28 Junho 2021
Os únicos líderes do lado de Francisco até o momento são os ordinários de Chicago, Newark, Washington, San Diego, Seattle, Santa Fe, El Paso e poucos outros. Em oito anos, nenhum dos bispos nomeados ou promovidos por Francisco foi eleito pelos coirmãos para cargos de responsabilidade na Conferência dos Bispos dos EUA.
O comentário é de Massimo Faggioli, historiador italiano e professor da Villanova University, nos EUA. O artigo foi publicado por Il Regno, 25-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Nas últimas semanas, agravou-se a crise nas relações entre a Conferência dos Bispos dos EUA e o governo Biden, mas também entre os bispos e o pontificado de Francisco, em torno da questão do acesso à eucaristia para os políticos que têm posições incompatíveis (especialmente sobre o aborto) com o magistério da igreja.
A questão nasce muito antes da eleição de Biden, quando em 2004 foi um católico praticante, mas pro-choice e do Partido Democrata, que concorreu à presidência, e alguns bispos se pronunciaram contra a participação de John Kerry na Comunhão. Mas a questão permanece dentro da dinâmica da campanha eleitoral que Kerry perdeu depois contra George W. Bush.
Ela ressurge de forma diferente em 2020, quando Joe Biden se torna presidente, e a Conferência Episcopal deve se relacionar com o primeiro presidente católico dos EUA na era da biopolítica e das “guerras culturais” – um dos problemas que John F. Kennedy não tinha em 1960.
É interessante notar que a Conferência Episcopal permaneceu em silêncio sobre a questão nos oito anos em que Biden era vice-presidente de Obama, assim como todos aqueles políticos republicanos cujas posições sobre uma longa série de questões (começando pela pena de morte) são claramente contrárias ao magistério.
O passo anterior, porém, está na assembleia da USCCB de novembro de 2019, quando, após um acirrado debate, a Conferência decidiu aprovar uma carta (em preparação para a campanha eleitoral para as eleições presidenciais de 2020) em que se definiu a questão do aborto como “preeminente” sobre todas as outras.
É a consagração em nível magisterial do dogma político fundamental para as relações entre Igreja e política nos EUA, isto é, a centralidade absoluta da questão do aborto, que, nos EUA, se tornou legal em janeiro de 1973, com uma sentença da Suprema Corte (e em um quadro legislativo muito diferente daquele da interrupção da gravidez na Europa ocidental). O fato de essa consagração ocorrer durante o governo Trump diz muito sobre o alinhamento entre a maioria dos bispos e o Partido Republicano.
O resultado das urnas de novembro de 2020, com a eleição do segundo presidente católico, desencadeou imediatamente o plano para uma ação da Conferência Episcopal voltada a deter Biden e os políticos católicos pro-choice (que, ao contrário de antigamente, há alguns anos, estão apenas no Partido Democrata): primeiro com uma comissão episcopal secreta (cuja existência vazou bem rapidamente) que foi desmantelada após alguns meses, e depois com o acréscimo na agenda da assembleia dos bispos de junho de 2021 de uma discussão sobre a oportunidade de um documento sobre a chamada “coerência eucarística”.
A assembleia dos bispos de junho de 2021 foi precedida de dois eventos importantes. A primeira é a carta do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria Ferrer, que adverte os bispos para que não se proceda a tal passo: trata-se da carta do dia 7 de maio em resposta a uma missiva do presidente da USCCB informando a Congregação para a Doutrina da Fé sobre as intenções dos bispos.
O segundo ato de destaque é uma carta que, no dia 13 de maio, 68 bispos (incluindo os cardeais Blase Cupich, de Chicago, Joseph Tobin, de Newark, Wilton Gregory, de Washington, e Sean O’Malley, de Boston) escreveram a seus coirmãos se expressando contra a ideia de um documento que proponha ou implique a exclusão dos políticos católicos pro-choice da Comunhão eucarística (alguns dos bispos, incluindo o cardeal Timothy Dolan, de Nova York, mais tarde retiraram a assinatura assim que o documento foi divulgado).
Esses alinhamentos, com cerca de 60 bispos contra o documento e os demais a favor, se confirmaram na assembleia dos dias 16 a 18 de junho. O debate viu a tentativa da presidência (bastante fraca e incerta) do arcebispo de Los Angeles, Gomez, de reconfigurar a proposta de um documento como um ensinamento sobre a eucaristia, sem objetivos políticos; mas uma parte não desprezível de bispos confirmou que, na realidade, o governo Biden é o verdadeiro objetivo da ofensiva.
A proposta do documento recebeu o voto favorável de 168 bispos (73%), 55 contrários e seis abstenções. A comissão doutrinal da USCCB elaborará o documento que será examinado e votado na assembleia de novembro. Os documentos da USCCB requerem uma maioria de dois terços para serem aprovados, e a votação preliminar de junho de 2021 ultrapassou esse limite. Resta saber o que acontecerá dentro da Conferência nos próximos meses e que forma assumirá o documento no seu formato definitivo.
O resultado da votação do dia 17 de junho desencadeou uma reação não apenas eclesial (nas mídias católicas e nas mídias sociais, na ausência de organismos de representação do laicato na Igreja Católica dos EUA), mas também política.
Um “documento de princípios” assinado e publicado por 60 parlamentares federais católicos (todos do Partido Democrata) respondia aos bispos: não com base em um argumento de laicidade, mas em uma visão do papel da Igreja centrada nas questões sociais, caras ao progressismo (e ignorando a questão do aborto).
Parlamentares católicos desafiaram os bispos a lhes negarem a Comunhão. A diatribe assumiu os tons de uma campanha eleitoral ou, pior, de fund raising. Ao sectarismo dos bispos se contrapõe um sectarismo – típico da mentalidade religiosa norte-americana – em que o fato de se reconhecer politicamente na liderança é um critério de membership eclesial.
A presidência da USCCB tentou correr para reparar: no dia 21 de junho, enviou a todos os bispos, e convidou os bispos a enviarem aos párocos para todos os fiéis, duas páginas de explicações (na forma de perguntas e respostas) em que se negava qualquer finalidade política da decisão de redigir um documento sobre a eucaristia e, em particular, de negar a Comunhão aos políticos.
Mas uma parte do episcopado não fez segredo, durante e após a assembleia da USCCB, de considerar a participação nos sacramentos de Joe Biden (e, entre outros, da presidente da Câmara, Nancy Pelosi) um objetivo legítimo nessa escalada das “guerras culturais”.
Em nível canônico, o próximo documento da USCCB não deveria ter efeitos práticos sobre a Comunhão para os políticos: há um consenso sobre o fato de que cabe ao ordinário local decidir sobre o acesso à Comunhão em casos particulares. No caso específico do presidente Biden, além disso, existe (independentemente de todas as considerações de eclesiologia da Igreja local) uma tradição pela qual compete diretamente ao papa decidir quando se trata de chefes de Estado.
No entanto, na prática, a tomada de posição de alguns membros da USCCB cria dioceses no país que se configuram, em relação ao segundo presidente católico dos EUA, como zonas de não acesso à Comunhão – dioceses em que os ordinários intimaram Biden direta (Salvatore Cordileone, em San Francisco) ou indiretamente (Samuel Aquila, em Denver, e alguns outros) a não se apresentar para a Comunhão na missa.
Dada a atual situação de anarquia clerical na Igreja Católica dos EUA, mesmo em outras dioceses não seria totalmente surpreendente ver párocos que interpretam livremente a votação da USCCB, aplicando autonomamente uma política de exclusão de alguns tipos de membros da Igreja da Comunhão eucarística.
O assunto ultrapassou as fronteiras da imprensa católica ou religiosa apenas e desembarcou nas mídias generalistas e nas coletivas de imprensa da Casa Branca, onde se tentou não jogar lenha na fogueira, definindo como “privada” a polêmica dos sacramentos, que obviamente também é pública do ponto de vista teológico.
Biden pode contar com o apoio de alguns cardeais e bispos, e, em particular, do arcebispo de Washington, o cardeal Gregory. Mas a linha dura da USCCB criou uma variedade de respostas diferentes por parte de Biden e do seu partido. Depois, há o problema da unidade da Igreja dos EUA, que está mostrando cada vez mais rachaduras. Enfim, há a relação entre os bispos e a Santa Sé: do ponto de vista tanto pastoral quanto diplomático, entre o Vaticano e a USCCB continua se aprofundando o fosso que já era visível em 2013.
A diferença é que hoje, depois de oito anos de pontificado, é evidente que Francisco não conseguiu modificar os equilíbrios de força internos à Conferência Episcopal, apesar de uma política prudente de nomeações episcopais. Mas há uma diferença entre ser um bispo nomeado ou promovido por Francisco e ser um bispo capaz de interpretar o pontificado como uma superação das “guerras culturais”.
Os únicos líderes do lado de Francisco até o momento são os ordinários de Chicago, Newark, Washington, San Diego, Seattle, Santa Fe, El Paso e poucos outros. Em oito anos, nenhum dos bispos nomeados ou promovidos por Francisco foi eleito pelos coirmãos para cargos de responsabilidade na USCCB.
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Os bispos dos EUA e a Comunhão a Biden. Artigo de Massimo Faggioli - Instituto Humanitas Unisinos - IHU