31 Mai 2021
Você poderia pensar que uma carta direta do prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, cardeal Luis Ladaria – exortando os bispos dos Estados Unidos a diminuírem a sua pressa em adotar um documento sobre a necessidade de barrar políticos pró-escolha da Comunhão, aconselhando-os a se engajar em um diálogo sereno entre si e a consultar as Conferências Episcopais de outros países – seria o suficiente para diminuir a pressa deles em adotar tal documento. E você estaria errado.
O comentário é de Michael Sean Winters, publicada por National Catholic Reporter, 28-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
O presidente da Conferência dos Bispos dos Estados Unidos (USCCB, na sigla em inglês), o arcebispo José Gomez, de Los Angeles, enviou um memorando aos seus irmãos bispos, explicando que a Conferência seguiu os procedimentos normais ao decidir agendar uma votação sobre se deveria ou não encarregar a sua Comissão de Doutrina de redigir um documento sobre essa questão controversa.
A carta e o memorando vazaram para o site The Pillar, provavelmente por alguém próximo a Gomez, e isso mostra que a carta de Ladaria está sendo ignorada ou deturpada em um grau que é surpreendente.
Em sua carta, Gomez resume o plano até agora:
“Consequentemente, Sua Ex.a Rev.ma Kevin C. Rhoades, presidente da Comissão de Doutrina, pediu à Comissão Administrativa em março de 2021 um tempo na agenda da Assembleia Plenária de junho para fazer essa pergunta inicial [Os bispos querem que a sua comissão redija uma declaração sobre a coerência eucarística?] ao órgão. A Comissão Administrativa aprovou esse pedido. Desde então, a Comissão de Doutrina se reuniu para desenvolver um breve esboço a ser proposto ao órgão em junho. Seu esboço reflete a orientação recente da Santa Sé. O item de ação concluído foi aprovado pela Comissão Executiva em 17 de maio e, então, foi fornecido ao senhor no formato usual. Também o estou anexando a esta carta para a sua conveniência.”
Onde isso reflete o principal impulso da carta de Ladaria, a saber, para desacelerar? A estratégia não é sutil: é fazer com que os bispos aprovem a redação de um texto, para tê-lo pronto em novembro e para que os demais bispos achem que, para demonstrar o seu compromisso com a causa pró-vida, eles terão que adotar o documento.
Gomez afirma ainda que “o foco desse documento de ensino proposto é como ajudar melhor as pessoas a entenderem a beleza e o mistério da Eucaristia como o centro das suas vidas cristãs”.
Isso é engraçado porque, de acordo com Michelle Boorstein, do The Washington Post, o arcebispo Joseph Naumann, presidente da Comissão de Atividades Pró-Vida dos bispos e um dos principais impulsionadores de toda essa corrida louca para adotar um documento, disse a ela que “o novo esforço é urgente, devido àquilo que ele chama de ‘clima diferente’ sobre o aborto”.
Isso está alinhado com aquilo que o arcebispo Alexander Sample, de Portland, disse quando exortou com sucesso os bispos a definirem o aborto como a sua preocupação política “preeminente”, em sua reunião plenária de 2019. Sample explicou a adição desse adjetivo não fazendo nenhuma referência a qualquer desenvolvimento da doutrina. Tratava-se de política: “Estamos em um momento único com o próximo ciclo eleitoral para fazer um desafio real à sentença do caso Roe v. Wade [em que a Suprema Corte dos Estados Unidos reconheceu o direito ao aborto no país], dadas as possíveis mudanças na Suprema Corte. Não devemos diluir nossos esforços de proteger os nascituros”.
Os problemas com a carta de Gomez e o memorando da Comissão de Doutrina são profundos e numerosos. É verdade que, como afirma a carta de Gomez, o “esboço [da Comissão de Doutrina] reflete a orientação recente da Santa Sé”? Veremos.
Ladaria escreveu que “o diálogo entre os bispos deve ser realizado para preservar a unidade da Conferência Episcopal diante das divergências sobre esse tema controverso. A formulação de uma política nacional foi sugerida durante as visitas ad limina apenas se isso ajudasse os bispos a manterem a unidade”.
O NCR obteve uma cópia de uma carta assinada por cerca de 67 bispos pedindo que Gomez deixe de lado qualquer discussão adicional sobre essa proposta até que os bispos tenham a chance de discuti-la pessoalmente, e não em uma reunião via Zoom.
A decisão de Gomez de prosseguir mesmo assim não está de acordo com a definição padrão da palavra “apenas” na instrução repetida de Ladaria para formular uma política de negação da Eucaristia: “apenas se isso ajudasse os bispos a manterem a unidade”.
Ladaria propôs um diálogo em duas fases: primeiro, entre os bispos e, depois, entre os bispos e os políticos pró-escolha da sua jurisdição. Somente depois de concluídas essas duas etapas, de acordo com Ladaria, é que os bispos “enfrentariam a difícil tarefa de discernir o melhor caminho a seguir para que a Igreja dos Estados Unidos testemunhe a grave responsabilidade moral dos funcionários públicos católicos de proteger a vida humana em todas as suas fases”.
