29 Julho 2021
"A transição digital de inúmeras atividades contribui para aumentar a superfície de ataque disponível, com a consequente multiplicação de tentativas de monitoramento e vigilância digital. Entre os muitos setores que estão sendo analisados, uma atenção particular é dada aos grupos religiosos", escreve Pasquale Annicchino, professor de Direito Global e Religião na Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getulio Vargas - FGV, pesquisador Associado Sênior do Instituto Cambridge de Religião e Estudos Internacionais e pesquisador visitante da Fundação Bruno Kessler, em artigo publicado por Domani, 28-07-2021. A tradução é de Luisa Rabolini.
Jeffrey Burrill, ex-secretário-geral da Conferência Episcopal dos Estados Unidos, renunciou ao seu cargo há poucos dias após uma investigação. O site The Pillar afirma ter tido acesso aos dados de geolocalização de seu celular que, analisados e decodificados, permitiriam reconstruir seus movimentos. A análise mostra que “o religioso teria frequentado clubes para homossexuais em várias cidades entre 2018 e 2020, inclusive durante viagens em nome da conferência episcopal”. O caso Burrill surgiu nos mesmos dias em que eram divulgados os resultados da investigação "Pegasus", que contou com a colaboração de 17 jornais internacionais e que revelou o papel global do spyware na vigilância de homens políticos, opositores, jornalistas e empresários.
A transição digital de inúmeras atividades contribui para aumentar a superfície de ataque disponível, com a consequente multiplicação de tentativas de monitoramento e vigilância digital. Entre os muitos setores que estão sendo analisados, uma atenção particular é dada aos grupos religiosos. Kathryn Montalbano, em seu livro publicado em 2018 Government Surveillance of Religious Expression (Routledge), analisou alguns capítulos importantes na história da vigilância do governo dos Estados Unidos sobre as minorias religiosas.
Elas eram percebidas como perigosas e pouco confiáveis quanto a lealdades republicanas e, acima de tudo, como uma ameaça à hegemonia do protestantismo branco. Mórmons, quacres, muçulmanos, ninguém escapou da rede do big brother governamental. Ainda eram distantes os dias da NSA e de Snowden, mas o governo dos Estados Unidos já estava se esforçando para enfrentar o "problema" da poligamia dos mórmons por meio de sofisticadas ações de vigilância.
Em 2018, a revista Surveillance & Society chegou a dedicar uma edição inteira ao tema da religião. Assim ficamos sabendo que o último governo feudal do Japão, o xogunato Tokugawa, já em 1600, havia construído um complexo sistema de vigilância dos hábitos da população (criação de uma rede de informantes, sistemas de registro de locais de culto, testes religiosos) a fim de preveni a propagação do cristianismo, então ilegal, no país.
Alguns anos atrás, precisamente no Japão, descobriu-se que a polícia de Tóquio passou a monitorar e traçar o perfil de cerca de 72.000 fiéis muçulmanos, coletando e arquivando informações relativas a suas contas bancárias e seus deslocamentos. Para facilitar essa coleta de informações, a polícia japonesa instalou câmeras em mesquitas e infiltrou informantes em grupos e organizações ligadas à comunidade muçulmana. Como destacou um relatório sobre o caso apresentado às Nações Unidas pela Attorney team for victims of illegal investigation against muslims: “Os alvos de vigilância e da coleta de informações foram selecionados apenas por serem muçulmanos. As forças policiais coletaram seus dados pessoais de forma automática e ampla, sem levar em consideração eventuais antecedentes, sua periculosidade social ou filiação a grupos criminosos”.
Mas não é apenas no Oriente que a violação dos direitos civis por meio da vigilância em massa apresenta grandes desafios à manutenção dos sistemas liberal-democráticos. Claro, os países asiáticos acabam se revelando um laboratório fundamental. Neste jornal, temos repetidamente analisado a situação da minoria uigur muçulmana na China, objeto da atenção "particular" do regime de Pequim por meio de uma vigilância rigorosa que faz pleno uso das possibilidades da tecnologia digital, também mediante instrumentos e tecnologias que são importado dos países ocidentais.
