04 Junho 2021
Façam isso, para que, se por acaso houver um católico remanescente que não esteja convencido de que a Conferência dos Bispos dos EUA se tornou totalmente irrelevante e ineficaz, essa realidade lhe ficará muito clara depois que as lideranças da Conferência levarem em frente essa evidente má ideia.
Publicamos aqui o editorial do jornal National Catholic Reporter, 03-06-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Bem, parece que – exceto por uma intervenção de última hora do próprio Papa Francisco, e talvez nem mesmo assim – os bispos dos Estados Unidos vão avaliar e votar uma proposta de um documento magisterial sobre a Comunhão que inclui a negação do sacramento a políticos que apoiam políticas pro-choice, incluindo o segundo presidente católico do país, Joe Biden.
A discussão dos bispos – se você pode chamá-la assim – e a votação ocorrerão na assembleia online dos dias 16 a 18 de junho.
Nós dizemos: façam isso.
Apenas façam isso, para que, se por acaso houver um católico remanescente que não esteja convencido de que a Conferência Episcopal, como ela é hoje, se tornou totalmente irrelevante e ineficaz, essa realidade lhe ficará muito clara depois que as lideranças da Conferência levarem em frente essa evidente má ideia.
Apesar dos planos de enterrar a verdadeira razão do documento com uma linguagem sobre a “coerência eucarística”, essa medida é claramente direcionada contra Biden e a prática da sua fé. Embora Biden tenha dito que pessoalmente se opõe ao aborto, ele, como político, apoiou a posição do seu partido sobre a questão, incluindo a proposta mais recente de remover a antiga proibição do financiamento federal para tal procedimento.
O plano dos bispos é uma ideia terrível, antes de mais nada porque tal atenção excessiva à aptidão daqueles que recebem a Comunhão é contrária a uma teologia tradicional e adequada dos sacramentos, que os vê como não como “um prêmio para os perfeitos, mas um remédio generoso e um alimento para os fracos”, disse o Papa Francisco na Evangelii gaudium (e não deixe que discursos sobre o fato de que ninguém mais acredita na Presença Real o influenciem, pois esses sabichões provavelmente estarão citando alguma pesquisa falha. A maioria dos católicos ainda sabe se ajoelhar quando passa na frente do sacrário).
Não podemos pensar em ninguém que precise mais desse “remédio e alimento generosos” do que o presidente, que enfrenta uma pandemia, uma enorme desigualdade de renda, um acerto de contas racial e as ameaças mais sérias à nossa democracia desde a Guerra Civil, sem falar da perspectiva dos danos irreversíveis ao planeta. O fato de ele ser católico desde que nasceu e participante torna isso ainda mais triste.
Sejamos honestos: a proposta dos bispos tem pouco a ver com a teologia e muito a ver com a política. Se os bispos realmente estivessem procurando coerência de tipo moral dos atores políticos, eles estariam emitindo avisos de excomunhão mais rapidamente do que os republicanos suprimindo o voto.
A decisão da Conferência Episcopal de adotar uma postura contrária a Biden não é apenas pastoralmente errada, é também politicamente estúpida, dado o número de áreas de concordância entre este governo e as próprias prioridades dos bispos. Mas a liderança da conferência está disposta a sacrificar conquistas reais em relação à imigração, pobreza infantil e aquecimento global para se exibir como preeminentemente pró-vida e insistir que a posição de alguém sobre a política – nem mesmo a moralidade – do aborto é a base para a recepção do corpo de Cristo.
A realidade mais trágica sobre o fato de seguir em frente com essa proposta é que ela selará o acordo sobre a marca do catolicismo nos EUA como um projeto de guerra cultural. Como grande parte do evangelicalismo protestante nos EUA, o catolicismo já é percebido por muitos – incluindo muitos dos nossos jovens – como uma extensão daquela porção do Partido Republicano que acredita na “Grande Mentira”, promove teorias da conspiração sobre as vacinações e está disposto a abandonar todos os outros princípios para reverter um processo judicial de quase 50 anos – uma decisão judicial, aliás, que não impedirá que os abortos ocorram.
Essa guerra cultural por parte de alguns membros da hierarquia, apoiados por grandes doadores e agendas econômicas pessoais, e por meios de comunicação de direita que produzem mais propaganda do que jornalismo, não é a Igreja da misericórdia e do encontro que o Papa Francisco está tentando oferecer ao mundo. Também não se parece com aquilo que o filho do carpinteiro da Galileia pregou e pelo qual morreu.
Aqueles que tentam insistir que negar a Comunhão a Biden está de acordo com o pensamento anterior de Francisco na América do Sul poderiam querer lembrar que o seu papa anteriormente tentou expandir – e não restringir – a recepção da Eucaristia para os católicos divorciados e recasados. E eles precisam ler todo o Documento de Aparecida de 2007 do Celam (o Conselho Episcopal Latino-Americano), não apenas escolher um parágrafo.
Essa nova “Igreja MAGA” [Make America Great Again], com Donald Trump em vez de Jesus como seu salvador, já dividiu os católicos estadunidenses. Seu símbolo: um pároco que é removido pelo seu bispo após vomitar declarações anti-imigrantes, racistas e medicamente falsas, apenas para arrecadar mais de 320 mil dólares [1,6 bilhão de reais] de partidários de direita que se referem a outros católicos como a “falsa Igreja dos Judas modernos”.
Da “Quinzena pela Liberdade” durante o governo Obama, às campanhas políticas anti-casamento gay e às demissões de professores LGBTQ em escolas católicas, passando pelo culto a Trump na Marcha pela Vida – essa Igreja para quem a oposição ao aborto legal é o primeiro e único mandamento finalmente estará completa quando todos aqueles que não priorizaram a sentença do caso Roe v. Wade nas suas decisões de voto forem banidos da fila da Comunhão.
As maquinações para levar essa proposta em frente – apesar das intervenções internas e externas – também estão dividindo a própria Conferência Episcopal, de modo que as nossas lideranças religiosas estão sendo o principal exemplo deste período de polarização, ao invés de serem exemplos de como superá-lo.
Cerca de 67 bispos estadunidenses – cerca de um quarto da Conferência – colocaram seus nomes em uma carta implorando que seus irmãos posterguem esse plano temerário. Suspeitamos que há mais – incluindo alguns, como o cardeal Timothy Dolan, de Nova York, que primeiro assinou a carta e depois teve o seu nome removido – que concordam com o apelo para desacelerar esse processo. Isso significa que é improvável que o documento se torne uma lei de verdade, já que ele precisa de dois terços dos votos e da aprovação de Roma.
Este último passo parece impossível, dada a intervenção anterior do Vaticano, que tentou ajudar a Conferência a se salvar, enviando uma advertência polidamente formulada para desacelerar essa corrida ao juízo. Na realidade, a carta do mês passado do cardeal Luis Ladaria, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, pode ter sido educada demais, já que alguns bispos conservadores e as suas mídias de bolso tentaram distorcer a carta dizendo exatamente o contrário.
Então, vão em frente: usem esse encontro online – em que os bispos não terão realmente a oportunidade de falar franca e livremente uns com os outros, seja na sala de reuniões, nos intervalos para o café ou durante os jantares e outros encontros – e corram ao encontro de um documento que marcará para sempre a Igreja dos EUA como a organização desconectada da realidade e obcecada com a guerra cultural que ela se tornou.
A votação de junho será apenas sobre um rascunho, mas o roteiro já está escrito. Não importa o que aconteça ou não no futuro, a mídia já terá publicado a história: “Católicos julgam e negam a Biden a prática da sua própria fé”. O dano estará feito. Equipes de TV seguirão Biden (e outros democratas católicos, incluindo a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, o senador por Illinois Dick Durbin e outros) para ver se eles serão escoltados para fora das igrejas ou não.
Aqueles de nós que acompanham a política interna da Igreja para ganhar a vida sabem há muito tempo que esse atual rebanho de bispos – cuja grande maioria ainda foi nomeada durante os papados de João Paulo II ou de Bento XVI – ou é preguiçoso, ou desconectado da realidade, ou depende dos bolsos dos doadores ricos que promovem uma agenda política, ou todas as opções acima.
(Sim, existem indivíduos maravilhosos que atuam no episcopado dos EUA, mas estamos falando do órgão oficial da Conferência, que representa todos eles.)
Talvez alguns católicos de todos os dias – nas suas ocupações habituais, tentando colocar comida sobre a mesa, criar filhos na fé e manter todos vivos e bem durante uma pandemia global – não se deram conta de que suas lideranças preferem fazer política e escolher uma rixa escolar para desviar a atenção da sua própria ineficácia.
Se os bispos dos EUA não querem agir como verdadeiros seguidores de Jesus e lideranças da sua Igreja na terra, então eles podem seguir em frente e começar essa briga. Pelo menos, então, ficará claro para todos qual é a deles.
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Por que apoiamos o plano dos bispos para negar a Comunhão a Biden. Editorial do National Catholic Reporter - Instituto Humanitas Unisinos - IHU