21 Novembro 2020
"Avança esforço para contestar núcleo da desigualdade e alienação, no capitalismo. Novas moedas, as altcoins, propõem atribuir às ações humanas valores definidos não pelo mercado, mas pela consciência coletiva. Será delírio ou lucidez?", escreve Hannes Gerhardt, professor associado de Geografia Humana na Universidade de West Georgia, em artigo publicado por Outras Palavras, 19-11-2020. A tradução é de Simone Paz Hernández.
Em um pequeno barco, na costa da Tailândia, os pescadores fazem um balanço de suas coletas do dia. Eles sacam um telefone, abrem um aplicativo e registram informações essenciais sobre a quantidade de peixes capturados, o local, a hora e sob quais condições. Sobem tudo isso num banco de dados com informações semelhantes às de outros pescadores; o próprio peixe é embalado com uma etiqueta vinculada a todas essas informações de abastecimento.
Os pescadores são creditados com uma criptomoeda chamada Fishcoin, que eles podem resgatar fazendo o uso dos caros dados móveis de sua operadora de telefonia local. Se tiverem os meios, também podem negociar o Fishcoin em mercados de criptomoedas online. As informações sobre o pescado são de grande interesse para governos, empresas e consumidores desejosos de obter frutos do mar sustentáveis, a, que usam o Fishcoin para pagar pelo acesso, reforçando uma moeda que atende aos pescadores locais e à gestão ambiental.
No Canadá, a Sensorica, uma “rede de valor aberto”, produz sensores e equipamentos de detecção. Um de seus projetos recentes é um aplicativo e sistema de detecção que pode ajudar a monitorar e auxiliar no uso seguro de áreas urbanas específicas durante a pandemia. O que é novo e diferente neles é que não há chefes; os trabalhadores controlam os projetos para os quais contribuem e são pagos por meio de um sistema de contabilidade de valor habilitado por algoritmos, baseado principalmente na quantidade e na qualidade do trabalho. A Sensorica se vê como oferecendo uma nova visão peer-to-peer (de “pessoa para pessoa”) de manufatura em que, as pessoas criam valor juntas, contribuindo com trabalho, dinheiro e bens — e dividindo a renda.
Na Catalunha, a FairCoop, movimento de inspiração anarquista, vem tentando remodelar o sistema econômico global atual do zero. Ela busca esse objetivo por meio de uma criptomoeda chamada FairCoin, que pretende se tornar o meio de pagamento preferido para bens e serviços entre agentes cooperativos com ideias semelhantes no mundo todo. Acredita-se que, com um conjunto de ativos suficientemente profundo, denotado na FairCoin, será possível criar certo grau de independência dos mercados capitalistas, especialmente para atender às necessidades básicas.
Um Commons Bank (“Banco dos Comuns”) foi desenvolvido para atender à FairCoin; além de um FairMarket online com bens e serviços denominados em FairCoin. Ao controlar essa criptomoeda, a FairCoop será capaz de financiar iniciativas contra-capitalistas centradas nos bens comuns, como a FreedomCoop, que oferece serviços jurídicos e bancários para indivíduos autônomos que buscam ganhar a vida fora das garras exploradoras do capital ou do estado.
Os casos acima podem parecer díspares, mas todos eles têm um interesse comum no uso da “tecnologia criptográfica” — muitas vezes referida como “blockchain” — como forma de repensar [e subverter] a atribuição de valor submissa às leis do mercado. Ao oferecer novas maneiras não capitalistas de medir e buscar valor(es), o blockchain promete buscar um caminho econômico alternativo ao capitalismo tal como o conhecemos. Supondo termos o poder social e político, como isso seria feito?
Antes de abordarmos a tecnologia, é importante ter clareza sobre o sistema disfuncional de valores que domina a ordem econômica atual. Na Roma Antiga, o pensador Publilius Syrus capturou aquilo que mais tarde se tornaria o dogma capitalista, ao dizer: “O valor de tudo é o que o comprador pagar”.
