25 Março 2021
Com 3158 mortes em 24 horas, país dobra outra esquina da barbárie. Fiocruz mostra que quase todo país está em alerta crítico e sustenta: não basta isolar alguns municípios e estados. É preciso coordenar nacionalmente o bloqueio.
A reportagem é de Maíra Mathias e Raquel Torres, publicada por OutraSaúde, 24-03-2021.
Houve um tempo, não muito distante, em que o país se chocava com mais de mil mortes registradas em um dia. Pois ontem o estado de São Paulo ultrapassou sozinho essa marca, com 1.021 óbitos. No Brasil inteiro foram 3.158 – a primeira vez, mas certamente não a última, em que esse número fica acima de três mil. Nenhuma outra causa de morte mata tanto assim em 24 horas. O Globo fez a conta: doenças cardiovasculares, que são as mais mortais por aqui, levam juntas quatro dias para atingir tal soma.
Sabemos que nem todas essas mortes ocorreram de fato ontem; entendemos que há atraso no registro e que terças-feiras apresentam geralmente números altos, porque incluem muitos dados represados ao longo do fim de semana. Mas apesar de o represamento sempre existir, nunca houve uma terça-feira como essa. A média móvel, que faz o balanço dos últimos sete dias, corrige esse tipo de distorção. E, obviamente, ela não para de subir: em seu 25º dia consecutivo de recorde, chegou a 2.349.
A Fiocruz divulgou mais um de seus boletins extraordinários. Assim como o anterior, do dia 16 de março, ele mostra praticamente o país inteiro pintado de vermelho, em alerta crítico, com taxas de ocupação das UTIs acima de 80%. Mais uma vez, só há dois estados em alerta médio, simbolizado pelo amarelo. Roraima tinha 73% de ocupação na semana passada e agora está em 64%. E o Amazonas teve uma leve melhora, de 80% para 79%: ou seja, saiu do vermelho, mas ainda está na margem. Já o Rio de Janeiro estava nessa fronteira na semana passada, com 79%, mas piorou muito rapidamente e chegou a 85% – a fila por UTIs quadruplicou nos últimos dez dias. O Sudeste inteiro piorou, aliás. Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo ultrapassaram os 90%. E, no Centro-Oeste e no Sul, as taxas estão todas acima de impressionantes 96%.
A orientação dos pesquisadores é cristalina: os estados e municípios em alerta crítico precisam restringir as atividades não essenciais por no mínimo 14 dias. Não porque o lockdown seja uma solução ótima, e sim porque, a essa altura, é a única coisa que se pode fazer: “este colapso não foi produzido em março de 2021, mas ao longo de vários meses”, lembra o boletim. O texto também destaca que, mesmo que alguns gestores já estejam decretando bloqueios, “é fundamental que governos municipais, estaduais e federal caminhem todos na mesma direção para ampliá-las e fortalecê-las, uma vez que a adoção parcial e isolada nos levará ao prolongamento da crise sanitária”.
Pressionado pela realidade, Jair Bolsonaro fez ontem à noite um pronunciamento em cadeia nacional de rádio e TV. “Somos incansáveis na luta contra o coronavírus”, disse ele, que deve ter batido seu recorde de mentiras por minuto. A curtíssima fala – que, segundo o Valor, foi quase toda escrita pelo ministro das Comunicações Fábio Faria – teve pérolas como “sempre afirmei que adotaríamos qualquer vacina”, “as vacinas estão garantidas”, “ao final do ano, teremos alcançado mais de 500 milhões de doses para vacinar toda a população” e “em nenhum momento, o governo deixou de tomar medidas importantes tanto para combater o coronavírus como para combater o caos na economia”. Ele terminou declarando solidariedade com quem perdeu familiares – sim, o mesmo presidente do “e daí?” e do “não sou coveiro”.
Esse foi mais um movimento no “Plano Vacina”, uma estratégia para melhorar a imagem presidencial. A colunista Malu Gaspar conta, n’O Globo, como as redes sociais da presidência e os chats bolsonaristas estão empenhados em fazer circular mensagens sobre um apoio supostamente contínuo do governo federal às vacinas, a despeito de tudo o que Bolsonaro já fez no sentido contrário.
A palavra que ele ainda se recusa a pronunciar – a não ser que seja para atacá-la – é ‘lockdown’. Resta saber se é possível reverter a imagem de negacionista fiando-se apenas na defesa de vacinas ainda inexistentes, quando o apelo da maior parte da população, de cientistas e até de banqueiros é por medidas restritivas imediatas.
Aliás, o ministro Marco Aurélio de Mello rejeitou a ação em que Bolsonaro pede ao STF a derrubada dos decretos estaduais com restrições à mobilidade. O presidente também havia pedido para a Corte considerar que o fechamento de serviços não essenciais só pode ocorrer por meio de aprovação de uma lei – e isso também foi negado.
Em resposta ao pronunciamento, ouviram-se panelaços em mais de dez capitais.
Está marcada para hoje uma reunião do presidente com representante dos outros Poderes e com sete governadores, escolhidos a dedo por não terem conflitos públicos com Bolsonaro.
O objetivo é, segundo o Estadão, “zerar o jogo” na atuação contra a crise, e a carta principal é a defesa de uma ampliação na vacinação. Mas “a ofensiva de Bolsonaro parece débil ante a goleada da pandemia” e o presidente “já chegará derrotado”, analisa Maria Cristina Fernandes, no Valor: “O diagnóstico crítico com sugestões para o enfrentamento da pandemia (…) aglutinou representantes de peso do PIB nacional, usualmente pouco afeitos à exposição pública, às posições que têm sido defendidas pelo Congresso, pelo Supremo e pelos governadores, isolando o presidente da República na resistência a medidas como o isolamento social“.
Ao mesmo tempo, a Confederação Nacional de Municípios divulgou carta aberta ao presidente pedindo que ele assuma “de uma vez por todas” a coordenação do enfrentamento à pandemia, e que defenda não só as vacinas como também outras medidas de prevenção, como o distanciamento social.
Não bastasse Jair Bolsonaro estar isolado em suas propostas (ou na ausência delas), ontem houve a votação da segunda turma do STF que terminou a favor da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro – e deixou Lula ainda mais perto de participar da disputa eleitoral de 2022. A sombra do ex-presidente pesa mais do que nunca sobre a já prejudicada popularidade de Bolsonaro.
A posse de Marcelo Queiroga aconteceu ontem, afinal, mas de forma quase clandestina. A cerimônia foi realizada no gabinete da Presidência da República, fora da agenda oficial. Sem imprensa, nem sequer convidados.
De acordo com a Folha, a decisão intempestiva foi tomada para estancar a sede do Centrão pelo cargo, que teria sido reativada pela demora na nomeação. E também para evitar cobranças das cúpulas do Legislativo e do Judiciário na reunião do dia 24-03. Ainda segundo o jornal, a decisão de fazer uma posse discreta não foi bem avaliada no próprio governo. Parte da cúpula militar defendia que Bolsonaro aproveitasse a cerimônia para sinalizar uma mudança de postura do governo federal em relação à crise sanitária.
Agora resta saber qual será a equipe de Queiroga e se ele desalojará os militares que ocuparam o Ministério da Saúde há quase um ano.
Paulo Guedes experimentou mais uma derrota ontem. O presidente resolveu, sem lhe consultar, que o lugar ideal para colocar Eduardo Pazuello seria a… Secretaria Especial do Programa de Parcerias de Investimentos, o PPI. O fato de o general não ter nenhuma experiência em economia, muito menos com privatizações, não soou estranho para os assessores militares do Planalto, que foram ouvidos. Afinal, Pazuello não sabia o que era o SUS quando assumiu o Ministério da Saúde… A nomeação saiu ontem, em edição extraordinária do Diário Oficial.
O mercado não gostou. E a equipe econômica, é claro, também não. Até porque a mudança não incluiria apenas a nomeação: o plano seria retirar o PPI da pasta de Guedes e passá-lo para a Secretaria-Geral da Presidência, comandada por Onyx Lorenzoni. De acordo com o Valor, essas reações talvez façam com que Bolsonaro volte atrás na nomeação e acabe alocando Pazuello na Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE).
O melhor da história é que a nomeação para o PPI na opinião da própria área jurídica do governo não garante foro privilegiado ao general. “Já houve questionamento anterior sobre o tema, durante o governo de Michel Temer, quando foi dado o status de natureza especial ao cargo de Marcelo Calero, na época nomeado como secretário de Cultura. Na ocasião, a Casa Civil estabeleceu o entendimento que o novo cargo não garantiria prerrogativa de foro ao ocupante”, diz o Estadão.
Tem gente que resolveu pegar carona no manifesto dos economistas para emplacar ideias já rechaçadas, como a compra de vacinas pelo setor privado neste momento da pandemia. O argumento agora tem gostinho de chantagem. O bolsonarista Flávio Rocha, dono da Riachuelo, afirma que garantir que o setor privado compre e aplique vacinas em seus funcionários servirá para evitar demissões.
“Não queremos passar à frente de vulneráveis, velhinhos ou quilombolas”, disse ao Estadão, embora seja exatamente disso que se trata. “Estamos na linha de frente da guerra econômica. Não adianta vencer a guerra biológica e não ter o que comer. Como diz o ministro Paulo Guedes, desemprego mata”, completou. Para ele, aliás, a culpa da crise sanitária é de prefeitos e governadores e a escolha do novo ministro já se mostra positiva porque Bolsonaro tem usado máscara.
O pleito foi apresentado em um jantar realizado na segunda-feira que contou com a participação de André Esteves (BTG Pactual), Luiz Trabuco (Bradesco) e Carlos Sanchez (EMS) e dos presidentes da Câmara, Arthur Lira (PP-Al) e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Ambos ficaram de levar a ideia – que sempre é bom lembrar, acabou de ser rechaçada pelo próprio Congresso – ao presidente hoje. O pleito seria atendido por medida provisória.
Outro conceito de doação também foi forjado entre os empresários nesse jantar. Eles querem ‘dar’ recursos para abrir leitos para o tratamento da covid-19 e, depois, receber parte desse dinheiro de volta na forma de abatimento no Imposto de Renda. Não seria mais fácil argumentar pela destinação do orçamento do Ministério da Saúde, que deveria ser obrigado a assumir seu papel de coordenação nacional? Ao que parece não quando você pode fazer mais pressão por renúncia fiscal e aproveitar a chance para fazer marketing para sua empresa.
O encontro com banqueiros e empresários aconteceu de noite. Na parte da manhã, Lira e Pacheco se reuniram com representantes do setor saúde. O encontro foi articulado pelo Instituto Coalizão Saúde, capitaneado por Claudio Lottenberg, que durante a pandemia teve oportunidade de revelar a lógica por trás de um mantra do Coalizão que é a “ajuda” do setor privado para o SUS. Isso porque ele lutou contra a requisição de leitos do setor privado pelos gestores públicos argumentando que autoridades sanitárias deveriam abrir mão dessa prerrogativa e se concentrar na adoção de “critérios de triagem” e “sobrevida” para decidir quem recebe cuidados intensivos e quem não. No encontro, surgiu o pleito de que o governo federal zere a alíquota de importação para insumos hospitalares.
No Distrito Federal, faltam no SUS desde ontem 26 medicamentos, cinco deles específicos para intubação. Em São Paulo, o estoque do kit-intubação da rede estadual é suficiente para mais uma semana. O Ministério da Saúde resolveu fazer a requisição administrativa dos estoques dos fabricantes nacionais. Ontem, representantes de farmacêuticas e de hospitais privados criticaram a iniciativa em uma audiência na Câmara dos Deputados. Argumentam que a medida, que é defendida por secretários municipais e estaduais de saúde, pode acabar causando desabastecimento na rede privada e “insegurança jurídica”. Segundo o Conasems, os contratos já firmados pelo setor privado também estão sendo respeitados. O Ministério da Saúde não enviou representante para o debate.
A diretora da Anvisa, Meiruze Sousa Freitas, disse na audiência que a capacidade da indústria nacional para a produção de medicamentos usados no processo de intubação está no limite: “Algumas empresas aumentaram em quatro ou sete vezes, e tem empresas que dedicaram toda a sua produção aos medicamentos de intubação orotraqueal, e isso também é um problema porque há risco de desabastecimento de outros medicamentos de linha”.
Ao Estadão, o presidente da Indústria Brasileira de Gases (IBG), Newton de Oliveira, faz uma análise parecida, desta vez para o oxigênio. Segundo ele, a empresa está atuando com 95% da capacidade. “Tanto nas fábricas quanto na logística, as capacidades são finitas. Chega um momento que a sua capacidade é aquela (no limite).”
Na reportagem, ele lista problemas que vão além da escassez e têm a ver com o manejo do insumo pelos próprios hospitais nesse momento de crise. Isso porque quando a demanda é maior do que a programada, o oxigênio líquido nem sempre é totalmente vaporizado, gerando o congelamento do tanque e, consequentemente, panes nos sistemas de distribuição.
Coincidência ou não, começam a aparecer notícias sobre inquéritos e sindicâncias que apuram se falhas registradas em sistemas de oxigênio resultaram na morte de pessoas. Em Campo Bom, cidade da Grande Porto Alegre, seis pacientes morreram na última sexta-feira e peritos suspeitam de três causas: falha mecânica, possível pane elétrica e problema no software de gerenciamento.
Já em São Paulo, três pessoas teriam morrido por conta de falhas nesse abastecimento em UPAs da zona leste da capital. O caso está sendo investigado pelo MP. A White Martins aponta que a transformação de unidades de pronto-atendimento em espaços de internação pode causar problemas do gênero. “Algumas unidades não contam com infraestrutura apropriada, como tanques de estocagem de oxigênio e redes centralizadas para o gás, ou não têm a dimensão adequada para a expansão do consumo.”
A vacina de Oxford/AstraZeneca tem tudo para ser um dos recursos mais importantes no combate à covid-19: é barata, fácil de armazenar e eficaz. Uma transferência de tecnologia tornou possível sua produção também pelo Instituto Serum da Índia, maior fabricante de imunizantes do mundo, e hoje é essa a vacina que alimenta quase integralmente a Covax Facility.
Mas as coisas não têm corrido bem na trajetória do imunizante. Ontem comentamos aqui que a AstraZeneca havia divulgado os resultados do seu ensaio de fase 3 nos Estados Unidos, relatando uma eficácia global de 79% – e que isso deveria pôr fim às dúvidas anteriores, geradas por problemas na condução e na divulgação dos dados dos testes em outros países.
Acontece que houve um novo revés. O Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (NIAID) divulgou uma declaração incomum, afirmando ter sido comunicado pelo comitê independente que monitora o ensaio clínico de que a AstraZeneca teria incluído informações desatualizadas sobre a eficácia, e que isso teria mascarado os números. Uma carta do comitê para a AstraZeneca foi vazada pelo Washington Post e diz que a empresa escolheu usar os dados mais favoráveis, em vez dos mais recentes. Incluídos estes últimos, a eficácia ficaria entre 69% e 74%. O documento pedia que a farmacêutica divulgasse os dados corretos, o que não foi feito. Depois disso tudo, a farmacêutica divulgou um novo comunicado à imprensa, prometendo atualizar seus resultados até amanhã.
Cá entre nós, se a ‘nova’ eficácia levantada pelo Washington Post se confirmar, é uma diferença muito pequena. O resultado continua sendo muito bom. Mas não deixa de ser mais uma confusão desnecessária da AstraZeneca em relação aos próprios números, e, nesse caso, mais grave do que antes – porque não se trata de erro nos ensaios, mas de uma opção deliberada por ocultar dados.
A nova reviravolta acontece num momento muito ruim, após a suspensão temporária do uso dessa vacina em vários países por conta dos casos de coágulos sanguíneos (apesar de não ter sido comprovada nenhuma relação entre o imunizante e o problema). No fim das contas, o imunizante vai continuar sendo o que já era: bom, barato e acessível. Mas com uma crise de confiança cada vez mais difícil de contornar e, em boa parte, gerada por trapalhadas da própria AstraZeneca.
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Por que o lockdown nacional tornou-se indispensável - Instituto Humanitas Unisinos - IHU