Exemplos de vigilância sobre comunidades religiosas, particularmente sobre a minoria muçulmana, também podem ser encontrados nos Estados Unidos inclusive em tempos recentes. Matt Apuzzo e Adam Goldman, vencedores com alguns colegas da Associated Press do Prêmio Pulitzer por uma investigação sobre o tema, ressaltaram como o departamento de polícia de Nova York tivesse organizado "equipes de agentes disfarçados, conhecidos como ‘rakers’ em bairros habitados por minorias no contexto de um programa de mapeamento e monitoramento. Os agentes monitoraram o dia a dia em livrarias, bares, boates. A polícia também utilizou informantes, conhecidos como ‘mosque crawlers’, para monitorar os sermões dos imãs, também para fins preventivos e sem que houvesse qualquer evidência ou indício de possíveis crimes”.
O encontro entre estudos sobre a vigilância e religião, portanto, não é casual e não deve ser atribuído apenas aos desenvolvimentos relativos à transição digital dos últimos anos. A aquisição das informações, sua gestão cuidadosa e sua divulgação em tempos e maneiras oportunas, muitas vezes colocou o poder temporal e o espiritual em concorrência. O fórum inter-religioso G20 é uma organização que contribui para o debate global sobre o papel do fator religioso nas políticas públicas, particularmente no contexto das atividades do G20.
Justamente nesta tarde, organizou um webinar sobre as implicações éticas da revolução digital. Na ocasião, serão antecipadas as conclusões de um relatório que Domani teve oportunidade de consultar previamente. Os autores do relatório (Marco Ventura, Branka Marijan, Robert Geraci) destacam as problemáticas éticas e jurídicas que o mundo digital traz consigo. Entre estas, uma consideração particular é obviamente dedicada ao impacto na proteção dos direitos civis e, especificamente, na proteção da privacidade e dos dados pessoais. O documento destaca que já em 2019 havia 75 países que faziam uso de tecnologias baseadas no uso de inteligência artificial para fins de vigilância.
Segundo os redatores do documento, “as tecnologias de vigilância baseadas na inteligência artificial tendem a ser utilizadas de forma desproporcional contra minorias religiosas, raciais e étnicas que já estão marginalizadas. Como resultado, esses grupos estão sujeitos a um nível mais alto de controle social e de atenção da força policial. Mesmo que apenas nesses estágios iniciais de seu desenvolvimento, as tecnologias para a vigilância representam um sério desafio à democracia”.
Justamente por esse motivo, destaca-se a necessidade de uma urgente reflexão global sobre o tema.
Além disso, o debate não é inteiramente novo, mas é certamente mais recente a tomada de consciência da extensão das tecnologias disponíveis e de seu potencial impacto.
No entanto, a história nos ensinou que muitas vezes vigilância e religião se cruzaram com efeitos importantes em todo o sistema jurídico. Como escreveram os juízes estadunidenses chamados a decidir sobre o caso da vigilância do departamento de polícia de Nova York sobre os fiéis de religião muçulmana: “A situação que enfrentamos não é nova. Nosso país fez escolhas semelhantes em outras épocas. Os judeus estadunidenses durante o período influenciado pelo medo do comunismo, os afro-americanos durante as revoltas pelos direitos civis, os nipo-americanos durante a Segunda Guerra Mundial são todos exemplos que vêm à mente. Cabe nos perguntarmos por que não conseguimos ver com antecipação o que entendemos com o conhecimento de depois, ou seja, que a lealdade republicana é uma questão de coração e de mente e não de raça, credo ou cor de pele".
Os casos Burrill e Pegasus indicam que hoje o nível de confronto aumentou consideravelmente. A possibilidade de aquisição de dados pessoais (ainda que parcialmente anonimizados) e o aumento da área de exposição de cada um de nós deveria levar-nos a refletir sobre os melhores instrumentos para a proteção da dignidade humana. A Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, ao aprovar um relatório da Comissão para os Assuntos Jurídicos e os Direitos Humanos em 2015, já havia apontado que "os arquivos de Snowden revelam como as agências de inteligência dos EUA monitoraram principalmente proeminentes ativistas muçulmanos de cidadania estadunidense, advogados e políticos por meio do uso de normas cujo objetivo principal era monitorar as atividades de terroristas e espiões estrangeiros”. Um tema, o da vigilância, sobre o qual a relação entre direito e religião tem muito a dizer.
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Quando a religião se torna um laboratório para a vigilância digital - Instituto Humanitas Unisinos - IHU