os seus empregos podem estar em risco.
Ao mesmo tempo, novos empregos estão surgindo – eu gosto de chamá-los de empregos de colarinho verde – porque novas interfaces são necessárias: entre os serviços prestados por computadores, entre sites, entre aplicativos de inteligência artificial, entre os resultados da inteligência artificial, e assim por diante. Alguém terá que decidir se um texto precisa ser traduzido e verificar se a tradução aproximada é suficientemente confiável, por exemplo.
Muitas atividades continuarão sendo muito caras para serem geridas pela inteligência artificial, mesmo que seja viável fazer isso. Mas, se não fornecermos melhores marcos jurídicos e éticos, a revolução digital polarizará ainda mais a nossa sociedade.
Pensemos, por exemplo, na brecha digital ou na gig economy. E a legislação terá um papel influente, também na determinação de quais empregos devem permanecer “humanos”. Os trens autônomos são uma raridade, também por razões legislativas, embora sejam muito mais fáceis de gerir do que os ônibus autônomos.
É claro, é importante frisar que muitas das tarefas que estão fadadas a desaparecer não vão eliminar os trabalhos relacionados a elas: agora que eu tenho um cortador de grama robótico, eu tenho mais tempo para cuidar das minhas rosas. E muitas atividades simplesmente serão atribuídas novamente a nós, como os caixas automáticos que nos permitem escanear as nossas próprias mercadorias no supermercado. A revolução digital definitivamente nos envolverá na execução de mais trabalhos para nós mesmos no futuro.
E em tudo isso a nossa inteligência será continuamente testada pelo sucesso da inteligência artificial, e a nossa autonomia será desafiada pela capacidade da inteligência artificial de prever e manipular facilmente as nossas escolhas. A nossa sociabilidade também será testada pelas nossas contrapartes artificiais, representadas por companheiros artificiais, meras vozes ou androides que podem ser tanto atraentes para os humanos quanto difíceis às vezes de distinguir da coisa real.
Não está claro como tudo isso vai acabar, mas uma coisa é certa: não há nenhuma chance do Exterminador do Futuro aparecer, e os cenários apresentados pela ficção científica nada mais são do que distrações irresponsáveis. As tecnologias inteligentes sempre serão tão estúpidas quanto uma calculadora de bolso. O problema sempre será como nós as usamos.
Há um último desafio a ser enfrentado: manter a nossa “excepcionalidade”. Depois das quatro revoluções provocadas por Copérnico, Darwin, Freud e Turing, não estamos mais no centro do universo, do reino animal, da esfera mental e da infosfera. Chegou a hora de aceitar que a nossa excepcionalidade reside na forma especial e talvez irreplicável como somos exitosamente disfuncionais.
Como diríamos no colégio, somos um hapax legomenon (ou seja, “uma palavra que só aparece uma vez no texto”) no livro da natureza de Galileu. Ou, para usar uma metáfora mais digital e contemporânea, somos uma bela falha no grande software do universo, não o aplicativo de maior sucesso. Uma falha que deve assumir cada vez mais responsabilidade pela história que está escrevendo e pela natureza que deve cuidar.