Hoje, o obscuro funcionamento de mercado — a “mão invisível” de Adam Smith — é visto como um supercomputador onipotente, gerando o valor atual de tudo na forma de preços. Segundo Karl Marx, essa redução simplória do valor ao preço de mercado aconteceu quando a lógica básica por trás as interações econômicas deixou trocar de mercadorias com a ajuda do dinheiro (M-D-M). A partir de certo ponto, as próprias mercadorias passaram a ser um meio de ganhar mais dinheiro (D-M-D). O dinheiro, então, tornou-se o marcador de todo o valor do mundo.
Tal sistema de avaliação, que é a própria base do capitalismo, não deixa espaço para quaisquer considerações de valor derivado ou inerente, muito menos de valores éticos. As consequências são claras: a redução do trabalho ao preço leva à exploração; ver as mercadorias como desconectadas do trabalho resulta na alienação de trabalhadores e consumidores; e a externalização sem fim dos custos ambientais leva ao colapso dos ecossistemas globais.
Portanto, seguindo essa lógica, qualquer movimento contra-capitalista deve explorar maneiras pelas quais os valores — e não só um único valor abrangente — possam ser reincorporados na avaliação, internalizando aspectos da economia geralmente excluídos ou ocultos — tanto os bons quanto os ruins. Atualmente, desenvolvem-se esforços inspirados na tecnologia, conforme ilustrado nos exemplos acima, exatamente com esse objetivo.
O blockchain é um banco de dados digital, descentralizado, de transações de troca de valor — basicamente, um registro (ou livro razão). É aberto para a visualização de qualquer pessoa, como um documento compartilhado do Google. Aqueles que participam da visualização e da construção do razão são chamados de “nós”. O livro razão é estabelecido em uma sequência linear de conjuntos de dados criptografados com data e hora, ou “blocos”.
É quase impossível adulterar o livro razão, graças a uma série de medidas de segurança engenhosas, das quais a mais importante é que o blockchain é baseado no consentimento da maioria dos nós, ou seja, é uma segurança descentralizada, peer-to-peer, sem um site central que possa ser comprometido. O blockchain de contribuição de longo alcance, oferece a capacidade de criar e manter registros incorruptíveis de trocas monetárias, de produtos ou de trabalho, entre muitas outras coisas, sem intermediários centralizados como um banco, um chefe ou um governo.
Agora, também, estamos começando a ver o desdobramento das tecnologias de blockchain de segunda e terceira geração, que foram além da captura de transferências de valor para estabelecer sistemas inteiros de trocas de valor, usando contratos inteligentes. Um contrato inteligente é um programa habilitado para blockchain, do tipo “se-então”, no qual um determinado evento só é acionado se uma determinada condição for atendida, a qual, por sua vez, pode ser avaliada por sistemas peer-to-peer ou automatizados.
Por exemplo: o sistema de contabilidade de valor do Sensorica seria baseado em autorrelato e verificação de grupo. As informações fornecidas por pescadores que reivindicam o Fishcoin, podem ser avaliadas por meio de uma combinação de equipamentos de detecção autônomos, auditorias e confiança na honra dos usuários. Os contratos inteligentes também podem ser integrados em sistemas maiores, usando aplicativos de inteligência artificial (IA) para criar organizações autônomas distribuídas. Pense, agora, em toda a rede de valor aberto da Sensorica sendo codificada, desde os artigos de associação até os estatutos; isso significa que todo seu ambiente de produção teria sido criado para funcionar de forma autônoma, de acordo com normas e valores específicos.
Apesar de seu potencial para reduzir o risco de patrões e rentistas, é importante reconhecer que o blockchain não é inerentemente transformador. Na verdade, ele incorpora os sentimentos liberais que estão arraigados no sistema capitalista de valores: centrados no mercado. Isso significa que os contra-capitalistas inspirados na tecnologia terão que, fundamentalmente, redesenhar, redefinir e regovernar o código subjacente do blockchain.
A FairCoin, por exemplo, contornou com sucesso as absurdas quantidades de energia exigidas pelo sistema de verificação dos blockchains tradicionais, recodificando o procedimento pelo qual os blocos são adicionados. A FairCoin também adotou arranjos de administração aberta e democrática para gerenciar seu código, a fim de evitar as estruturas de tomada de decisão empregadas em sistemas como o Bitcoin, que costumam ser protegidas e pouco transparentes.
