24 Março 2021
“Uma série de manifestações contra a gestão da pandemia de covid-19 choca a política paraguaia. Se durante a primeira onda o país conseguiu resultados surpreendentes, hoje se vê imerso na crise sanitária. As manifestações que apontam para o presidente Abdo Benítez, transcorrem em um momento difícil para todo o país, onde as cifras de contágios disparam, internamente o Partido Colorado se agita e o esgotamento social se acumula”, escreve Ignacio González Bozzolasco, mestre em História pela Universidade Nacional de Assunção, Paraguai, e professor da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Católica de Assunção, Paraguai, em artigo publicado por Nueva Sociedad e reproduzido por Jesuítas da América Latina, edição março de 2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
O dia 7 de março marcou um ano desde que o primeiro caso de covid-19 foi registrado no Paraguai. Nesta conjuntura, as autoridades de saúde do país ganharam elogios nacionais e internacionais pelas medidas rápidas e bem-sucedidas tomadas: fechamento de fronteira e declaração de quarentena total. As decisões adotadas neste contexto tiveram como principal objetivo preparar o deficiente sistema de saúde paraguaio para enfrentar o complexo panorama que se avolumava, tendo em vista a devastação que a pandemia vinha causando em outros países do mundo e da região.
Como apontam vários especialistas, o investimento social no Paraguai é insuficiente para atender às necessidades da população e está muito aquém das recomendações internacionais. Segundo dados de 2019, 72,9% da população paraguaia não possui nenhum tipo de plano de saúde, enquanto o orçamento da administração central para a saúde mal chega a 2,1% do PIB, quando organizações como a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) recomendam alocação pelo menos 6% do PIB para gastos públicos nessa área.
No entanto, os preparativos anunciados pelas autoridades de saúde paraguaias no início das medidas contra a pandemia mostraram um progresso fraco. A compra irregular de suprimentos médicos da China, em abril de 2020, expôs uma rede de tráfico de influência e manejo indevido de compras públicas, dando o primeiro golpe que fez cambalear o então ministro da Saúde, Julio Mazzoleni. As deficiências do governo na gestão da pandemia também se evidenciaram na falta de ação para garantir o fornecimento de vacinas. As quase inexistentes negociações internacionais com os diversos fabricantes, somadas a uma extrema confiança na COVAX - mecanismo de abrangência global que buscava garantir a disponibilidade de vacinas de países de baixa renda - como única alternativa contemplada para a obtenção das vacinas, colocam o país na fila de todas as listas de abastecimento. O primeiro carregamento de vacinas que chegou ao país foi a vacina russa Sputnik V, no dia 18 de fevereiro, com apenas 4 mil doses, o que mal permite a imunização de uma ínfima parte dos trabalhadores da saúde. Essa situação coloca o país entre os menos imunizados da região hoje, com apenas 0,02% de imunizados para cada 100 habitantes. Muito atrás dos 26,62% do Chile, 5,34% do Brasil, 3,35% da Argentina, 3,53% do Uruguai, 1,2% do Peru, 1,02% da Bolívia, 0,71% da Colômbia, 0,43% do Equador e 0,04% da Venezuela.
Mas a gota d'água foi a falta de remédios e insumos básicos nos hospitais públicos, que ficou evidente nas últimas semanas. Tanto a equipe médica quanto os diretores dos hospitais que atendem os pacientes da covid-19 relataram a falta de remédios e outros suprimentos básicos, obrigando os pacientes a cobrir todos os custos. Essa situação gerou não só a reclamação de familiares dos pacientes, mas também o anúncio de sua renúncia pelo diretor do Instituto Nacional de Doenças Respiratórias e Ambientais (Ineram), além do protesto de profissionais de saúde.
Nesse contexto, no dia 4 de março, em sua primeira sessão ordinária do ano, a Câmara dos Senadores instou as autoridades sanitárias a renunciarem ao cargo. Um dos principais argumentos dos senadores foi que esta Câmara apoiou firmemente os pedidos feitos pela pasta da saúde, aprovando todos os pedidos de ampliação de recursos. Porém, o Ministério da Saúde demonstrou grandes falhas na gestão e execução dos recursos, uma vez que equipes médicas e pacientes relatam escassez de suprimentos enquanto a instituição ainda tem “um saldo de 126 milhões de dólares para aquisição de suprimentos” em seu orçamento. Claramente, o tempo economizado pelas autoridades de saúde no início da pandemia com medidas de quarentena foi desperdiçado.
O teor das reivindicações aumentava de intensidade, com insistentes pedidos de renúncia das autoridades sanitárias e até mesmo o impeachment do próprio presidente Mario Abdo Benítez. O primeiro chamado de mobilização da sociedade civil aconteceu no dia 5 de março e atraiu a atenção e o apoio de diversos setores da imprensa. O slogan “Estoy para el marzo 2021” referia-se a dois episódios da história recente da democracia paraguaia. A primeira, à fatídica jornada de protestos realizados entre 23 e 28 de março de 1999, após o assassinato do vice-presidente Luis María Argaña, que culminou com a morte de oito manifestantes, mais de 700 feridos e a renúncia do então presidente Raúl Cubas (1998-1999). A segunda, à manifestação de 31 de março de 2017, contra a tentativa de reforma constitucional liderada pelo ex-presidente Horacio Cartes (2013-2018) que tinha o objetivo de habilitar a reeleição presidencial, que terminou com o incêndio do Congresso paraguaio e o assassinato de um jovem militante na sede do Partido Liberal.
A manifestação de 5 de março, que inaugurou a série de mobilizações em curso, foi massiva. Algumas análises referem-se a uma convocação entre 5 mil e 10 mil pessoas (em uma cidade de pouco mais de meio milhão de habitantes). Mas o que começou como um protesto pacífico acabou em violência policial devido a alguns manifestantes atropelando as cercas de segurança da polícia. As forças de segurança aproveitaram a situação para atacar, desencadeando uma forte repressão que terminou com dezenas de feridos. Isso só esquentou o ânimo de um cidadão afetado pela má gestão do governo, exausto pelos embates da covid-19 e economicamente atingido pelos efeitos da pandemia.
De forma ininterrupta, dias de protesto têm sido organizados ao final da jornada de trabalho, seja nas proximidades da residência presidencial, no entorno do Congresso ou em frente à residência do ex-presidente Horacio Cartes, líder da fração Honor Colorado cujo voto pode definir o impeachment. Embora o número de pessoas convocadas não chegue aos números do primeiro dia de protesto, uma multidão de cerca de 2 mil pessoas tem saído às ruas todos os dias. O que permanece surpreendente é a persistência desses protestos, mesmo sem uma organização ou rosto visível no comando.
No fundo de toda essa situação, dinâmicas e disputas políticas podem ser identificadas muito antes do advento da pandemia. Na jovem democracia paraguaia, certas regras e padrões se consolidaram no jogo político, entre os quais a limitação do poder político do presidente ao término de seu mandato. Não só prevalece a proibição da reeleição presidencial, mas também bloqueia sua inscrição no Congresso. Uma espécie de "aposentadoria política" compulsória.
Além dessas condições, todos os presidentes eleitos desde a queda da ditadura de Alfredo Stroessner em 1989 buscaram formas de superar essa situação. Cada um deles flertou com a ideia da reeleição presidencial, progredindo cada vez mais de presidente a presidente na tentativa de reformar as regras que a impedem. Alguns ex-presidentes também buscaram acesso ao Congresso, como os ex-presidentes Nicanor Duarte Frutos (2003-2008) e Fernando Lugo (2008-2012). Mas, enquanto o primeiro foi proibido de acessar as cadeiras do Senado obtidas nas eleições de 2008 e 2018, alegando cláusulas constitucionais pouco claras, o último conseguiu contornar essa situação com sua destituição por meio de julgamento. De qualquer forma, os dois ex-presidentes conseguiram manter certa presença no cenário político nacional, mas não mais com o patamar de preponderância que outrora haviam alcançado. Não é o caso do ex-presidente Horacio Cartes (2013-2018).
Como seus antecessores, Cartes flertou com a ideia da reeleição presidencial, chegando a ser o presidente mais próximo de obtê-la. Também concorreu ao Senado, cargo para o qual foi eleito, mas, como Duarte Frutos, seu acesso foi bloqueado. A peculiaridade do caso é que Cartes conseguiu manter seu espaço político dentro do Partido Colorado. Mesmo quando seu candidato a presidente foi derrotado no partido interno pelo atual presidente, Abdo Benítez, ele tem a maioria dos deputados colorados no Congresso, além de deputados no Senado, nos governadores e nos municípios. Portanto, continua mantendo uma presença política inusitada, situação nunca vista antes nos ex-presidentes da transição.
Até agora, no governo de Abdo Benítez, o ex-presidente Cartes conseguiu usar sua força política como alavanca para suas reivindicações. Conseguiu assim manter seus representantes à frente do Partido Colorado e articular um certo acordo com o governo. Em todo caso, seu jogo continua sendo o de enfraquecer o presidente para garantir o fortalecimento do cartismo no partido, garantindo-lhe a vitória nas eleições municipais deste ano e a candidatura presidencial de seu setor para as próximas eleições de 2023. As eleições municipais deste ano constituem outro elemento-chave que afeta a retaguarda da atual situação política. No caso do Paraguai, as eleições municipais são realizadas separadamente das eleições nacionais, com intervalo de dois anos. Devido às medidas de quarentena do ano passado, as eleições foram adiadas para 10 de outubro deste ano, enquanto as eleições partidárias simultâneas serão realizadas em 20 de junho. Nesse contexto, fica claro que as diferentes forças políticas do país estão cientes dos desafios eleitorais que se aproximam para o desenvolvimento de suas estratégias de intervenção no cenário atual. Primeiro nas eleições internas e depois nas municipais.
A crise foi atendida pelo presidente Abdo Benítez com exagerada lentidão e parcimônia. Suas principais ações tenderam à substituição de alguns ministros (especialmente na Saúde, Educação e da Mulher) e as negociações com sua principal oposição dentro do partido liderada por Cartes. Em um segundo plano ficou a satisfação das demandas que iniciaram os protestos, que ainda não encontram uma solução clara.
Embora essas medidas tenham conseguido acalmar o ânimo de setores da imprensa (em especial o conglomerado de mídia do ex-presidente Cartes), não desativaram a mobilização nas ruas. Também não paralisaram as ações da oposição no Congresso, que insiste em avançar com o impeachment do presidente, embora os números ainda não sejam favoráveis em ambos. Em todo caso, a oposição parece subsumida às disputas travadas dentro do Partido Colorado, o antigo partido que governou o país durante a ditadura de Stroessner.
Até o momento está claro que a atual crise política não foi superada, além das diversas medidas realizadas pelo governo e dos acordos políticos firmados com alguns setores. A mobilização dos cidadãos continua ativa e a insatisfação geral com a gestão da crise de saúde permanece latente, embora ao governo, com o apoio do cartismo, ainda seja garantido um apoio parlamentar capaz de bloquear qualquer tentativa de impeachment.
Mas nada está completamente definido. A situação pode ser afetada pelas consequências da pandemia que continua a atingir fortemente o país. O crescimento sustentado dos números de contágio, a saturação completa dos serviços de saúde, o atraso no processo de vacinação e a persistência da mobilização nas ruas podem se tornar um coquetel explosivo capaz até de causar a queda do presidente Abdo Benítez. Em todo caso, ainda que sobreviva no poder, sua visão é muito complicada, envolvida em uma crise difícil de superar e cujas consequências parecem encurralá-lo com apenas duas opções: o impeachment ou se entregar aos braços do cartismo.
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O novo ‘março’ que agita o Paraguai - Instituto Humanitas Unisinos - IHU