Será que eu perdi a primeira fase? Ou a segunda? E, aparentemente, Gomez e seus companheiros não acham que essa seja uma tarefa difícil. Eles veem o discernimento da mesma forma que o almirante David Farragut via a tomada de Mobile Bay: “Malditos torpedos... A toda a velocidade à frente!”.
Ladaria disse que, tendo concluído o diálogo em duas etapas e a “difícil tarefa de discernimento”, qualquer declaração resultante “precisaria expressar um verdadeiro consenso dos bispos sobre a questão”. Não é óbvio que tal consenso não existe?
Ladaria advertiu contra restringir o foco aos políticos, escrevendo que “qualquer declaração da Conferência sobre lideranças políticas católicas seria mais bem enquadrada dentro do amplo contexto de dignidade para a recepção da Sagrada Comunhão por parte de todos os fiéis, ao invés de apenas uma categoria de católicos, refletindo a sua obrigação de conformarem suas vidas a todo o Evangelho de Jesus Cristo enquanto se preparam para receber o sacramento”.
O esboço da Comissão de Doutrina declara que considerará “um apelo especial para que os católicos que são lideranças culturais, políticos ou paroquiais deem testemunho da fé”.
Ladaria exortou Gomez a também pôr em prática “todos os esforços” para consultar outras Conferências Episcopais, mas o esboço não menciona que tal esforço tenha ocorrido ou que esteja sendo preparado. Como escreveu o meu colega Christopher White, a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos é a única Conferência Episcopal que está caminhando por essa estrada sectária e de divisão.
Não consigo acreditar que Gomez seja simplesmente mentiroso. A situação é mais complexa do que isso. Eu não tenho dificuldade em acreditar que o seu colega californiano, o arcebispo Salvatore Cordileone, de San Francisco, seja pelo menos complexamente mentiroso.
“Estou profundamente entristecido com a crescente acrimônia pública entre os bispos e a adoção de manobras a portas fechadas para interferir nos procedimentos aceitos, normais e acordados da USCCB”, disse Cordileone em um comunicado fornecido à Catholic News Agency, de propriedade da rede EWTN, na terça-feira passada. “Aqueles que não desejam publicar um documento sobre a coerência eucarística deveriam estar abertos a debater a questão de forma objetiva e justa com seus irmãos bispos, ao invés de tentarem descarrilar o processo.”
Também é difícil acreditar que ele esteja “profundamente entristecido”. Se ele está assim, deveria se olhar no espelho, pois ele tem sido um dos principais defensores do abandono da declaração da USCCB de 2004 intitulada “Catholics in Political Life” [Católicos na vida política], por algo mais restritivo. Além disso, os bispos não têm o direito de enviar uma carta privada ao presidente da Conferência?
Cordileone deturpa a carta enviada a Gomez. Ela não diz que não deveria haver nenhuma discussão. Ela diz que uma discussão de verdade é quase impossível em uma teleconferência via Zoom com mais de 200 bispos e pede que a discussão seja adiada. O seu uso do verbo “descarrilar” é instrutivo: ele, assim como Gomez e Naumann, pôs o trem em marcha. Eles querem conseguir pressionar por uma votação em junho para instruir a Comissão de Doutrina a redigir um texto. Em novembro, eles insistirão, assim como fizeram em 2019 ao debater a questão da “preeminência”, que o compromisso da Conferência com a causa pró-vida exige a adoção do documento.
Aí está o problema. De acordo com uma reportagem do Catholic News Service, entre os signatários da carta que pede a Gomez que deixe de lado toda a questão até novembro, está o cardeal Sean O’Malley, de Boston. O’Malley nunca apoiou a negação da Comunhão a políticos por causa de seus posicionamentos em questões de políticas públicas. Pelo que eu pude constatar, ele também é o único prelado que compareceu a todas as Marchas pela Vida.
Será que Cordileone, Naumann e Gomez realmente acham que o compromisso de O’Malley com a causa pró-vida está em questão? Eles realmente acham que algum bispo nos Estados Unidos é indiferente em relação ao aborto? A questão é se a Eucaristia deve ou não ser reduzida a um peão nas guerras culturais, a uma recompensa pelo bom comportamento político na questão do aborto, e somente nessa questão.
Se a Igreja da Inglaterra foi notoriamente descrita como “o Partido Conservador em oração”, Gomez et al. gostariam que a Igreja Católica nos Estados Unidos fosse “o Partido Republicano em oração”.
A pedra no meio do seu caminho, que sempre se interpôs no caminho desse tipo de cristianismo politizado e no caminho de todos os esforços para reduzir os mistérios da fé à pura ética, é Roma.
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Bispos dos EUA ignoram carta do Vaticano sobre a Comunhão - Instituto Humanitas Unisinos - IHU