Alguns programadores orientados para bens comuns estão desenvolvendo sistemas de contabilidade criptográfica para além do blockchain, por meio dos quais redes anônimas e “não confiáveis” são substituídas por grupos de confiança interligados, permitindo, assim, maior velocidade e escalabilidade no processamento de dados. Um desses esforços é o “Holochain”, inspirado na biomimética, um código semelhante ao do blockchain, descrito como um “método e sistema de recompensa, para o armazenamento e acesso de dados e aplicativos entre os próprios usuários”.
O objetivo final do projeto Holochain é superar a centralização da Internet, que depende de servidores, por meio do aproveitamento dos excedentes de poder de processamento e de armazenamento de hardware dos computadores dos participantes, criando uma verdadeira Internet peer-to-peer, ou “rede Holo”.
Em algum momento, essa rede exigirá a adoção generalizada de HoloPorts, o hardware que permite o compartilhamento de energia do computador, bem como outros aplicativos Holo descentralizados, que serão executados na rede Holo. Os aplicativos Holo, ou Happs, geralmente visam fazer uso da natureza peer-to-peer da rede, expandindo-a e envolvendo desde plataformas de mídia social alternativas, como o Junto, até monitores de energia e sistemas de distribuição como o Redgrid.
Como este novo e sofisticado código poderia desafiar a devastação humana e ambiental causada pelo sistema de valor do capitalismo? Sabemos que o sistema atual reduz o trabalho a uma mercadoria explorável. Na rede de valor aberto da Sensorica, no entanto, a exploração do trabalho é desafiada pela criação de um sistema de contabilidade de valores que é inerentemente meritocrático e justo, onde o trabalho realizado dentro de um projeto também pode ser creditado se for escolhido por outros. É um arranjo de produção peer-to-peer baseado em bens comuns e enraizado em valores fundamentalmente anticapitalistas: colaboração, abertura, descentralização; ainda que seus proponentes acreditem que ele possa competir com — e, em última instância, substituir — os agentes capitalistas de mercado.
Desenvolver este sistema tem sido um dos principais objetivos da Sensorica, que agora está buscando soluções baseadas em blockchain para aumentar sua funcionalidade, escalabilidade e segurança. O Holochain é um dos principais candidatos a construir essa infraestrutura.
O princípio de codificar ambientes centrados em bens comuns como esses, também é o que impulsiona a criação da Agência Espacial Econômica (ECSA), um coletivo global de economistas anticapitalistas e cientistas da computação, que buscam expandir e aumentar a produção baseada em valores, procurada por redes como a Sensorica. De acordo com Tere Vadén da ECSA, o objetivo é criar ambientes de interação econômica que “[…] codifiquem mecanismos de incentivo e escolham métricas de avaliação específicas de conjuntos não-monetários (desde relacionalidade, confiança e qualidade, até terra, trabalho e bens materiais) em contratos inteligentes”.
É importante ressaltar que os valores que estão sendo codificados nesses ambientes, que podem se expandir para muito além de uma única empresa e abranger economias translocais, não só não se limitam à mão de obra, como também podem abordar questões ambientais. De acordo com David Dao, um pioneiro no uso de organizações autônomas e distribuídas para promover a sustentabilidade, “hoje em dia temos ferramentas acessíveis para criar incentivos econômicos com eficiência, de uma maneira barata e escalável… destilando (cripto) incentivos em código, agora somos capazes de tratar a economia como um simples software”.
Impulsionado por essa convicção, Dao fundou a GainForest, que usa uma combinação de contratos inteligentes para conectar doadores, comunidades florestais e sistemas de verificação sofisticados para financiar e apoiar o manejo florestal sustentável, especificamente nos territórios indígenas Kayapó, no Brasil.
Fora a exploração, o capitalismo cria uma sensação de que bens e serviços são coisas autônomas cujo valor é diretamente capturado em seu preço, obscurecendo assim como esse valor é realmente derivado. É isso que Marx chamou de “fetichismo da mercadoria”. Essa visão das mercadorias contribui significativamente para a alienação dos trabalhadores, porque quebra a relação interpessoal entre produtor e consumidor. Também, leva a uma desconexão entre o consumidor e a natureza.
Voltando à Sensorica — a mão de obra voluntária, empoderada e justamente remunerada, possível e viável em grande escala, por meio de redes de valor aberto, ativadas por blockchain — poderia ser uma forma de devolver certo senso de propriedade à mão de obra fornecida. A FairCoop é outra instância em que a alienação dos trabalhadores é desafiada ao facilitar o trabalho autônomo com a ajuda da criptomoeda alternativa, a FairCoin. Da mesma forma, a Fishcoin desafia a desconexão inerente ao fetichismo das mercadorias entre produtores e consumidores, por meio de cadeias de suprimentos mais transparentes.
Ao documentar meticulosamente as várias etapas da produção, produtores e consumidores podem desenvolver e responder às várias dimensões humanas e naturais de uma determinada atividade económica. O sistema baseado em blockchain que revela as inúmeras fontes de frutos do mar que comemos, por exemplo, é um primeiro passo para superar a ofuscação das formas de consumo existentes, ao mesmo tempo em que serve para rastrear e, portanto, gerenciar os recursos explorados. O potencial aqui é significativo.
Imagine um produto em que cada etapa do processo de produção, desde a matéria-prima até a montagem final, documenta onde ocorreu o processamento ou a produção, as condições de trabalho e a pegada ambiental acumulada. Cada etapa da cadeia de produção seria outro bloco no blockchain, em que cada transação é documentada por partes confiáveis e validada no livro razão digital. Assim, os produtos receberiam um código de identificação que poderia, por exemplo, ser escaneado por um smartphone para revelar toda a história do produto e resumir seus impactos sociais e ambientais.
A Icebreaker, uma empresa especializada em roupas de lã Merino, com sede na Nova Zelândia, foi pioneira nesse sistema ao criar um “baacode”. O código pode ser escaneado em cada peça de roupa, revelando um registro completo da produção, incluindo fotos e vídeos de ovinos nas regiões altas até a montagem final em uma ou mais de suas fábricas espalhadas pelo mundo.
Contudo, existem limitações. Roupas são uma coisa, mas fornecer histórias detalhadas e avaliações de impacto para produtos complexos, daqueles que contêm centenas de peças provenientes de todo o mundo (como carros), exigiria um nível de coordenação totalmente diferente e sem precedentes. Além disso, mesmo se tais sistemas de rastreamento pudessem ser estabelecidos, seria falso sugerir que eles resultariam em laços estreitos entre consumidores, trabalhadores e a natureza; as complexidades e distâncias de trabalho envolvidas na agricultura e na manufatura são grandes demais.
No entanto, a maneira enganosa como a fetichização da mercadoria nos cega para o que a produção realmente envolve, nos mostrando apenas o preço, poderia ser (pelo menos) atenuada, ao estabelecermos registros de história e impacto visíveis, detalhados e confiáveis.
Uma ferramenta para capturar e promover formas alternativas de avaliações de maneira crítica e baseada em códigos, conforme demonstrado pelas Fishcoin e FairCoop, é o uso de criptomoedas baseadas em valores, ou altcoins.
As criptomoedas dão aos seus emissores o poder de denominar e quantificar ativos específicos, ganhando assim alguma independência do dinheiro emitido pelo Estado — ao mesmo tempo em que possibilitam o acesso a ele. A indústria de tecnologia de blockchain, por exemplo, usa criptomoedas há muito tempo como uma forma de financiar seus empreendimentos por meio de “ofertas iniciais de moedas” (ICOs – inicial coin offerings), onde as criptomoedas são vendidas por dinheiro “real”. Embora as ICOs tenham sido atormentadas por especulação e fraude, isso pode ser evitado com altcoins bem intencionados.
Arthur Brock, do projeto Holochain, afirma que há espaço para centenas de altcoins, que podem ser legitimamente usadas para financiar e incentivar a participação em projetos intencionais e voltados para valores. Brock sugere que essas moedas possam ser projetadas para atuar como reservas de valor ou como amplo meio de troca.
De acordo com Brock, a chave para lançar uma altcoin de sucesso é garantir que ela realmente tenha valor — de modo que possa ser utilizada para adquirir algo de valor. O Fishcoin, por exemplo, é usado para incentivar a coleta de informações pelo pescador interagindo diretamente com os recursos comuns. Ele alcança seu valor porque pode ser usado para comprar dados de telefones celulares e informações cobiçadas sobre frutos do mar colhidos. Como a demanda por essas informações é relativamente estável, esse token pode servir como uma reserva segura de valor. Sistemas de incentivos semelhantes, também baseados em altcoin, podem ser concebidos para apoiar outros bens ou serviços. Por exemplo, a capacidade de processamento e armazenamento de computadores (como a rede Holo), viagens de carona ou alimentos produzidos em cidades.
O Solarcoin é um desses modelos, onde qualquer pessoa que produz energia solar tem direito a receber Solarcoins. No entanto, essas moedas terão apelo limitado se não puderem ser usadas para mais nada. Assim, no caso do Solarcoin, seu valor aumentaria dramaticamente se as cooperativas de eletricidade, por exemplo, aceitassem Solarcoins como pagamento pelo uso de energia. A Solarcoin também poderia entrar no negócio de reunir e analisar dados de energia das famílias e empresas participantes, que poderia então vender em Solarcoins como forma de garantir dinheiro emitido pelo Estado.
Em última análise, Fishcoin e Solarcoin buscam promover atividades baseadas em valores específicos, em um mundo dominado pelo mercado. Ainda assim, se o objetivo é realmente desafiar o capitalismo, então seria necessário se desvincular significativamente das avaliações de mercado. Essa é a aspiração da FairCoin, entre outras altcoins semelhantes, que buscam se tornar as fichas que denominam o valor de um reino econômico autônomo substancial. Seu sucesso depende de uma ampla participação dos agentes econômicos comprometidos com o projeto.
Emboram seja mais difícil de realizar, as possibilidades abertas pela FairCoin são melhores do que as iniciativas de moedas alternativas anteriores, facilitando transações digitais seguras e habilitadas para blockchain no mundo todo, sem intermediários caros. Isso permitiria um “mercado” muito mais expansivo. Se esse mercado atingisse massa crítica, a FairCoin se tornaria um meio de troca viável. Nesse ponto, agindo essencialmente como o “banco central” dessa moeda, a FairCoop estaria em posição de mobilizar recursos significativos para perseguir seus objetivos na economia política.
É claro que existem vários obstáculos a serem superados para que o blockchain estabeleça definições de valar alternativas, em um sistema econômico dominado pelo capitalismo. Por exemplo, a abordagem de uma rede de valor aberto para organizar a produção poderia ser cooptada por organizações menos orientadas para os bens comuns. Algum grau de centralização poderia ser reinserido, com arranjos de pagamento ajustados, enquanto a reprodução social dos trabalhadores, como a saúde, poderia permanecer externalizada e desvalorizada.
Também é possível imaginar os esforços, cada vez mais voltados para o lucro, para capturar os valores de cadeias de suprimentos, meticulosamente documentados. O Fishcoin e o Baacode, por exemplo, foram concebidos por empresas com fins lucrativos, mesmo que elas considerem que estão realizando uma missão mais ampla. Embora a incorporação de valores não-capitalistas a sistemas de produção capitalistas não seja necessariamente ruim, não deixa de existir o risco constante de que os motivos lucrativos acabem por dominar. O fato de o inovador Baacode ter sido abandonado logo depois da compra do Icebreaker pelo conglomerado de varejo americano VF Corporation ilustra, claramente, essa preocupação.
Para enfrentar esses ventos contrários, qualquer movimento voltado aos bens comuns e comprometido com sistemas de alternativos de definição de valor, deve encontrar maneiras de proteger esses bens comuns, enquanto tenta, ao mesmo tempo, expandi-los. Empreendimentos como o Sensorica precisarão seguir em frente, enquanto as corporações e cooperativas baseadas em benefícios terão que resistir às tentações contínuas do capital para cooptá-los.
Só adotar uma abordagem defensiva não será suficiente. É precisamente o que motiva a FairCoin a se esforçar, insistentemente, em reivindicar o espaço econômico do capital. Aqui também existem desafios significativos. Uma preocupação fundamental é que o gerenciamento de altcoins como criptomoedas flutuantes (que podem ser negociadas pelo valor de mercado), traz o risco delas serem compradas e negociadas com a intenção especulativa da busca de lucro. A relação entre a altcoin e o que se pretende denominar pode, portanto, ser corrompida — à medida em que o capital externo e especulativo flui para dentro e para fora da criptomoeda para lucrar com as oscilações de preços, colocando, assim, o propósito fundamental da altcoin em perigo
Embora esse seja um desafio para qualquer altcoin, incluindo o Fishcoin, ele é ainda maior para uma moeda que se esforça em se tornar um meio de troca viável. A variedade de bens e serviços que sustentam seu valor fornecem motivação externa significativa para manipular a moeda a fim de acessar esse valor. Ainda há divergências significativas sobre a gravidade do problema e sobre qual a melhor forma de combatê-lo.
Alguns membros da organização FairCoin, por exemplo, pediram medidas para isolar e limitar a atratividade da moeda para os capitalistas. Por exemplo, uma função de desvalorização temporal poderia ser imposta, significando que o poder de compra da moeda decai com o tempo, incentivando seu uso ativo e impedindo a especulação ou o entesouramento. Essa abordagem foi adotada pela criptomoeda Circles, que, semelhante ao FairCoin, está buscando a adoção generalizada de tokens Circles como uma forma de facilitar renda garantida.
A maioria dos defensores do projeto FairCoin, no entanto, argumenta que sua moeda não está significativamente ameaçada pelo comércio de mercado aberto, apontando que apenas 10% dos FairCoins circulam fora dos mercados estabelecidos por eles. Além disso, argumenta-se que permitir que o mercado determine o valor da moeda, mesmo que esse valor seja baixo, é necessário para manter a capacidade da FairCoin de acessar licitações públicas, que, afinal, ainda denominam quase todos os bens e serviços mundiais.
Essa tensão entre a busca de uma autonomia em relação aos mercados capitalistas e a capacidade de envolvê-los, sem dúvida, continuará a ser um ato de equilíbrio crítico, visto que o potencial das altcoins está apenas começando a ser explorado.
David Graeber, o falecido antropólogo e ativista que por muito tempo lutou com o problema do valor e do dinheiro nas sociedades humanas, colocou a questão da seguinte forma: “O valor final… é a liberdade de criar e determinar o valor em si… O grau em que tais capacidades podem ou não podem ser, devem ou não devem ser medidas, quantificadas, classificadas, comparadas… etc, é talvez o maior desafio intelectual e, em última instância, político que enfrentamos”.
Embora esforços como os da Sensorica, Fishcoin e FairCoin enfrentem inúmeros obstáculos e ainda tenham um longo caminho pela frente, eles oferecem exemplos promissores de como lidar com a raiz do capitalismo, ou seja, com o controle opressor do valor por meio de preços baseados no mercado. Eles oferecem quantificações diferentes e intencionais, não apenas de valor, mas de valores. Eles apontam para as formas viáveis em que um futuro pós-capitalista poderia ser arranjado.
E esse futuro não está, de forma alguma, assegurado.
O impacto dessas tecnologias dependerá de como forem projetadas, empregadas e de em quais contextos mais amplos elas funcionarão. Por exemplo, se organizações do tipo Sensorica começarem a florescer, como os trabalhadores autônomos, mesmo que sejam co-proprietários e co-beneficiários, terão acesso a planos de saúde e poupança para a aposentadoria? Serão criadas organizações autônomas e espalhadas para proporcionar acesso efetivo e justo a essas necessidades? Será solicitado ao Estado que forneça apoio, ou iremos cair em uma economia de pesadelo, individualista e ultra-liberal?
Como essas perguntas serão respondidas? Isso dependerá dos contínuos processos sociopolíticos que determinem o valor e os valores, e a maneira de conquistá-los. Assim, antes de se encantarem pelo potencial revolucionário de qualquer tecnologia, os movimentos contra-capitalistas precisam criar consciência e encontrar respostas para a questão essencial do valor. Só então será possível recorrer a tecnologias emergentes como o blockchain, que vem tornando cada vez mais administrável a operacionalização de valores e o incentivo em sistemas baseados em valores.
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A possível era das moedas pós-capitalistas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU