12 Mai 2021
"O gesto antiquíssimo dos homens e das mulheres que se ajoelham pode ser metáfora e realidade, privado e público, ordinário e extraordinário, sentimental, esportivo, religioso e político".
O comentário é de Marco Ventura, publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 09-05-2021. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
No dia 26 de agosto de 2016, Colin Kaepernick não se levantou do banco no momento do hino dos Estados Unidos. O quarterback da equipe San Francisco 49ers protestou assim contra a brutalidade racista da polícia, em particular pela morte de Mario Woods, de 20 anos. Nas horas que se seguiram ao gesto de Kaepernick, o ex-colega da liga de futebol americano e veterano de guerra Nate Boyer lhe sugeriu uma forma mais respeitosa para protestar: por que você não se ajoelha da próxima vez? O gesto é familiar a qualquer quarterback, que pode interromper o jogo, assim que recebe a bola oval, se colocar um joelho no chão.
Kaepernick ajoelhado durante partida da NFL (Foto: Reprodução | Vox)
Cinco dias depois do primeiro protesto sentado, no dia 1º de setembro de 2016, Kaepernick transformou o seu gesto de diretor do jogo em um gesto de protesto. A pose era a mesma, mas desta vez, “taking a knee”, colocando um joelho no chão, o jogador não queria parar o cronômetro da disputa, mas queria mudar o rumo do seu tempo. O protesto logo se espalhou, dentro e fora dos estádios. Enquanto isso, Donald Trump venceu as eleições, a violência não parou.
No dia 25 de setembro de 2017, um ano após Kaepernick se ajoelhar pela primeira vez, a revista Time retrocedeu meio século. Um artigo de Maya Rhodan lembrou aos leitores estadunidenses as raízes distantes daquele gesto. Uma foto diz tudo.
Martin Luther King é retratado de joelhos na calçada de uma cidade do Alabama, na mesma posição que Kaepernick e dos manifestantes de hoje. No seu costumeiro terno preto, o reverendo King está apoiado sobre o joelho esquerdo, a cabeça ligeiramente inclinada. Outros manifestantes, mulheres e homens, estão ajoelhados, alguns como ele, outros com ambos os joelhos.
A foto levou os EUA de volta para março de 1965, ao movimento pelos direitos civis, à luta contra a segregação dos negros, aos discursos políticos em ritmo gospel, aos sermões que desafiavam a autoridade. De joelhos, reconhece-se uma desigualdade, que é assim transformada: o homem que se ajoelha diante de Deus se reconhece como seu filho e instrumento. A impotência se embebe de potência. É por isso que, de joelhos, é possível desafiar qualquer assimetria: entre negro e branco, entre rico e pobre, entre potente e impotente.
Três meses antes, foi lançado na Itália “In ginocchio da te” [De joelhos para ti]. No filme e na canção, Gianni Morandi parece confirmar o modelo do homem italiano, totalmente privado, familista e oportunista, inescrupuloso e chorão, devoto de Nossa Senhora e frequentador dos bordéis, o homem que trai e depois pede perdão, se ajoelha. Na Itália do boom, no catolicismo do Concílio Vaticano II, nada, porém, pode permanecer imóvel. Morandi está na fronteira entre o velho que nunca morre e o novo que não pode ser detido, entre a ficção do set onde ele se ajoelha diante de Carla, a atriz Laura Efrikian, e a realidade da vida onde ele realmente se casa com Efrikian. O desequilíbrio entre homem e mulher, Norte e Sul, elite secularizada e religiosidade popular está em discussão.
Quinze anos mais tarde, os EUA de King e a Itália de Morandi já fazem parte de um mundo maior. No dia 25 de janeiro de 1979, o papa polonês desembarcou na República Dominicana, na sua primeira viagem transoceânica na rota de Colombo e do Novo Mundo a ser evangelizado. No dia seguinte, ao chegar à Cidade do México, o público global assistiu pela primeira vez um gesto que se tornará célebre. O enérgico João Paulo II desceu a escada do avião, com um passo à esquerda saiu do tapete vermelho e caiu com os dois joelhos para beijar o asfalto da pista. A TV mostrou o entusiasmo do povo mexicano, mantido à distância. Havia espaço ao redor do papa, a cena devia ser bem visível. Karol Wojtyla ficou ainda mais branco, mais resplandecente, ao se levantar e se livrar do véu que o vento jogou sobre a sua cabeça.
João Paulo II repetiu diversas vezes o gesto de ajoelhar-se (Foto: Vatican Media)
Quatro dias depois, o aiatolá Khomeini aterrissou em Teerã. A revolução começou. Apoiado por um homem fardado, vestido de preto, ele desceu hesitante a escada. Na parte inferior, ele desapareceu entre a multidão que cerca o avião. Durante o voo de volta do exílio parisiense, um jornalista estadunidense lhe perguntou o que ele sentia: “How do you feel?”. “Hichi”, respondeu Khomeini: nada. Preparam o nosso mundo os dois líderes religiosos que descem do céu para a história, o papa que se ajoelha no chão e o aiatolá levado pelo povo quase antes de tocar o chão.
Quarenta anos depois, cabe a nós desafiar os desequilíbrios, as desigualdades, as injustiças, nos ajoelhar para colocar de pé quem realmente está de joelhos. Do Mianmar de maioria budista, que persegue a minoria muçulmana dos Rohingya, repercute em todo o mundo a imagem da freira que, ajoelhada, afronta a polícia em trajes de guerra. A enfermeira e freira birmanesa Ann Rose Nu Tawng fez o gesto duas vezes, nos dias 28 de fevereiro e 8 de março passados.
Ann Rose Nu Tawng ajoelha-se em protesto (Foto: Reprodução Facebook de Enrico Rossi)
Com ambos os joelhos no chão, a cristã asiática se opõe à violência política e física da ditadura militar e, mais ainda, aos desequilíbrios de um mundo global dividido entre maiorias e minorias, entre armados e desarmados.
Afinal, há quase um ano, desde o dia 25 de maio de 2020, o joelho é um símbolo de morte. O policial de Minneapolis Derek Chauvin manteve o seu joelho esquerdo pressionado contra o pescoço de George Floyd até provocar a sua morte. É a mesma pose do futebol americano, de Colin Kaepernick e do protesto antirracista do reverendo King; a mesma pose de quem agora revive e amplifica o protesto.
Derek Chauvin sufoca e mata George Floyd (Foto: Wikimedia Commons)
Na sua reconstrução, o New York Times estima que o tempo em que o joelho de Chauvin gradualmente tirou o fôlego de Floyd foi de oito minutos e quinze segundos. Para os manifestantes, que repetem o gesto por um tempo simbólico, a duração é de oito minutos e quarenta e seis. Eles também, por sua vez, reinventam uma tradição, misturam sagrado e profano, confundem rito civil e rito religioso.
A reiteração e a duração são essenciais para se ajoelhar e se prostrar por parte dos muçulmanos, cinco vezes por dia na oração do salat, assim como para os monges budistas que se balançam lentamente sobre os joelhos e as nádegas até encontrarem a posição que os manterá fixos na meditação. De joelhos, unimos práticas, conectamos universos, ligamos significados. Ou, precisamente na aparente semelhança dos gestos, demarcamos diferenças decisivas.
O rabino Shira Stutman, de Washington, se pergunta se deveria convidar a sua comunidade a pôr o joelho no chão em sinal de solidariedade aos manifestantes em vez de se ajoelhar e se prostrar como tradicionalmente ocorre para a recitação do Aleinu durante o Yom Kippur. A resposta é negativa. É melhor que os dois gestos permaneçam distintos, assim como os significados são distintos.
Com efeito, observa o rabino, quem protesta se ajoelha para aumentar o próprio poder, enquanto nós fazemos isso para nos despojar do poder, para indicar a nossa submissão a Deus. Aqui reside o valor mais profundo do gesto e o seu maior desafio. Se não há humildade ou se há humilhação, a pessoa se ajoelha em vão, e, pelo contrário, alarga-se a distância, exaspera-se o desequilíbrio entre terra e céu, justiça e injustiça, oprimido e opressor.
Dietrich Bonhoeffer, à direita (Foto: dietrichbonhoeffer.net)
Enquanto estava na prisão à espera de ser executado pelo complô contra o Führer, o pastor e teólogo Dietrich Bonhoeffer escreveu sobre um Deus que é potente por ser impotente, que exalta a própria liberdade na liberdade do ser humano. Seu enforcamento no campo de Flossenbürg, no dia 9 de abril de 1945, é o símbolo de quem não se ajoelha diante do poderoso, mas do impotente e, por isso, é elevado ao único poder que importa.
Pouco mais de meio século depois, no início do terceiro milênio, Maurizio Cattelan retratou Hitler com o corpo de uma criança, ajoelhado, mãos dadas e olhos lúcidos voltados para cima. A escultura é em resina de poliéster e cera, os cabelos são humanos. Em 2012, a estátua foi exibida em Varsóvia, não muito longe do Monumento aos Heróis do Gueto, diante do qual o chanceler alemão Brandt havia se ajoelhado 40 anos antes, no dia 7 de dezembro de 1970, em um ato histórico para as relações entre Oriente e Ocidente no tempo da Guerra Fria.
Obra de Maurizio Cattelan (Foto: Reprodução)
Brandt ajoelhado no Guteo de Varsóvia (Foto: sapo.pt)
O gesto antiquíssimo dos homens e das mulheres que se ajoelham pode ser metáfora e realidade, privado e público, ordinário e extraordinário, sentimental, esportivo, religioso e político.
Como Martin Luther King e Colin Kaepernick, como Derek Chauvin e os manifestantes do Black Lives Matter, como João Paulo II e a Ir. Ann Rose, como Willy Brandt e Maurizio Cattelan, não paramos de reinventar esse gesto. Continuamos nos ajoelhando, porque não aceitamos que a nossa impotência seja em vão.
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A revolução não será ajoelhada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU