"bad bahia é também, como no título do álbum de leonard cohen, uma nova pele para uma antiga cerimônia, um milagre do canto no tempo, onde as dualidades entre corpo e alma, vida e morte, dor e gozo, masculino e feminino, mistério e desencanto, espera e lembrança se esfumaçam e nos traga pra dentro de um universo circular, cheio de mel e ferida, assombroso, urgente, necessário", escreve Rafael Julião, professor e pesquisador de canção popular.
bad bahia (2020) é o nome do quarto disco solo de bruno cosentino, seu quarto minguante, um quarto lateral de delírio e lembrança, um tanto encoberto, outra estação.
amarelo (2015), o primeiro, começa na tarde, um deserto seu umbigo amarelo onde desperto, o amor que a tanto obriga, um pouco protegido, um pouco sublime, sublimado, sem saber ao certo se saberia dançar a dança, oferecer a uma face. aí, vem babies (2016), o segundo, que é puro verão, sol do meio dia, pop, extrovertido, alegria do corpo, peixe elétrico na boca, luz sobre o sexo, andrógina dança. aí, vem o terceiro, corpos são feitos pra encaixar e depois morrer (2017), avesso complementar do anterior, íntimo e romântico, que fala ao ouvido do homem que baila na piscina vazia; é sobre estar durante o depois, adiante do acontecido, a sempre dúvida do que fazer com o corpo. aí, vem bad bahia (2020), o tal quarto que é depois do depois, a cidade na cabeça, desfazimento, partida e parto, antes de tudo.
a história também se conta na série dos quatro cosentinos recortados nas capas de cada disco. amarelo exibe o centro do corpo — sem cabeça púbis braços pernas — seu torso nu, de frente, escultura renascentista a se espreguiçar. em babies, sua face andrógina lambe feminina os dedos de vermelho, sangue e batom. já o rosto masculino de corpos… surge sério, cavanhaque, maduro, cubista, entre o verde das folhas. em bad bahia, p&b, a imagem escuro-difusa de uma parte sem ênfase — lateral do rosto sem olhos boca, nada abaixo do busto membros torso umbigo ou mamilo — apenas o queixo erguido, uma orelha e o pescoço à mostra, garganta, jugular. desta vez, a fotografia de ana rovati nos oferece, literalmente, um negativo.
os três primeiros discos despiram-se imediatamente, um por ano, ansiosos por se mostrar: 2015, 2016 e 2017. o artista entende que é preciso fazer pra fazer melhor; despojar-se pra ser parte de sua época. ouço falar de bad bahia há bastante tempo, teve até show na audio rebel. soube que já estava pronto ou quase pronto: faltava alguma ordem, algum ajuste, um texto de apresentação, a voz de uma mulher. enquanto faltava, foi ganhando densidade na incubadora. quando lançado, continuou falando sobre uma coisa que segue faltando: nisso está sua integridade.
o título bad bahia, a despeito da fluidez sonora, provoca um incômodo. é como se a bahia, imaginada como berço da alegria e da brasilidade, não se pudesse prestar à tristeza, ainda mais estrangeira. quem conhece a axé music sabe que salvador é a cidade de luz e prazer correndo atrás do trio, nascida pro já chegou o verão, o sonho de uma alegria eterna, de um tempo onde viver seja só festejar. assim, o disco de bruno cosentino parece se instalar em uma bahia diversa, oculta, ausente, paisagem também em negativo.
a cidade da bahia é o canto da própria capital mítica de um país, diáspora e encontro. é o lugar que leva de dorival caymmi a joão gilberto, de carmen miranda a margareth menezes, de maria da graça a gal costa, de raul seixas a ivete sangalo, de bethânia aos filhos de gandhi, de olodum a michael jackson. é o dentro e o fora da terra de caetano veloso, sua aposta e sua alegria. é o baú de prata de gil exilado em londres, “back to bahia”, lembrando de ouvir celly campello pra não cair naquela bad que viu um companheiro seu de portobello cair. lá tem vatapá, caruru, acarajé, tudo quente, procissão de fitas do bonfim, atabaques na igreja do rosário. você já foi à bahia? a bahia tem um jeito, é um lugar real — um mito de origem.
“bad bahia” é também o nome da primeira das oito canções do disco. em certo sentido, é também a única: espanta a unidade de sons e imagens ao longo das oito faixas. é como se células diaspóricas provisórias aos poucos fossem se testando, se recombinando, até ganharem uma forma definitiva, uma cadeia, um sistema de órgãos: um corpo.
as oito canções do disco têm letra e melodia de bruno cosentino; são quase que só dele. mas também de um você, interlocutora e objeto, cabeça e cidade, fantasma e corpo, a quem se confessa e acusa.: quando penso em você tenho vontade de morrer no meio da noite sem ar; você me arrasou; você não sabe o que eu sofri.
bad bahia, o disco, tem uma arquitetura, tem que ser assim, tudo no lugar certo. “bad bahia” é princípio e fim, medula. pelos membros as canções de amor: “ciúmes”, “o silêncio dos teus olhos”, “quando penso em você”, “você não sabe o que eu sofri”, duas em cada hemisfério. “nas tetas da loba” é também, mas numa cidade outra, chacra de base. “o grande azul” é o umbigo, centro solar do disco, ponto de equilíbrio. “o difícil sol” é o epílogo; o baiano gil nos ensina: morrer deve ser escuro como na hora do parto.
“bad bahia”, a canção, começa com o silêncio ruidoso do mato, segundos depois interrompido por tambores e por uma voz que (se) anuncia: eu sigo entre a lembrança e a esperança do dia. trata-se de um toque de exu na primeira faixa, o mesmo que se ouve na última de corpos são feitos pra encaixar e depois morrer, sob o título de “três (toque pra nascer)”. nesse desfecho, bruno cosentino acompanha com a voz a errática cantiga do filho pequeno, que, aliás, se chama antonio. início, meio, início. exu é quem come primeiro.
mais de uma vez, já li e ouvi o bruno falar sobre o mito do nascimento de exu, o primeiro nascido, no qual se equilibram os princípios do masculino e do feminino, herdados da mãe e do pai primordiais. assim, o orixá que ostenta seu ogó, o instrumento fálico, é também diretamente associado à androginia, elemento que interessa sobremaneira ao compositor, atravessa sua obra de ponta a ponta, aponta para uma forma outra de masculinidade, e não poderia faltar em sua bahia particular.
nas canções de bruno cosentino (e mesmo na sua voz e na sua presença no palco), percebemos frequentes deslizamentos do gênero, onde o masculino e o feminino se buscam, se encontram e se desencontram — na interação entre os pares, mas também dentro de si próprios. o banquete de platão se oferta ao nascimento de exu.
na poética de bruno cosentino confluem com naturalidade e sutileza os elementos de sabedorias ancestrais, da filosofia ocidental, da ritualística pagã, do sagrado religioso, da música negra, da poesia erudita, da literatura modernista e da canção popular, por vezes aprendidos uns com os outros.
de volta à “bad bahia” a canção logo se autorreferencia: tua cara é uma afronta, eu ria quando me dizia pra evitar as bads. logo no início, portanto, a presença desse corpo e dessa fala já prenunciam o embaralhamento de sensações que decorre do encontro. impressiona a profusão de imagens que se excitam no permanente fluxo centrífugo-centrípeto e que não se pacificam ao longo de toda a canção (todo o disco): meu anjo me corta de baixo acima, tua alegria é mais do que preciso pra morrer, regaço da tua justiça melancolia que me resta pra renascer, na água do teu olho caio fruto podre reflexo violento amoral, penso em você me masturbo e choro muito, um menino é sempre um menino ardendo, o útero mundo estúpido escuro desde o fim cara clarão, eu declaro meu amor na diáspora a desrazão centrípeta do meu no teu centro tambores: tambores.
a presença do corpo, elemento fundamental da poética de bruno cosentino, se afirma assim, a todo instante, nas palavras, nas imagens, na dicção do canto, nos vocalises, nos arranjos, nos tambores e nas distorções de sintetizadores e guitarras. em bad bahia, esse corpo aparece, como nunca, tão retorcido, fragmentário, expressionista, surreal, geométrico, embaçado. sua maturidade de compositor se evidencia no ineditismo do assunto mesmo, cara clarão.
poderia ser um trabalho totalmente solo, violão e voz, mas não. quem assina a produção musical do disco é marcos campello, coautor da miragem de “homens flores” (parceria com luís capucho, gravada em babies), e interventor externo do delírio físico de bad bahia — arranjos, texturas, desvios. o disco conta ainda com a bateria e percussão de pedro fontes e os baixos de guilherme lírio (ambos recrutados do exército de bebês, parceiros de babies e corpos...), além dos pianos e cordas de marcos lobato, e as participações pontuais de pablo arruda e mário ferraro.
a sonoridade de bruno cosentino é permanentemente atravessada por um desejo de pulso, de groove, de flow. o corpo em si, o corpo no outro, o corpo na cidade, o corpo e seus ruídos, traduzidos em música, com suas harmonias, estranhamentos, acalantos e ruídos. a dor e o desejo inseparáveis que aprendeu com o blues. os pactos que é preciso fazer nas encruzilhadas.
a canção autoral contemporânea segue se debatendo entre a tradição e a inovação, o comercial e o vanguardista, o pop e o experimental, o cult e o povão. mas tudo mudou: os termos são outros, é bem verdade, deslocamentos, sublimações, recalques, repetições. bruno sabe dessas coisas, está nelas, me ensina.
as contradições do cancioneiro de bruno cosentino não se atrapalham; é preciso assumi-las. ele curte experimentos, estranhezas, loucurinhas. mas está atravessado por gostos extremamente populares: a sofrência, a canção pra novela, aquela que o público reconhece em si e sofre junto, sozinho, em comunhão.
