16 Novembro 2020
O afresco de 40 anos de vida, atividades, sucessos, crimes e pecados do agora expulso cardeal estadunidense Theodore McCarrick não deve ser de interesse apenas para compreender os segredos da sua ascensão (e queda) dentro da Igreja e das hierarquias católicas. Porque o chamado “relatório McCarrick”, encomendado pelo Papa Francisco no fim de 2018, é uma mina de fatos úteis para compreender o seu papel no soft power não apenas do Vaticano, mas também dos Estados Unidos da América.
A reportagem é de Maria Antonietta Calabrò, publicada por Il Fatto Quotidiano, 15-11-2020. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Vem à tona a partir daí um retrato do ex-arcebispo de Washington como de um prelado que literalmente “sussurrava aos presidentes” dos Estados Unidos e que agiu em nome e em prol do Departamento de Estado durante décadas em pelo menos quatro cenários mundiais de grande importância: China, Oriente Médio, África, Cuba (onde teve um papel fundamental na normalização das relações entre Cuba e Estados Unidos, embora se protegesse e afirmasse ter se limitado a ser o “carteiro” de Obama). No pano de fundo, também havia o diálogo com o Islã.
Ele foi um “agente”, no sentido mais elevado do termo, e isso certamente poderia ter ajudado a fazer com que ele ficasse fora dos radares pelos seus crimes sexuais. Parafraseando a famosa frase de James Bond, o “tio Ted” - assim ele pedia para ser chamado pelos seus “sobrinhos”, que, na realidade, eram as suas vítimas – ele poderia ter se apresentado assim: “Meu nome é Ted, tio Ted”.
Simpático, muito inteligente, com uma grande capacidade de trabalho e um verdadeiro globetrotter. A lista das suas viagens ao exterior apresentada pelo relatório é impressionante. Embora nunca tenha sido um diplomata da Santa Sé, afirma-se lá. E ele mesmo se definia como um “amador” a esse respeito.
Mas, apenas para dar um exemplo, em 2014 o Washington Post descreveu a viagem de McCarrick à República Centro-Africana como uma “State Department mission”. E isso ocorreu depois que a primeira acusação detalhada e assinada por uma das suas vítimas (citada no relatório como Padre 3) foi apresentada (2013) nos tribunais estadunidenses e levada ao conhecimento da “embaixada” vaticana, sem nunca ter sido investigada pelo então núncio apostólico em Washington, Dom Carlo Maria Viganò. Sabe-se lá por quê.
Só lendo os arquivos dos EUA sobre McCarrick é que se poderá entender “quem, por meio dele, usou quem” (entre o Vaticano e os EUA). Mas muito provavelmente isso não vai acontecer tão cedo.
No relatório McCarrick, cita-se integralmente uma carta enviada no dia 19 de janeiro 2009 – um dia antes da posse do governo Obama – pelo tio Ted ao cardeal Re. Re, então prefeito da Congregação dos Bispos (hoje, ele é o decano do Sacro Colégio), impôs-lhe por escrito, a pedido de Bento XVI, a obrigação de manter uma vida privada em 2008.
“Recebi uma série de pedidos do novo governo dos EUA para participar de eventos públicos. Rejeitei todos eles (…) Portanto, rejeitei os pedidos do Gabinete do presidente eleito para estar presente em certos momentos de oração e para desempenhar um papel no National Prayer Service. A minha decepção com a minha indisponibilidade foi destacada por um telefonema pessoal do vice-presidente eleito, o senador Joseph Biden. Acho que consegui gerir isso sem perder um amigo para a Igreja ou para mim mesmo, mas é muito difícil.”
Logo depois, McCarrick acrescenta uma nota significativa, entre parênteses: “(Cara Eminência, é tão interessante que a minha reputação entre tantos dos meus irmãos bispos e entre os chefes de governo, que têm acesso às agências de investigação, continue tão alta, a ponto de me quererem presente nas suas funções, enquanto a Igreja parece não querer ter nenhuma confiança em mim)”. Surpreende o adjetivo “interessante”.
Ainda em meados dos anos 1980, o perfil em ascensão de McCarrick chamou a atenção do FBI e até da KGB. Um agente soviético, que gozava de cobertura diplomática como vice-chefe da missão da ONU para a URSS, o abordou, e, para isso, o FBI pediu que McCarrick agisse como agente de contraespionagem. Embora ele achasse que seria melhor recusar, o FBI insistiu, entrando em contato com ele novamente. Em janeiro de 1985, o núncio Pio Laghi considerou que McCarrick “não deveria ter se manifestado negativamente” sobre a possibilidade de servir como recurso do FBI. Não está claro, no entanto, se o ex-cardeal acabou aceitando a proposta do FBI, e nenhum documento indica mais contatos com o agente da KGB.
Em uma entrevista realizada para o relatório e nele relatada, o ex-diretor do FBI Louis Freeh, embora não estivesse pessoalmente familiarizado com o episódio, afirmou que McCarrick seria “um alvo de muito alto valor para todos os serviços [de inteligência], mas, em particular, para os russos naquela época”.
Em 2001, o governo Bush envolveu um entusiasta McCarrick (que o considerava coerente com a abordagem de João Paulo II sobre o assunto) no chamado “projeto China”, cujo objetivo era garantir que a República Popular e a Santa Sé estabelecessem relações diplomáticas formais, 20 anos antes do recente e mais limitado acordo sobre a nomeação dos bispos, assinado e renovado sob o Papa Francisco.
A partir daí, começaram as viagens regulares de McCarrick à China, retomadas mais recentemente sob o Papa Francisco. Como no passado, as viagens ocorriam com passaporte estadunidense e foram sempre relatadas em comunicações escritas e em encontros no Vaticano e com o papa.
No dia 30 de setembro de 2015, Ted escreveu a Francisco: “Com a ajuda de Deus, antes que Ele me chame para Si, ajudarei a Lhe levar a China, e o grande sonho de Matteo Ricci começará a se realizar mais uma vez”. Em outra carta ao pontífice (8 de março de 2016), McCarrick relatou sobre as suas atividades na China e sobre o diálogo inter-religioso com o Islã. No mesmo dia, ele também enviou uma carta ao secretário de Estado, Pietro Parolin, expressando sua gratidão pelo recente encontro entre eles: “Tenho em grande consideração as suas instruções sobre a questão da China e o seu interesse pelo trabalho dos novos canais árabes”. Leia-se, dos xiitas.
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Agente McCarrick, o último expulso do sacerdócio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU