16 Março 2021
“Francisco entendeu e seus acusadores não entendem: eles têm uma mentalidade religiosa, mas não uma mentalidade divina. E a religiosidade humana está tão exposta ao pecado quanto sua ausência (‘historia magistra vitae’). Somente o Espírito de Deus pode nos libertar daquele pecado da nossa religiosidade pelo qual Jesus parece ter lutado tanto”, escreve o teólogo espanhol José I. González Faus, jesuíta, em artigo publicado por Religión Digital, 13-03-2021. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Da viagem de Francisco ao Iraque perdurarão os discursos e as fotos de encontros com dirigentes políticos ou religiosos. Porém, há algo que me parece mais importante de conservar: a imagem e a recordação de seus encontros com o pai de Aylan Kurdi e com Doha Sabah, vítima do crime da guerra síria e do crime do terrorismo islâmico.
A foto da criança de três anos afogada em uma praia turca deu a volta ao mundo, e nos causou uma pequena sacudida, embora já tenhamos esquecido dela. Tampouco nos disseram que seu pai havia perdido ainda outro filho de 5 anos e também sua esposa. Por mais impactante que parecesse, ver somente a foto do corpo do menino imóvel na praia não é o mesmo que ter visto nascer e crescer aquela criatura inocente, para depois encontra-lo assim. O que terá passado pelo coração daquele pobre homem, nunca saberemos.
Papa com o pai de Aylan Kurdi (Foto: Vatican News)
Nem o que aconteceu com aquela mulher cristã da planície de Nínive que ouviu uma explosão, olhou para a rua e foi informada de que seu filho de 4 anos havia acabado de morrer. Que só pôde “levá-lo ao cemitério e fazer algumas orações”, e que tem procurado perdoar os terroristas, mesmo reconhecendo que “muitas vezes a natureza humana é mais forte do que o chamado do Espírito”.
Que esta dor e amargura, suportadas diariamente no silêncio, tenham encontrado o reconhecimento, a atenção, o tempo e o abraço de alguém que aparece como um líder ou pessoa importante no universo religioso, pode ser um pequeno sinal ou promessa de que nem o mal nem a dor irão tem a última palavra nesta história. Esperançosamente, doravante haverá um pouco mais de paz em suas vidas.
E espero que a nossa humanidade, laica e plural, saiba encontrar uma forma de criar uma espécie de “santos mártires leigos” da nossa história, que teriam a missão que os santos deveriam ter na Igreja Católica: memórias que desafiam (e não meramente pequenos deuses para aproveitar). E espero que encontremos as imagens desses santos mártires leigos nas instalações das Nações Unidas, em todos os governos e parlamentos do mundo, na OIT e (já não me atrevo a dizer) nas instalações do FMI, o Banco Mundial e todos as fábricas de armas do planeta: nesses que são os algozes estruturais e as causas últimas de tanta dor e de tanta amargura silenciosa que povoa esta terra. Isso já não me atrevo de esperar.
Há outra coisa importante no campo de minha Igreja. O pai de Aylan não deve ser cristão, mas muçulmano, suponho. Doha era cristã, mas não católica. O abraço de Francisco aqui tem outro significado que podemos qualificar como “ecumenismo da dor”. Isso me lembra o comentário (mais genérico) de Francisco aos jornalistas em seu voo de volta do Iraque: “alguns me acusam de heresia por essas coisas”. Eu gostaria de me dirigir a esses acusadores fraternalmente.
Vamos todos ler primeiro a passagem do Evangelho da mulher sírio-fenícia (Mt 15,21,28). Jesus começa ali falando como quiçá os acusadores desejassem: humilha a mulher, defendendo o seu projeto inicial de começar “reunindo as ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 10,6; 15,24), com a ideia de passar de Israel para o mundo. Pela nossa mentalidade atual, a mulher poderia ter saído contando a Jesus que ele era um judeu fanático ou um machista ou coisas assim. Ele teria se aventurado, mas teria perdido seu filho. Preferiu aceitar a humilhação pessoal para ver se isso salvaria sua filha. E não apenas conseguiu isso, mas também que a sensibilidade divina de Jesus percebeu imediatamente que ali estava Deus, e modificou seu projeto inicial (nos evangelhos, quando Jesus diz a alguém “grande é tua fé” é como se estivesse dizendo que Deus fala por ti).
Papa com Doha Sabah (Foto: Vatican Media)
Jesus sabia perfeitamente o que praticava com seus modos de cura: que o que mais une os homens diante de Deus é a dor compartilhada; mais do que todas as inevitáveis e dolorosas divisões de mentalidade, religião ou igreja que a história vem provocando. Se não bastasse que, diante de Deus, em vez de ateus, muçulmanos, budistas ou cristãos, sejamos todos seres humanos e, portanto, seus filhos, ainda há aquele que diante de Deus, todos podemos ser iguais pela dor compartilhada.
Isto é o que eu acho: que Francisco entendeu e seus acusadores não entendem: eles têm uma mentalidade religiosa, mas não uma mentalidade divina. E a religiosidade humana está tão exposta ao pecado quanto sua ausência (‘historia magistra vitae’). Somente o Espírito de Deus pode nos libertar daquele pecado da nossa religiosidade pelo qual Jesus parece ter lutado tanto.
E que Abdulah Kurdi (pai de Aylan) e Sabah Abdalah venham a ser como as portas desse novo ecumenismo. Como eu disse antes, o que nosso mundo ocidental precisa é ter a coragem de colocar toda a imensa dor do mundo sobre a mesa. Embora não seja justo citar, atrevo-me a repetir o que escrevi há mais de quarenta anos: “o serviço à dor do mundo é o lugar de superação da eterna antinomia entre imanência e transcendência” (La Humanidad Nueva, p. 692 da última edição).
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O ecumenismo da dor. Dois encontros de Francisco no Iraque - Instituto Humanitas Unisinos - IHU