com bad bahia, bruno cosentino se firma definitivamente como um cantor romântico contemporâneo. esse cantor já existia desde antes da carreira solo, quando, ainda com a banda isadora, deu melodia e voz aos lindos versos de eucanaã ferraz: nunca mais será setembro, nunca mais a tua voz dizendo... (“setembro”). sentimos verdade nas palavras, emprestadas de camões, em “amor a quanto obriga” de amarelo. entramos na sua em “me embaralhe ria dance na beira da cama dance” (com omar salomão) de babies. e embarcamos nas sensações de corpos, que começa com a constatação nítida, é claro que eu queria você só pra mim (“é claro que eu queria”), passa pela balada edipiana “eu quero ser sua mãe” (de luís capucho, importantíssimo) e chega à canção-título, que conclui: corpos são feitos pra encaixar e depois morrer. a recente gravação de “fui fiel”, de pablo, e a recentíssima gravação de “canção do amor impossível”, poema de antonio cicero com melodia de cosentino e acompanhamento de guinga, reforçam esse pertencimento, bem como sua dupla inclinação ao romântico e ao moderno.
assim sentimos os versos iniciais de “ciúmes” (você me arrasou e eu mando essa letra porque naquela noite não consegui dormir), e também seu refrão, espécie de questão transversal de toda a obra de bruno cosentino: cada um tem seu lugar no corpo do outro, no ninho da pessoa, eu, que lugar tenho no seu?. assim, reunimos os pedaços da mulher de joelhos por cima de bruços de manhã no claro instante do prazer de “o silêncio dos teus olhos” e estremecemos ao ouvir a voz agônica, desdobrada e desesperada, na sequência imediata: ouço o grito insuportável da tua solidão. o primeiro verso de “quando penso em você” nos dói fundo o desejo de completar fecho os olhos de saudaaAAde, tenho tido muita coisa, menos a felicidade, mas somos levados a outros caminhos. aliás, bruno cosentino, no show de amarelo, canta lindamente “tambores”, do mesmo fagner, tudo a ver. estranhos e familiares, assim encaramos também a cidade abandonada de “você não sabe o que eu sofri”, a afirmação que o amor não existe, tudo envolvido nas distorções de guitarras e sintetizadores, e na volta dos tambores. não serei seu homem e você não será minha mulher, sentencia “nas tetas da loba”, fatal.
a canção “nas tetas da loba” vem de uma musicalidade sombria, quase litúrgica, a voz grave sobre os versos: eu vi você na cidade europeia, do alto, acenando pra mim. a letra fala de uma aparição, outra vez, a figura do outro que surge no susto pra embaralhar as posições e revelar o abismo pré-natal: o vislumbre dos desencontros e das vidas que serão ou não vividas. o título nos remete à tal cidade europeia em mais um mito de origem, desta vez o de roma, dos irmãos abandonados e alimentados pelo corpo animal feminino, origem e declínio dos impérios.
a cidade europeia, seja ela roma, londres ou lisboa, é antes ambientação que atravessa a esperança e a lembrança, o sujeito e suas relações, lugar de fecundação. postais e ruínas, rio de janeiro, são paulo e salvador pulsam com suas cores, enquadramentos, evocações, mitos, ruídos, miragens e segredos.
no centro do disco, uma canção funciona como ponto de fuga, profundidade, perspectiva. enfim um samba axé-solar toca a bahia reconhecível do título e nos ilumina. o você enfim cola no pescoço salgado, toca o corpo, veja onde a gente se achou. o canto, as palmas, o coro, é tudo alegria, fruição, ausência de filtro, a despeito do perigo que é apostar na alegria. caetano veloso se esconde e se mostra aqui, no redesenho das cidades. no “the big blue” de babies bruno cantava que corpos são azuis, que nascemos nus e podemos dançar mar adentro dentro. em “o grande azul” de bad bahia é ainda mais azul, porque precisava ser, o arco céu-e-mar uno inteiro encontro, rio eterno verão da bahia, finalmente nosso. mas o mar também é o da travessia, do grande milagre da música no ocidente, místico corpóreo caymmico transcendental, onde nos vemos inteiros no dois de fevereiro, dando palmas: era dia dela espelho do mundo yemanjá.
no contraponto o epílogo, tão longe e tão perto do sol, que nasce amarelo e tinge de azul. saímos do disco na agonia do sol, nascente e poente, dentro um do outro gozamos loucos doentes e agora antes de nos tornarmos tristes… é chegada a hora do difícil sol, as pequenas mortes de que tudo é feito. a canção é invadida pelos sons externos, a natureza e a cidade, o barulho dos carros passando, o trânsito e as buzinas, tudo passando dentro da gente, engolidos que somos pra dentro da canção, o amor, o susto, o gozo, a morte, paixão de tudo, no asfalto imundo de são paulo eu te amo, dói em nós.
bad bahia é também, como no título do álbum de leonard cohen, uma nova pele para uma antiga cerimônia, um milagre do canto no tempo, onde as dualidades entre corpo e alma, vida e morte, dor e gozo, masculino e feminino, mistério e desencanto, espera e lembrança se esfumaçam e nos traga pra dentro de um universo circular, cheio de mel e ferida, assombroso, urgente, necessário.
bad bahia é o quatro de bruno cosentino, o último. será também seu primeiro.